Mentor do STF

Teses do alemão Peter Häberle influenciam o Supremo

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22 de novembro de 2008, 13h10

Numa primeira análise, parece que não há nada em comum entre a índia Joênia Batista de Carvalho, que falou no plenário do Supremo Tribunal Federal em defesa da demarcação contínua da Reserva Indígena da Raposa Serra do Sol, e o constitucionalista alemão Peter Häberle. Mas há muito. É graças às idéias do alemão que a índia pôde falar diretamente aos ministros do Supremo.

É o que mostra reportagem do jornalista Juliano Basile, do Valor Econômico, publicada no suplemento EU& Fim de Semana desta sexta-feira (21/11). O texto mostra que o alemão, considerado o “príncipe do constitucionalismo” na Europa, adquiriu grande influência no Supremo e que “pelo menos dois movimentos distintos e complementares do STF têm inspiração em suas teses”.

Leia a reportagem e a entrevista de Peter Häberle para o Valor

O Mentor do STF

Considerado o “príncipe do constitucionalismo” na Europa, Peter Häberle adquiriu tremenda influência no Supremo Tribunal Federal (STF). Se na Europa ele defendeu a idéia de um Estado Constitucional cooperativo, no qual as decisões tomadas por cada Suprema Corte devem rumar para além da soberania dos Estados nacionais, no Brasil pelo menos dois movimentos distintos e complementares do STF têm inspiração em suas teses.

Primeiro, a abertura dos julgamentos do STF para que qualquer pessoa interessada no resultado possa se manifestar antes da decisão final. Häberle desenvolveu o conceito de “sociedade aberta”, pelo qual o STF é visto como uma instância de participação das pessoas nas decisões. Segundo ele, como as decisões vão atingir diferentes grupos e pessoas, o STF deve se abrir para que todos possam se manifestar nos julgamentos.

Esse conceito está transformando o STF atual. Antes, o tribunal era uma casa restrita a advogados e só falavam aqueles que tinham carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Hoje, cientistas, médicos, pessoas comuns estão levando os seus “memoriais” aos ministros e influenciando nas decisões finais do Supremo.

Foi seguindo essa linha de Häberle que o STF permitiu a igualdade de manifestações entre pessoas opostas — como quando o ex-ministro Francisco Rezek falou em defesa de donos de terras em Roraima e a índia Joênia Batista de Carvalho pela demarcação de áreas para sua tribo. Tradicionalmente relegados ao papel de espectadores, os cidadãos comuns passaram a dar explicações diretamente aos ministros. Resultado: o STF se popularizou.

O segundo movimento é a noção de que a Constituição é um texto mutável e, portanto, sua interpretação deve ser alterada para atender às demandas do momento. Para Häberle, os ministros do STF devem reconhecer a Constituição como um ponto de partida, não como um fim. A Constituição não é estática, pois faz parte da dinâmica da sociedade e sua interpretação deve ser feita no tempo. Esse conceito levou à nova definição de fidelidade partidária pela qual o STF reconheceu que os mandatos políticos são dos partidos e não daquele que se elegeu.

Se a abertura do STF é bastante elogiada, esse segundo movimento é alvo de críticas constantes de advogados, cientistas políticos e parlamentares que vêem no Supremo esforços de “ativismo judicial” e de supressão do espaço de legislar do Congresso.

De qualquer modo, Häberle é o pensador que mais influenciou o STF nos últimos anos. Nascido em Göppingen, em 1934, leciona em Bayreuth, ambas na Alemanha. Nos últimos anos, recebeu títulos de professor honoris causa em Atenas, Granada, Lima e Brasília, onde, depois de palestra na Câmara dos Deputados, conversou com o Valor.

Nos últimos meses, Häberle tem feito análises culturais de várias constituições. Ele está verificando como os símbolos nacionais figuram nelas. Concluiu que tanto a cultura erudita quanto a popular devem ser valorizadas. “Os Beatles foram inicialmente compreendidos como subcultura, mas analisei as partituras e compreendi que eles são tão importantes quanto Brahms.”

Veja trechos da entrevista

O Supremo está utilizado mecanismos inovadores, como audiências públicas e a participação de pessoas e grupos de interesse durante os julgamentos (os “amici curiae” ou “amigos da Corte”). O Brasil caminha para uma “sociedade aberta”, como o sr. diz, na interpretação da Constituição?

Peter Häberle — Para mim, a Suprema Corte brasileira está no melhor caminho de transformar-se num verdadeiro “tribunal cidadão”. O STF serve à Constituição de 1988 de modo exemplar e se abre à sociedade.

Pessoas comuns são capazes de prover mais e melhores informações ao Supremo do que advogados renomados, integrantes do Congresso ou partidos políticos?

Häberle — A instituição dos “amici curiae” é um veículo efetivo para tornar a Constituição um processo público, no sentido de dar publicidade e liberdades públicas aos cidadãos. Graças à sua independência interna e externa e ao seu apartidarismo, os ministros podem informar-se especialmente bem, de modo transparente, em proximidade com o cidadão. Os parlamentares e os partidos mantêm suas competências.

O Congresso perde parte do seu poder quando o STF amplia a participação popular em seus julgamentos?

Häberle — O status dos parlamentares permanece incólume. Não deve haver nem no plano real nem no psicológico uma situação de confronto entre a Suprema Corte e o Congresso. Trata-se, pelo contrário, de uma cooperação com tarefas divididas a serviço do poder normativo da Constituição dentro dos limites funcionais-jurídicos do STF.

Há risco de o STF atuar como legislador num processo de “judicialização da política”?

Häberle — A pecha da “judicialização da política” e da “politização do direito” é antiga. É também repetidamente levantada contra a Corte Constitucional alemã. A jurisdição constitucional tornou-se universal, hoje, tendo-se transformado num elemento tão bem-sucedido quanto o “Estado Constitucional”. Esse reforço cauteloso do poder jurídico-constitucional deve ser saudado.

Esse é um fenômeno que ocorre também na Alemanha?

Häberle — Na Alemanha, houve a decisão de que as Forças Armadas são uma força do Parlamento. A delimitação do poder do governo federal alemão em caso de seu emprego no exterior também se enquadra nesse conceito. É claro que, quando uma corte constitucional invade com ousadia exagerada a esfera político-partidária, pode pôr em risco a própria autoridade. Aqui é fundamental que haja sensibilidade do julgador: a Corte deve trabalhar no “consenso básico” de uma Constituição, mas também depende dele. A Corte Constitucional alemã está sempre criando novos direitos fundamentais.

Como se dá o desenvolvimento do “ativismo judicial”?

Häberle — Visto sob a ótica do direito comparado, há fases do “ativismo judicial”. Após o “annus mirabilis” de 1989 (“ano milagroso”, em que houve a queda do Muro de Berlim, a reunificação da Alemanha e o colapso da União Soviética), os tribunais constitucionais da Hungria e Polônia, por exemplo, se empenharam muito no sentido de pôr em marcha as novas constituições reformistas. Agora, podem retrair-se para deixar mais espaço para os parlamentos. Algo semelhante poderia aplicar-se, hoje, no Brasil, até sua Constituição ganhar plena realidade. O STF deve atuar como órgão constitucional de peso. Não esqueçamos que o STF com certeza está democraticamente legitimado. No geral: todos os cidadãos, todos os partidos e todos os órgãos constitucionais são, em conjunto, “guardiões da Constituição”.

O sr. se sente de alguma forma responsável por esse movimento de abertura do STF? É bom saber que, por causa de suas idéias, uma índia subiu ao plenário do STF pela primeira vez para defender direitos de sua tribo?

Häberle — Seria um atrevimento afirmar qualquer coisa quanto às minhas idéias e suas eventuais conseqüências no Brasil, apesar de aqui terem sido publicados cinco livros meus. Mas devo dizer: já faz anos que venho rejeitando o conceito clássico da “soberania popular”. No “Estado Constitucional” engajado cooperativamente no plano regional e internacional, o povo não é soberano. Dever-se-ia falar em “soberania da Constituição”. Ou, então, riscar totalmente o conceito de soberania. As constituições mais recentes nem falam mais em “povo” como constituinte, mas em: “Nós, as cidadãs e os cidadãos de Brandenburgo, outorgamo-nos esta Constituição”.

A Constituição de 1988 possui 250 artigos e 94 disposições transitórias. O sr. acha que uma Constituição extremamente detalhista leva o STF a ter um papel central na sociedade?

Häberle — A Constituição brasileira é, em diversas partes, exemplar no seu conteúdo [por exemplo, em assuntos de política urbana], enquanto em outras é barroca e detalhista. Constituições mais resumidas dão mais espaço aos intérpretes no curso do tempo. Além disso, seus artigos podem ser mais facilmente ensinados e aprendidos nas escolas. A Constituição alemã de 1949 com, infelizmente, mais de 50 emendas, é relativamente sucinta. Isso dá também mais espaço para a Corte Constitucional e para a ciência.

Os “amici curiae” contribuem para transformar a cultura do STF de acadêmica em popular? Como o sr. disse, os Beatles teriam papel mais importante do que Brahms nesse processo?

Häberle— Citei os Beatles em minha palestra como exemplo do conceito cultural pluralista e aberto. É a ascensão da cultura alternativa para a esfera da cultura elevada. Mas falando sério: não se deveria jogar artesanato e arte do saber jurídico contra o trabalho dos juízes constitucionais que tenham proximidade com o cidadão. Ambos são necessários.

O sr. disse também que quatro elementos caracterizam a identidade brasileira: língua, religião, futebol e música. Como relacioná-los com a Constituição?

Häberle — As constituições devem apoiar-se em elementos que mantêm unido um povo no que lhe é mais íntimo como comunidade de cidadãos. Numa compreensão científico-cultural da Constituição de 1988, os quatro elementos mencionados ganham visibilidade. No Brasil e em outras constituições latino-americanas que protegem a cultura sempre que se fala a respeito de idioma, esporte, música se descobre algo.

Como relacionar os símbolos nacionais, como hino e bandeira, com a Constituição? Por que o sr. afirmou que a bandeira brasileira não tem uma relação com a Constituição?

Häberle — Em meu livro “Bandeiras Nacionais como Elementos Democráticos de Identificação do Cidadão”, faço elogios à sua bandeira tanto do ponto de vista estético quanto do geométrico e, também, em relação às suas cores. O lema “Ordem e Progresso” pode estar subjacente em algumas normas constitucionais, mas, infelizmente, o rico material cultural de sua bandeira não foi expressamente recepcionado em nenhum artigo da Constituição.

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