Regra injusta

Lei seca não respeitou princípio da proporcionalidade

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21 de novembro de 2008, 23h00

Aprovo — e já se vão três meses ou mais — a lei que proíbe dirigir veículos em estado de embriaguez. Contudo, uma coisa é estar ébrio e dirigindo e outra estar ligeiramente alcoolizado. O princípio da proporcionalidade foi desrespeitado. A tal da tolerância zero é tirânica, até mesmo fascista.

No mundo antigo, um famoso legislador restou conhecido pelo seu extremo rigor. O senhor chamava-se Dracon. Pois a lei que estamos a tratar é draconiana: in medio est virtus, diziam os romanos, como sempre juridicamente lúcidos. Talvez o limite de 0,8% seja o meio onde está a virtude. E que se não estigmatize o álcool, cuja propaganda jamais foi regulada pelo governo. Faltou, também, discutir amplamente com a sociedade os rigores da lei. Era preciso uma conscientização prévia — como houve com o cinto de segurança — e a construção organizada de alternativas. A lei caiu por sobre nossas cabeças como chuva de granizo.

A sociedade não é rebanho, mas formada por pessoas que merecem respeito, sem falar em certos negócios que foram seriamente afetados. Não é só o álcool que prejudica o dirigir. Ele e a maconha deixam o sujeito lerdo, mas contra a maconha não há detectores. Tampouco não se mede no sangue dos condutores o tanto de anfetaminas, drogas sintéticas e cocaína que estão a circular. São substâncias que aumentam a excitação dos sentidos e da mente e impulsionam falar, pensar e correr alucinadamente.

A lei é restrita, embaralha os conceitos de crimes preterdolosos e culposos de trânsito. O preterdoloso é quando eventualmente o agente assume o risco, mais do que previsível, de causar o dano, esteja ou não bêbado ou drogado (dolo no antecedente), por dirigir sem condições de fazê-lo (culpa do crime conseqüente), causando desastre com vítimas ou danos. Culposo é o delito em que o agente age por simples negligência, imprudência e imperícia. A lei “presume” o dolo no crime pelo simples estado de embriaguez leve.

Ora, a culpa bem pode ser do sóbrio num evento com vários agentes. Há condutas perigosas no trânsito que só os sóbrios praticam, quase sempre, como dirigir acima de 130 quilômetros por hora, “costurar” o trânsito e ultrapassar em locais potencialmente catastróficos. Nada disso foi tocado. Tampouco o governo sinaliza as estradas e as mantém em condições mínimas de tráfego. A lei reduziu em 5% os acidentes de trânsito! É muito pouco.

Os governos são co-responsáveis pelas tragédias automobilísticas e não podem se limitar a ser draconianos, sem falar que os agentes do poder de polícia do Estado, doravante, ganharam tanto poder nas ruas e estradas que nos faz pensar em trocas e preços, às escondidas, sem querer ofender ninguém. O Conselho Nacional de Trânsito (Contran) está no dever de pôr temperamentos nesta lei draconiana. Urge campanhas de conscientização. Multar apenas cheira mal…

Como na Islândia, a nossa polícia deveria não apenas prender e punir, mas ajudar. Lá, o Estado atende de graça os motoristas bêbados, medicando-os, levando-os para casa, sãos e salvos. A nossa índole é outra. A população e o poder de polícia são como que ex-adversos. Em algum momento, teremos que nos civilizar, o governo e o povo.

Por último, mas não menos importante, pelos tratados sobre direitos humanos assinados pelo Brasil e por derivação dos princípios constitucionais, agora e sempre, ninguém está obrigado a fazer prova contra si próprio, nem tampouco ser condenado sem arrimo de prova, por mera presunção. Quando isso ocorre, a teoria jurídica das provas terá ido à breca e o Estado de direito volverá a ser Estado policial.

Como se não bastassem as “espetaculares” operações da Polícia Federal, dando a impressão de que o governo da União combate, “sem tréguas”, a impunidade. Não queremos apenas “pão e circo”, mas seriedade e eficiência. O nosso grande receio é que um bom princípio, não dirigir bêbado, drogado, apressado, raivoso, venha a se perder pelo excesso legislativo. E que o Estado não se conscientize de que deve agir com persuasão com melhores condições de tráfego e não apenas pelo exercício da violência, seja ela legislativa ou administrativa, na hora que os funcionários públicos, que dotamos de poder de polícia, aplicarem a lei aos casos concretos.

Para diminuir ainda mais as mortes, é preciso melhorar as malhas de ruas e estradas; punir os drogados, afora o álcool; intensificar a fiscalização (e educá-la); e, sobretudo, agir com razoabilidade. Agora — vejam no que dão conceitos malpostos —, as seguradoras querem retirar a cobertura dos segurados motoristas, independentemente de culpa, se estiverem ligeiramente alcoolizados. Querem é ganhar dinheiro. Abutres!

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    é advogado tributarista, professor titular de Direito Financeiro e Tributário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e sócio do escritório Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados.

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