Ensino do Direito

Supremo busca sempre pedagogia dos direitos fundamentais

Autor

21 de novembro de 2008, 15h22

O jornal Valor Econômico traz, no seu suplemento EU& Fim de Semana desta sexta-feira (21/11), entrevista com o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, e aponta como as idéias do alemão Peter Häberle ajudam a compreender duas tendências importantes do Supremo Tribunal Federal.

De acordo com o texto, a visão de que os ministros da corte devem ouvir pessoas comuns interessadas no resultado dos julgamentos e a noção de que a Constituição é dinâmica e deve ser interpretada no tempo têm influência direta do alemão. A reportagem é assinada pelo jornalista Juliano Basile.

Basile escreve que essas idéias foram aplicadas em julgamentos de grande repercussão nos últimos meses, como a autorização para pesquisas com células-tronco, o julgamento da reserva indígena Raposa Serra do Sol e a aplicação da lei de greve do setor privado para o funcionalismo.

Há, no entanto, uma terceira tendência hoje bastante intensa na corte nos julgamentos envolvendo casos de corrupção e operações da Polícia Federal. Ao julgar esses processos, os ministros concluíram que devem atuar na proteção dos direitos fundamentais, mesmo quando percebem que as decisões serão condenadas pela opinião pública, aponta o texto.

Foi dentro desse contexto que o STF concedeu Habeas Corpus para o banqueiro Daniel Dantas, preso durante a Operação Satiagraha, e o presidente da corte, ministro Gilmar Mendes, fez críticas públicas à “espetacularização” das ações da PF. O que surge para a opinião pública como ações de combate à corrupção chega para o STF na forma de debates abrangendo diversos direitos fundamentais, como os de o acusado não ser algemado, não ser filmado preso, de não grampearem o seu telefone indiscriminadamente, de ele saber do que é acusado no momento em que está sendo preso.

De acordo com a reportagem, esse movimento está sendo chamado pelos ministros de “pedagogia dos direitos fundamentais”. Eles argumentam que o STF cumpre um papel diferente dos demais poderes: o de alertar para ilegalidades, mesmo quando todos pedem a punição de um suspeito. Dessa forma, os ministros reconhecem que há ocasiões em que o STF tem de ir na contramão para garantir determinados direitos. Quando há um clamor na sociedade por algemas, prisões, punições, os ministros podem optar por um caminho diferente e, sabendo que são minoria, ainda enfatizam que eles é que estão com a razão e ensinando todos nesse processo.

Inspiração para Gilmar

Muito antes de chegar à Presidência do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes era influenciado por Peter Häberle. A ligação que Gilmar fez entre o pensamento do pesquisador alemão e o Brasil alteraram as práticas de interpretação de leis pela corte, aponta a reportagem do Valor.

A primeira tradução de Häberle para o Brasil foi feita por Mendes, em 1997, quando ele trabalhava na Casa Civil da Presidência da República, durante o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso. Ele traduziu A Sociedade Aberta e os Intérpretes da Constituição na época em que concluía projetos de lei sobre a maneira pela qual o STF deveria julgar três tipos de ações cujos efeitos não se limitam às pessoas envolvidas no processo, mas afetam todos os cidadãos. O resultado é que essas leis permitiram a ampla participação de grupos e de pessoas distintas nos julgamentos.

A lei que disciplina os julgamentos das ações diretas de inconstitucionalidade perante o STF (Lei 9.868) contém idéias diretas de Häberle. Ela prevê a realização de audiências públicas antes dos julgamentos e a participação de grupos e pessoas que não estão no processo, mas possuem interesse direto na decisão (os amicus curiae, ou “amigos da corte”).

O jornalista descreve que essa mesma lei disciplinou os julgamentos das ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs) -— propostas pelo governo federal para que o Supremo declare a validade de alguma lei. É por causa das idéias de Häberle que a lei prevê a participação de outras pessoas nessas ações — e não apenas do autor e do réu.

As idéias de Häberle também levaram à abertura do STF no julgamento de Argüições por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs). Essa ação é usada para que associações e partidos levem diretamente ao STF um assunto que se encontra em debate nos demais tribunais do Brasil. As ADPFs são reguladas pela Lei 9.882, cujo projeto foi redigido por Mendes no momento em que ele traduzia o autor alemão.

A abertura prevista nessas leis ainda não foi totalmente explorada pelo STF. As leis redigidas por Mendes com a inspiração de Häberle prevêem a convocação de peritos e de comissões para ajudar a formar a opinião dos ministros do Supremo.

Os ministros também podem convocar juízes de outros tribunais para que estes digam como estão aplicando a lei em debate. Esses dois mecanismos, apesar de previstos em lei há quase dez anos (as leis foram aprovadas em 1999), ainda não foram utilizados pelo STF.

“Saibam que somos de alguma forma devedores de Häberle”, enfatizou Gilmar Mendes em recente palestra na Câmara dos Deputados, quando citou a influência do pesquisador alemão nessas leis. Foi a partir da leitura de Häberle que Mendes declarou, durante o julgamento das pesquisas com células-tronco, que o STF é o “representante argumentativo” da sociedade e chamou o tribunal de “casa do povo”.

Em conversa com o Valor, Gilmar Mendes defendeu as duas concepções centrais de Häberle: de um Supremo aberto à sociedade e a visão de que a Constituição é dinâmica e deve ser interpretada no tempo.

Leia a entrevista publicada pelo Valor

De que forma Peter Häberle influenciou o Supremo Tribunal Federal?

Gilmar Mendes — O STF adquiriu um papel muito importante na reinterpretação de normas que tinham um conteúdo fixo. É o que aconteceu, por exemplo, na questão da fidelidade partidária e na Lei de Greve. Häberle diz que a Constituição é um projeto em contínuo desenvolvimento. E, portanto, cabe ao STF propor uma abertura que possibilite o oferecimento de alternativas para a interpretação constitucional.

Então, cabe ao STF se abrir aos diversos grupos de interesse da sociedade?

Mendes — Häberle foi buscar essa concepção na prática. Quando a sociedade delega a uma Corte o papel de dar a última palavra sobre o que é a Constituição, Häberle diz que os juízes não são as vozes da Constituição, mas porta-vozes de uma sociedade que interpreta a Constituição. Ele trouxe uma atitude metodológica de cuidado. Isso dá certa legitimação para a Corte. Por isso é que naquele voto sobre as pesquisas com células-tronco eu disse que a Corte de certa forma também representa o povo.

Quando o sr. conheceu essa teoria?

Mendes— Quando estudei na Alemanha, no fim dos anos 80. Chamou muito a minha atenção. Häberle ganhou muita influência, até de modo indireto. O STF é o local desse processo de interpretação da Constituição, mas, na medida em que escuta outras forças, assume outro papel. Häberle nos diz que não se pode interpretar questões ligadas à liberdade artística sem perguntar para o artista. Nesses casos, você tem de entender o artista. Da mesma forma, você tem de ouvir o religioso para compreender a liberdade religiosa.

O que é mais importante em sua teoria?

Mendes — Häberle afirma que todo cidadão é um intérprete ativo da Constituição. Esses elementos estão muito impregnados no Supremo, hoje, com o “amicus curiae”, com as audiências públicas. A grande contribuição dele é para a entrada das pessoas no processo de interpretação. Isso obriga o intérprete [ministro do STF] a ter certa humildade.

Hoje, o STF é elogiado por se abrir à sociedade, mas a idéia de que o texto constitucional deve ser revisto no tempo ainda é bastante criticada. Por quê?

Mendes — Häberle diz que interpretação e mutação constitucional são a mesma coisa. Agora, o problema todo é que em sociedades como a alemã há um consenso básico sobre as questões fundamentais. A sociedade alemã não tem muitas distinções. Lá, é tudo muito estável. Não há grandes dissensos. Algumas das idéias dele são repelidas por teóricos na Alemanha. Acham que ele dissolve a Constituição. Na medida em que desvincula o intérprete do texto constitucional, o texto perderia essa vinculatividade.

E nos outros países ele tem destaque?

Mendes — Na América Latina ele ganhou muita importância. Suas idéias tiveram influência na Argentina, na Colômbia e no Peru, além do Brasil.

Ele também fala da importância cultural da Constituição.

Mendes — Sim. Häberle desenvolveu uma concepção “culturalística” da Constituição. Ele procura verificar como aspectos da cultura se introjetam na Constituição. As representatividades da sociedade que se encontram na cultura e nos símbolos nacionais.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!