Política criminal

Estatísticas judiciárias não ajudam no combate à criminalidade

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4 de novembro de 2008, 13h31

Com a proximidade do final de mais um ano judiciário, é de praxe que os tribunais superiores levem ao conhecimento da sociedade dados estatísticos que impressionam e que são divulgados para impressionar. Tomemos como exemplo o STJ, que anuncia, ano após ano, com um misto de orgulho e desafio, ter julgado uma imensidão de processos: foram 3.550 em 1989; 17.527 em 1991; e 31.295 processos em 1993. Dez anos depois, seriam mais de 210 mil feitos com decisão proferida1, um número que seria novamente superado em 2005, ano em que o tribunal apreciou 222.529 expedientes2.

O enfoque desses registros tem caráter bivalente. Buscam registrar, através de uma política criminal de estímulos e desestímulos, o esforço dos magistrados para concretar a prestação jurisdicional, deixando claro, ao mesmo tempo, que eles pretendem reduzir sua carga de trabalho, seja através do afunilamento propriamente dito das vias recursais3, seja através da adoção de medidas judiciais que obstaculizam o acesso ao segundo grau de jurisdição4.

Uma recente nota da assessoria de imprensa do STJ5 deixa transparecer a forma com que essa política vem sendo desenvolvida. O registro em questão comemorava o fato de que o volume de processos que chegaram ao STJ no mês de outubro desse ano de 2008 correspondiam a um volume 40,32% menor do que o registrado no mesmo período do ano passado, o que, segundo o autor da nota jornalística, seria um “indicativo claro de desafogamento da Corte Superior e de que a justiça está chegando mais rápido à sociedade”6.

Sob o argumento de que “quando o Tribunal tem que dar preferência à quantidade, a qualidade fica afetada”7, faz mesmo sentido admitir que a Lei de Recursos Repetitivos, o instrumento jurídico ao qual se referia a nota do STJ, beneficia a sociedade. Mas, ao mesmo tempo, não há como se negar o fato de que o mecanismo em questão beneficia muito mais os juízes do que qualquer outra categoria social.

Talvez fosse então o momento de refletirmos sobre a qualidade dessa Justiça que, segundo o STJ, a sociedade têm recebido com tanta rapidez. Sabemos que decisões em grande profusão alcançam pouca ou nenhuma expressão em termos qualitativos, e os números apresentados anualmente pelos Núcleos de Estatísticas dos tribunais brasileiros têm reduzidíssimo campo de aplicação. Em boa parte das vezes, têm servido, quando muito, para satisfazer o ego e a competitividade de alguns magistrados, que chegam a se engalfinhar com os seus pares para encabeçar a relação dos juízes mais “produtivos”.

Trata-se, por óbvio, de uma produtividade vazia, pelo simples fato de se revelar, ao primeiro olhar, improfícua. A estatística, bem se nota, ainda é subaproveitada no Poder Judiciário, especialmente no sistema de justiça criminal brasileiro e não há nenhum indicativo de que a aplicação de medidas como a Lei de Recursos Repetitivos tenda a modificar essa tendência, já que se trata de um mecanismo muito mais afetado à concreção de uma política criminal do Poder Judiciário do que do Poder Executivo.

No Brasil, ademais, o agrupamento metódico dos fatos sociais que levam a uma avaliação numérica encontram-se normalmente associados ao excessivo número de expedientes distribuídos para os juízes, ou quando aplicados no âmbito de atuação da polícia judiciária, limitam-se a informar se houve ou não aumento da criminalidade violenta em relação ao mesmo período de tempo no passado.

Trata-se de uma realidade bem diferente de outros países, como os Estados Unidos, onde os dados estatísticos coletados por um órgão8, encarregado, no que diz respeito ao sistema de justiça criminal daquele país, de coletar, analisar, publicar e disseminar informações sobre crimes, ofensores, vítimas de crimes e o funcionamento de todas as instâncias judiciais e administrativas, pautam decisões judiciais vindouras, indicações de juízes aos tribunais superiores, auxiliando de forma inteligente, minuciosa e organizada no combate à criminalidade9.

Recentemente, duas professoras da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas tiveram a iniciativa de conduzir uma pesquisa10 que, espera-se, possa trazer alguma luz à insossa estatística judiciária de nossos tribunais. Maíra Rocha Machado e Marta Rodriguez de Assis Machado examinaram 380 acórdãos do STJ proferidos entre 1989 e 2005, que envolviam a Lei 7.492/86, e conseguiram, antes de mesmo de concluírem o trabalho, questionar, com dados, impressões falsas, como, por exemplo, a de que não há punição para os acusados da prática de crimes contra o sistema financeiro nacional: a pesquisa revelou que 94% das decisões proferidas pelo STJ são desfavoráveis aos defendentes, um índice que chega a 72,2% nos cinco Tribunais Regionais Federais do país.

O exemplo, por si só, é mais do que significativo para nos darmos conta, ao contrário do que afirma o Relatório Estatístico do STJ no ano de 2007, de que não são os dados quantitativos, mas sim os qualitativos, os que deveriam ter “por finalidade subsidiar o processo de tomada de decisão”11 por parte dos magistrados de um Tribunal representativo como aquele.

Notas:

1. Disponível em http://www.direito2.com.br/stj/2003/dez/19/

superior_tribunal_de_justica_julgou_mais_de_210_mil_processos.

2. Os dados são do Relatório Estatístico do Superior Tribunal de Justiça – Ano 2007, disponível em http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Boletim/sumario.asp.

3. Já se pronunciava nesse sentido o ministro Paulo Galloti, ao assumir, em 2004, a Presidência da 6ª Turma do STJ: “[…] os expressivos resultados alcançados demonstram a extraordinária produtividade dos ministros do Tribunal e a extrema necessidade de uma correção de rumos sob a pena de inviabilização da prestação jurisdicional do Superior Tribunal”. Sexta Turma julga mais de 8,4 mil processos apesar de passar mais de um ano desfalcada, disponível em http://www.direito2.com.br/stj/2004/jul/2/

sexta_turma_julga_mais_de_84_mil_processos_apesar_de_passar.

4. Adotando decisões, por exemplo, que admitem a constitucionalidade do artigo 594 do Código de Processo Penal. Foram reiterados os casos de inadmissão do recurso de apelação até que o STJ publicasse a Súmula n° 347, cuja redação diz expressamente que “o conhecimento de recurso de apelação do réu independe de sua prisão”.

5. http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=89838

6. http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=89838

7. Foi como se manifestou o ministro Nilson Naves, quando estava à frente da Presidência do STJ, em 2003. Disponível em http://www.direito2.com.br/stj/2003/dez/19/superior_tribunal_de_justica

_julgou_mais_de_210_mil_processos

8. Confira-se a respeito http://www.ojp.usdoj.gov/.

9. O nível de detalhamento dos dados estatísticos providos pelo Bureau of Justice Statistics é tão grande que permite que se tome conhecimento de que em 2005, 22% das vítimas de crimes violentos nos Estados Unidos, estavam envolvidas em atividades de lazer fora de casa antes de serem atacadas; que 22% encontravam-se em casa, e que outros 20% se deslocavam do trabalho para casa quando o crime ocorreu, fazendo com que informações como, por exemplo, “o número de processos recebidos teve um incremento de 12%, passando de 203.406 para 227.252”, divulgada em 2004 pelo Núcleo de Estatística do STJ sejam consideradas absolutamente irrelevantes. Para uma abordagem mais detalhada, vide o excelente “Meu casaco de general: 500 dias no front da Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro” (Cia das Letras, 2000), do antropólogo Luiz Eduardo Soares.

10. “A aplicação da Lei n. 7.492/86 nos Tribunais Regionais Federais e no Superior Tribunal de Justiça”, disponível em http://www.direitogv.com.br/AppData/Publication/WP18%202.pdf.

11. Ao contrário do que dispõe a Apresentação do Relatório Estatístico do Superior Tribunal de Justiça – Ano 2007, disponível em http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Boletim/sumario.asp.

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