Regularidade fiscal

Hospital deve ser inserido no Refis para receber recursos do SUS

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31 de outubro de 2008, 23h00

A União está obrigada a inserir o Hospital de Cirurgia de Aracajú no sistema do Programa de Recuperação Fiscal (Refis) para que ele tire a certidão de regularidade fiscal e, assim, continue recebendo recursos do Sistema Único de Saúde (SUS). A decisão é do juiz Fernando Escrivani, da 2ª Vara Federal de Aracaju.

O juiz considerou que a situação é excepcionalíssima. Embora a exclusão tenha sido aparentemente regular do ponto de vista formal, preponderou a necessidade de se garantir a continuidade dos relevantes serviços prestados pelo Hospital de Cirurgia na área da saúde pública. A atuação do hospital foi classificada como imprescindível diante do atual quadro no Estado de Sergipe.

Além disso, Fernando Escrivani afirmou que o motivo da exclusão, baseado em pequenas diferenças no recolhimento das parcelas mensais, deveria ceder diante da necessidade de se viabilizar o acesso à saúde. Ele concluiu que não há nenhum prejuízo, com a medida, para a União.

Leia a decisão

1 – Relatório.

Pretende a demandante obter, em face da União Federal, a título de provimento de urgência, sua reinserção no programa REFIS de parcelamento tributário e a expedição de certidão negativa ou positiva com efeitos de negativa quanto aos tributos federais por ele abrangidos.

Suscita ter sido excluída do REFIS por ato publicado no Diário Oficial da União em 27.03.2008, mas dele só tomou conhecimento meses depois, ao realizar consulta eletrônica. Os motivos de sua exclusão, argumenta, evidenciam clara afronta ao princípio da publicidade a que subordinada a administração pública, porquanto foram consideradas diferenças na declaração anual do IRPJ cuja existência não se lhe permitiu conhecer, pois só registradas em planilhas de uso interno da Receita Federal. Quando teve acesso a esses dados, complementa, providenciou a imediata quitação dos débitos em questão.

Aduz, no quadrante do fundado receio de dano, a possibilidade de paralisação de suas atividades, pois sem o respaldo de certidão atestando sua regularidade fiscal, ficará impossibilitada de receber recursos do Sistema Único de Saúde – SUS e de outros convênios.

Traz documentos de fl. 23/236.

Eis o relato. Decido.

2 – Fundamentação.

Provimentos de urgência (antecipatórios ou cautelares) são instrumentos de compensação do fator tempo que se apresenta no curso necessário à entrega da prestação jurisdicional definitiva. Equilibram, precária e provisoriamente, direitos fundamentais potencialmente antagônicos, radicados no contraditório e na efetividade da tutela jurisdicional adjetivada pela razoável duração do processo, ponderando-os e coordenando-os com base em juízo valorativo de razoabilidade e proporcionalidade formulado em atenção aos subsídios fornecidos pelas cores do caso concreto.

A par das especificidades postas pela legislação processual, os pressupostos autorizadores dessas medidas remetem invariavelmente à idéia de plausibilidade, em maior ou menor grau, do interesse a ser resguardado e da apuração de risco, a pesar sobre a utilidade futura da própria tutela jurisdicional ou sobre uma necessidade ingente a ser remediada.

Pelo contraponto responde, em regra, o risco inverso, caracterizado pela desproporção entre o gravame a ser suportado pela parte atingida pelo provimento e o proveito objetivamente decorrente para a parte beneficiada, rejeitando-se sua concessão quando o primeiro, por muito superior, evidencie a incompatibilidade de se postergar o contraditório em favor de uma medida que, a despeito de sua precariedade, provoque efeitos de difícil ou impossível assimilação no caso de seu desfazimento futuro, em se declarando a improcedência do pedido de mérito.

Excepcionam o contraponto, todavia, duas circunstâncias peculiares, consubstanciadas no propósito protelatório do réu ou na manifesta fragilidade de suas teses defensivas. Aí emerge com tanta veemência a plausibilidade do direito invocado pelo autor que, configurado um estado de quase certeza, a medida se impõe como mecanismo de distribuição justa do tempo necessário à tramitação do processo.

Pois bem.

Submetida a uma análise estrita, fria e dogmática, a pretensão ora em análise não impressionaria sob o ângulo da verossimilhança.

Fixou a jurisprudência a desnecessidade de notificação pessoal do contribuinte quando de sua exclusão do REFIS, acatando-se como legítima e admissível a comunicação via internet ou mediante publicação na imprensa oficial (STJ, Súmula 355; TRF5, AC 430.294 – CE, AC 448.802 – CE e AC 400843/AL).

Além disso, uma leitura inicial da decisão administrativa juntada às fl. 128/132 sugere que o motivo da exclusão da parte autora daquele regime de parcelamento não teria raízes em diferenças em declarações anuais do IRPJ, as quais alegou desconhecer por força de procedimento sigiloso e ilegítimo por parte do Fisco.

Conquanto não se tenha elementos inequívocos para se identificar o aventado comportamento insidioso, tais diferenças, aparentemente, estavam ainda em consolidação e nenhuma contribuição deram ao ato aqui combatido.

O verdadeiro motivo, indica a mesma decisão, seriam valores a menor no recolhimento da parcela mínima do REFIS calculada sobre receita bruta, declarada pelo próprio contribuinte, no mês anterior ao pagamento. Traduzindo: erro de cálculo atribuível exclusivamente à parte demandante.

Mas a sorte da parte autora, por razões especialíssimas, não se resolve com uma análise estrita, fria e dogmática.

O dever jurisdicional não se reduz à aplicação da lei enquanto produto e reflexo de um mero silogismo, operado em um circuito fechado e hermético. A verdadeira tarefa a ele confiada consiste em fazer atuar o ordenamento jurídico com o propósito de preservar e fortalecer seus valores nucleares e preponderantes, buscando atender um desiderato ético que lhe demarca a própria substância: a realização de justiça.

Existem o direito e a jurisdição, enfim, não como entes autônomos, mas como instrumentos em favor da sociedade, solucionando seus conflitos, atendendo suas necessidades e dando a cada um o que é merecido.

Os postulados da razoabilidade e da proporcionalidade, nessa ordem de idéias, calibram em termos técnicos e factíveis a medida do justo, do correto. Entre duas soluções igualmente apoiadas no direito e aos seus preceitos submetidas, prestigia-se aquela que, mesmo não reproduzindo o sentido mais aparente de uma determinada norma jurídica, preserva bens materiais e imateriais cuja relevância transcende seu significado intrínseco para alcançar dimensão muito maior no plano dos interesses coletivos e do ordenamento jurídico como um todo.

A Fundação de Beneficência Hospital de Cirurgia é entidade de direito privado, sem fins lucrativos, instituída pelo Estado de Sergipe. Desempenha um trabalho essencial, notório e incontestável no campo da saúde pública, atendendo pelo SUS expressiva parcela populacional. É uma das grandes referências na área e seu funcionamento, dado o contexto de perceptível insuficiência do sistema de saúde em nossa unidade da federação, revela-se imprescindível.

Pelos dados que se noticiam com freqüência – cuja magnitude assombrosa, friso, rendeu triste fama na última epidemia de dengue e em recente edição do programa Fantástico, transmitido pela TV Globo –, a paralisação ou mesmo redução dos serviços prestados pela parte demandante poderá provocar impactos que dificilmente poderiam ser absorvidos pelas outras e poucas unidades hospitalares aqui instaladas.

Nesse quadro, a perda de recursos da ordem de mais de um milhão de reais, provenientes do Sistema Único de Saúde, tem visível aptidão para desencadear conseqüências intoleráveis do ponto de vista do bem comum, sobrepondo-se em imensa medida às discutíveis vantagens patrimoniais que o erário, já na esfera federal, colheria com a exclusão da parte autora do REFIS.

Ou seja, a pretensão carrega um fator de risco ponderável, sensivelmente superior ao cogitado pela legislação processual ao plasmar o artigo 273, parágrafos, do CPC, ou mesmo todos os outros dispositivos voltados à disciplina das variadas espécies de provimentos de urgência.

Quando o risco de perecimento de um bem tão caro à sociedade é excepcional, a coordenação dos interesses conflitantes no caso concreto também o deve ser.

A propósito, o exame perfunctório da decisão administrativa responsável por ratificar a exclusão da parte acionante do REFIS indica a expressão irrisória, no mais das vezes, das diferenças no recolhimento a menor da parcela mínima exigida pelo regime de parcelamento. Nos casos extremos das 28 competências detalhadas às fl. 130/131, temos os saldos devedores de R$ 3,82 (três reais, oitenta e dois centavos) em agosto de 2001 e R$ 2.907,42 (dois mil, novecentos e sete reais, quarenta e dois centavos) em novembro de 2005. Na imensa maioria das outras competências, contudo, o saldo devedor não chega a R$ 150,00 e, considerado um grupo ainda mais extenso, não atinge R$ 560,00.

Tomando-se o valor da dívida consolidada abrangida pelo parcelamento, de quase dois milhões e oitocentos mil reais, essas diferenças, mesmo em relação ao montante da parcela mínima devida a cada mês, não ostentam peso significativo.

Delineadas essas circunstâncias, parece-me razoável crer na sinceridade de propósitos da parte autora no tocante ao cumprimento do REFIS. Dado o teor quase desprezível das diferenças apuradas na maioria das competências, torna-se natural a versão de um mero erro material na elaboração de cálculos quando da realização dos pagamentos. E tal pensamento sai robustecido pelo anexo 10 que instrui a exordial (fl. 133/160), preenchido por DARF’s que parecem espelhar o recolhimento, com os encargos adicionais, dos valores faltantes apontados pelo Fisco.

Passando a outra perspectiva, a permanência da parte autora no REFIS provavelmente traduz a melhor alternativa para o resguardo dos interesses de ambos os litigantes. Relativamente à Fundação, a vantagem dispensa comentários. Do lado da União, talvez seja a única via realmente eficaz para satisfazer seus créditos tributários, tendo em vista os conhecidos percalços de um processo executivo em face de entidade da administração indireta que desempenha serviço público em sentido estrito.

Além de neutralizar um risco superlativo, portanto, a reinserção da parte requerente no REFIS consubstancia, nesse momento inicial, providência capaz de imprimir máxima efetividade ao direito fundamental à saúde em sua acepção coletiva, dado o papel crucial e objetivamente aquilatável do Hospital de Cirurgia em Sergipe, ao mesmo tempo em que evita, ou pelo menos não implica, prejuízos à parte demandada.

Reside nisso, a meu ver, a plausibilidade do pleito em análise.

3 – Dispositivo.

Ante o exposto, defiro a antecipação requestada, determinando, se outro motivo impediente não houver, a imediata reinserção da parte autora no REFIS e, com idêntica ressalva, a expedição de certidão positiva com efeitos de negativa.

Cite-se.

Com a resposta, em sendo pertinente, faculte-se réplica à parte autora.

Intime-se.

Aracaju/SE, 30 de outubro de 2008.

Fernando Escrivani Stefaniu

Juiz Federal Substituto

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