Loteria do dano

Ações indenizatórias iniciam uma nova fase no Direito brasileiro

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24 de março de 2008, 16h59

Enquanto degustava uma porção de batatas no McDonald’s, uma consumidora encontrou, entre os filetes, uma formiga grudada ao alimento. Como não é hábito nacional o consumo do minúsculo inseto, a questão foi parar na Justiça. Em sua decisão, o juiz Yale Sabo Mendes, integrante do Poder Judiciário de Mato Grosso, condenou a cadeia americana de fast food ao pagamento de R$ 10 mil a título de dano moral. Em outro caso repulsivo, moradores de Aimorés (MG) receberam a quantia de R$ 600 pela ingestão de água contaminada por um corpo em putrefação, localizado no tanque da companhia de abastecimento local. A chamada “água de defunto” foi descoberta após reclamações sobre a qualidade da água.

A disparidade confunde não somente a população, como toda a comunidade jurídica. As ações de indenização, cada vez mais, navegam à deriva — uma loteria, como denomina Patrick Atiyah, autor da obra The damages lottery (A loteria do Dano). Se incerto é o resultado de casos não tão comuns, como os citados acima, notório é o valor pago, por exemplo, pelas operadoras de telefonia condenadas diariamente pela inclusão indevida nos serviços de proteção ao crédito. A partir dessa padronização de valores, surgem decisões que causam imensa perplexidade à população. Em um caso ocorrido recentemente, um homem, possuidor de baixa renda, perdeu dois dedos da mão direita por falhas em um rojão. O quantum fixado — R$3 mil — alcançou pouco mais da metade do valor pago às vítimas das telecoms.

Diante dessas condenações em série, temos o intitulado tabelamento do dano moral, fonte de eternos debates acalorados, e a conseqüente indústria do dano. No atual cenário, a indenização é reles taxa de funcionamento dessas empresas. O que deveria ser extraordinário virou rotina. Muito já foi discutido sobre uma possível solução, como a majoração das quantias pagas, mas pouco foi feito. Ao que tudo indica, o abacaxi não será descascado tão cedo. Enquanto isso, a vítima de poucas posses amarga os limites impostos por sua própria renda. No caso da água putrefata, o nobre magistrado deve ter imaginado que uma quantia superior a R$ 600 caracterizasse fonte de enriquecimento para os consumidores, indo além do valor necessário para reparação.

Contudo, um novo experimento foi feito nos últimos dias em Santa Catarina. Condenada pela morte de uma criança de 10 anos, uma empresa de transportes coletivos pagará R$ 50 mil pelos danos morais sofridos pela mãe. Em recurso, a empresa alegou que a quantia deveria ser nivelada à situação financeira da indenizada, que é faxineira. Para o relator do processo, desembargador Newton Janke, é “totalmente descabido o argumento de que a verba indenizatória deve guardar proporcionalidade ou correspondência com o padrão de vida ou a condição econômica dos ofendidos”. Se a reflexão do nobre magistrado alcançar as demais cortes do país, as ações indenizatórias iniciarão uma nova fase no Direito brasileiro.

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