Bastidores na tela

Em frente a câmeras, não há sigilo entre advogado e cliente

Autor

14 de março de 2008, 13h40

O advogado não pode reclamar quebra de sigilo de suas conversas com o cliente se o orienta em frente a câmeras de televisão. O entendimento foi usado pelo desembargador Maia da Cunha, da 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, para confirmar a sentença que negou o pedido de indenização por danos morais contra a TV Globo para os advogados de Suzane Richthofen, condenada por matar os pais. Cabe recurso.

Os irmãos Mário de Oliveira Filho e Mário Sérgio de Oliveira, que cuidaram da defesa de Suzane à época, alegavam que a entrevista dada por ela à emissora e divulgada pelo Fantástico, em julho de 2006, prejudicou a imagem dos dois, que acabaram perdendo clientes por causa disso. Na reportagem, Suzane apareceu infantilizada, com roupas e voz de criança. Na entrevista ela chorou, mas gravação da conversa dela com seus advogados mostrou que havia sido orientada para isso.

Os advogados recorreram à Justiça para que a Globo fosse obrigada a pagar indenização para eles. Alegaram que a reportagem foi editada, desrespeitando acordo feito entre eles e a emissora. O pedido não foi aceito pelo juiz Jomar Juarez Amorim, da 3ª Vara Cível Central de São Paulo. Os irmãos apelaram ao Tribunal de Justiça paulista.

O desembargador Maia da Cunha afirmou que os advogados, quando aconselharam Suzane em frente às câmeras de televisão, abriram mão do sigilo entre advogado e cliente previsto no Estatuto da OAB. Para a 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, os advogados sabiam que sua imagem seria utilizada no programa. Por isso, não se pode falar em direito de imagem ou de intimidade para ter direito a indenização.

“No momento em que o co-autor Mário Sérgio aconselhou — no mesmo recinto em que estavam as câmeras de televisão — sua cliente, que já tinha um microfone acoplado à roupa, abriu mão do sigilo entre advogado e cliente previsto no Estatuto da OAB. A requerida, a quem concediam a entrevista, entendeu que, no contexto da matéria, era de interesse geral dos telespectadores a divulgação da cena em que Suzane era aconselhada por seu advogado e levou-a ao ar. E agiu licitamente, na medida em que protegida pelo direito de informar”, afirmou o desembargador.

De acordo com Cunha, os advogados não podem reclamar que a emissora agiu de má-fé. A entrevista não foi gravada nos estúdios e sim no escritório e casa dos advogados. A TV Globo não implantou câmeras ou sistema de som só para captar a conversa entre Suzane e os advogados. “No momento em que Suzane consultou-se com seus defensores, foi em local em que ambos sabiam que a conversa poderia ser registrada, mormente, insista-se, porque um microfone já fora fixado na roupa da jovem pela equipe de reportagem. Dessa maneira, não se pode, repita-se, argumentar que a gravação foi clandestina, ferindo os retrocitados sigilo profissional, e direitos constitucionais à intimidade e ao sigilo das comunicações. E, ainda que assim não fosse, deve-se relembrar que não existe direito constitucional absoluto. No conflito entre dois direitos constitucionais, há de se aplicar o princípio da razoabilidade e fazer prevalecer aquele que, no contexto, é o mais importante.”

Cunha ainda ressaltou que os advogados sabiam do formato do programa e permitiram que Suzane comparecesse com uma atitude infantilizada. Eles tinham a condição de compreender que a caracterização exagerada poderia causar reação adversa do público, como ocorreu.

A Globo foi defendida pelo advogado Marcelo Habis, do escritório Camargo Aranha Advogados. Já os irmãos Mário foram representados pelo advogado Marcus Vinícius de Abreu Sampaio.

O crime

Suzane, seu namorado, Daniel Cravinhos, e o irmão dele, Christian Cravinhos, confessaram ter matado os pais dela, Marisia e Mandred Von Richthofen, com golpes de barra de ferro, na casa em que a família morava, em outubro de 2002. Em julho do ano passado, Suzane e Daniel foram condenados a 39 anos e seis meses de prisão e Christian, a 38 anos e seis meses.

Leia a decisão

ACÓRDÃO

Danos patrimoniais e morais. Cerceamento de defesa inexistente. Autores que patrocinam a causa de cliente acusada de crime de repercussão nacional e entendem que concessão de entrevista à requerida TV Globo seria salutar para a imagem de sua cliente junto à opinião pública, às vésperas do julgamento. Conhecimento dos moldes do programa em que seria veiculada a entrevista que permitia inferir a impossibilidade de ser apresentada a íntegra da entrevista. Jovem que comparece à entrevista com uma atitude infantilizada. Autores que possuíam condições de compreender que a caracterização exagerada poderia suscitar reação adversa do público, o que acabou ocorrendo. Acompanhamento da cliente à entrevista que significa abdicação ao direito à intimidade e à imagem. Aconselhamento no mesmo recinto em que as câmeras estão ligadas a significar também a abdicação ao direito ao sigilo de comunicação e do sigilo entre advogado e cliente. A requerida TV Globo veiculou as imagens no exercício de seu direito de informar constitucionalmente assegurado. Decisão acertada. Recurso improvido.


Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL 537.739.4//8, da Comarca de São Paulo, em que é apelante Mario de Oliveira Filho (e outro), sendo apelada Globo Comunicação Participações S/A.:

ACORDAM, em Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, negar provimento ao recurso.

Trata-se de apelação interposta contra a r. sentença, cujo relatório se adota, que julgou improcedente a ação de indenização por danos patrimoniais e morais, sustentando os autores apelantes, em suma, nulidade da r. sentença por cerceamento de defesa e exame tendencioso dos fatos e que a requerida feriu compromisso que firmara quando dos acordos para a concessão da entrevista consistente em não editar as imagens obtidas, o que culminou na falsa percepção de que os autores e sua constituinte engendravam uma farsa. Afirmam que somente o exame da fita bruta, com a integralidade das imagens gravadas poderia demonstrar o quanto foram prejudicados pela edição, daí que era obrigação da requerida conservá-la. Sustentam ser descabida a proteção ao direito de informar em detrimento ao sigilo profissional, já que a atitude da requerida configurou ferimento aos incisos X e XII do artigo 5º da Constituição Federal. Por fim, alegam que a demonstração dos danos materiais causados ficou prejudicada pelo julgamento antecipado da lide e que os fatos que dependiam de prova encontram-se presumidos pela omissão da parte contrária em exibir a fita bruta gravada.

Este é o relatório.

A r. sentença da lavra do eminente e culto Magistrado Dr. Jomar Juarez Amorim analisou com pertinácia a prova e corretamente decidiu pela ausência de ato ilícito configurador de danos patrimoniais e morais. As bem lançadas ponderações de Sua Excelência, pela sua adequação e pertinência, ficam aqui expressamente adotadas como razão de decidir pelo improvimento do recurso.

Saliente-se que, ao contrário do alegado, não se vislumbrou na r. sentença qualquer parcialidade no julgamento. Em momento algum o digno Magistrado sentenciante olvidou que não estava a julgar Suzane, nem o crime de que era acusada, mas sim o eventual dano causado a seus patronos em razão de entrevista que ela deu à TV Globo em razão do julgamento que se avizinhava.

As menções à cliente dos autores e ao crime do qual foi acusada decorreram da estreita ligação entre a entrevista que originou o presente pedido de indenização e o fato de os autores serem advogados da jovem, já que, nessa qualidade, aconselharam-na a conceder a entrevista na tentativa de melhorar sua imagem junto à opinião pública. E desta entrevista surgiram os fatos que os autores apelantes tiveram como danoso à honra e ensejador dos danos morais pleiteados na inicial.

Não houve cerceamento de defesa.

O ordenamento processual civil admite o julgamento antecipado da lide nas hipóteses em que a questão de mérito for unicamente de direito ou que, sendo de direito e de fato, não haja necessidade de produzir-se prova em audiência (art.330, I, CPC). No caso, a circunstância de a requerida ter editado ou não as imagens e a falta de apresentação da fita com a íntegra das cenas gravadas não são suficientes para configurar o alegado cerceamento de defesa.

Lembre-se que a reportagem foi veiculada no programa dominical denominado “Fantástico”, que tem como formato característico uma miscelânea de reportagens, com os mais variados assuntos, de modo a atingir um público o mais amplo possível.

E, conforme os autores mesmos relataram, a gravação da reportagem deu-se por três dias consecutivos (fls. 157). Daí que não poderiam mesmo pretender que se veiculasse a reportagem na íntegra, já que não se adequaria ao formato do programa.

Além de tudo, é notório que a grande maioria das entrevistas tende a ser demasiadamente repetitiva e requer a sua edição até para que se atenda à finalidade de informar da emissora que a veicula. Ao apresentar uma reportagem em cadeia nacional, uma emissora de TV busca audiência e é lógico que editará o programa para que se apresente atrativo aos telespectadores.

Obviamente que não se pretende aqui adotar a idéia da veiculação de programas ofensivos ou mentirosos com o intuito de se ganhar audiência. O que se pretende é afirmar ser normal e corriqueira a edição de entrevistas para que se torne mais atrativa ao telespectador, desde que, como no caso, não haja mentira ou alteração da verdade pela emissora. A edição insere-se no trabalho da emissora e não encontra vedação legal sempre que não distorcer o conteúdo da entrevista com falsidade ou inverdade.

No caso, aliás, não foi a edição do programa que causou a impressão de que os autores e Suzanne Richthofen ensaiaram a entrevista com o intuito de ganhar a simpatia do público e, por conseguinte, beneficiar-se às vésperas do seu julgamento pelo Tribunal do Júri da Capital sob a acusação de ter, com a ajuda do namorado e do irmão dele, assassinado os próprios pais.


A indignação do público e sua má disposição para com a jovem não era nova, nem surgiu com a entrevista narrada na inicial. A indisposição do público em geral nasceu a partir do momento em que as investigações policiais apontaram-na como a principal suspeita do crime cometido contra os próprios pais. Bem por isso que a entrevista foi agendada com o confessado intuito de providenciar uma melhor defesa a Suzane, que, dada a gravidade do crime de que era acusada e suas circunstâncias (fls. 04), não tinha uma boa imagem perante a opinião pública.

E, no afã de obter essa visão favorável, Suzane apresentou-se perante os entrevistadores com uma imagem de difícil compreensão e aceitação. Não se trata aqui da edição das falas ou da alegada montagem da reportagem. Trata-se da incongruência oriunda da própria apresentação visual de Suzane que deixou no público a impressão de farsa e, ao contrário do pretendido, piorou sua imagem.

Suzane, à época da entrevista, tinha mais de 20 anos. No entanto, apresentou-se vestida e penteada de modo infantil na tentativa de passar ao público uma imagem de completa inocência, pureza e sugestionabilidade. Mas a questão é que, apesar da idade e dos trajes, o público já a vira muitas e muitas vezes em circunstâncias bem diversas. A sua imagem, pela gravidade e singularidade, foi exaustivamente veiculada pela imprensa como a terrível história da jovem bela, rica e inteligente acusada de matar os próprios pais.

Não se discute aqui a legitimidade de Suzane e seus advogados pretenderem a melhora da imagem junto ao público, nem se discute o modo como acharam mais conveniente buscar essa melhora. No entanto, não podem imputar o malogro da tentativa à edição da requerida, uma vez que decorreu, mais do que tudo, insista-se, da própria maneira com que a jovem se apresentou para a reportagem.

Não bastasse a falta de verossimilhança dos trajes, modos e comportamento de Suzane, também contribuiu para a incredibilidade da entrevista, a circunstância de, em certo momento, o co-autor Mário Sérgio de Oliveira ter dito a ela que chorasse e pedisse para encerrar a entrevista.

Alegam os autores que a edição que a ré fez causou a falsa impressão de que Suzane era instruída a encenar um desconforto com os rumos da entrevista quando, na verdade, estava realmente abalada e, não mais suportando a conversa, dirigira-se até o co-autor Mário Sérgio, perguntando como proceder, sendo instruída a dizer realmente o que sentia: que não agüentava mais e queria encerrar a entrevista (fls. 16).

Afirmam, ainda, os apelantes, que a gravação das instruções dadas por um deles à cliente fere o respeito ao sigilo profissional, assegurado pelo Estatuto da OAB e, sobretudo, o direito à intimidade, à honra e à imagem, assim como o direito ao sigilo constitucional das comunicações e que deve prevalecer sobre o direito à informação também assegurado na Carta Magna.

Pois bem.

Não há quebra do sigilo entre advogado e cliente, uma vez que eles mesmos concordaram com a entrevista. Portanto, colocaram-se voluntariamente na situação em que suas palavras e gestos poderiam perfeitamente ser captados pelas câmeras da requerida.

Além disso, os autores divergem sobre a circunstância em que se teria dado a gravação da conversa confidencial entre o co-autor Mário Sérgio e Suzane.

Afirmam, num primeiro momento, que a entrevista ainda não se iniciara, mas que o microfone de Suzane fora mantido ligado (fls. 15, infra). Ora, se Suzane já estava com o microfone era de se presumir que a conversa poderia ser captada. Logo depois, sustentam que Suzane, chorando, pedira que se encerrasse a entrevista, pois não agüentava mais (fls. 16). O abalo que acarreta o choro e falta de ânimo para continuar a entrevista surge em seu decorrer. Portanto, o co-autor Mário Sérgio, no momento em que Suzane dirige-se a ele aos prantos afirmando querer encerrar a entrevista, sabe que a gravação está ocorrendo e tem condições de inferir que sua comunicação com a cliente será registrada. Não se pode falar, portanto, em quebra de sigilo profissional, ferimento ao direito à intimidade ou ao direito ao sigilo das comunicações.

As entrevistas não se deram nos estúdios da requerida e sim no escritório dos autores e na casa de outro advogado de Suzane. Não se pode crer que a emissora tenha implantado uma câmera e um sistema de som em ambientes que não lhe tenham sido franqueados. Desse modo, no momento em que Suzane consultou-se com um de seus advogados, foi em local em que ambos sabiam que a conversa poderia ser registrada, mormente, insista-se, porque um microfone já fora fixado na roupa da jovem pela equipe de reportagem.

Dessa maneira, não se pode, repita-se, argumentar que a gravação foi clandestina, ferindo os retrocitados sigilo profissional, e direitos constitucionais à intimidade e ao sigilo das comunicações. E, ainda que assim não fosse, deve-se relembrar que não existe direito constitucional absoluto. No conflito entre dois direitos constitucionais, há de se aplicar o princípio da razoabilidade e fazer prevalecer aquele que, no contexto, é o mais importante.


Os autores, ao estabeleceram tratativas com a requerida para a realização de entrevista com sua cliente, abriram mão do direito à intimidade. Sabiam, ainda, que poderiam ter sua imagem utilizada no programa. Não se pode falar, portanto, de ferimento ao direito de imagem. E, no momento em que o co-autor Mário Sérgio aconselhou – no mesmo recinto em que estavam as câmeras de televisão – sua cliente, que já tinha um microfone acoplado à roupa, abriu mão do sigilo entre advogado e cliente previsto no Estatuto da OAB.

A requerida, a quem concediam a entrevista, entendeu que, no contexto da matéria, era de interesse geral dos telespectadores a divulgação da cena em que Suzane era aconselhada por seu advogado e levou-a ao ar. E agiu licitamente, na medida em que protegida pelo direito de informar.

Em suma, após terem acompanhado à entrevista concedida à requerida com o fim de tentar a melhora da imagem de sua cliente junto à opinião pública, abrindo mão de seu direito à imagem e à intimidade e após aconselharem a jovem frente às câmeras, abrindo mão do sigilo de comunicações e do sigilo entre advogado e cliente, não podem os autores, apenas porque a entrevista não produziu o resultado que esperavam, pretender indenização por danos patrimoniais e morais.

Enfim, os autores entenderam que a concessão de entrevista à requerida seria salutar para a imagem de sua cliente junto à opinião pública, já que às vésperas de ser julgada por crime de repercussão nacional. Sabiam dos moldes do programa em que seria veiculada a entrevista e tinham condições de inferir que seria impossível apresentar três dias de entrevista sem qualquer edição. Permitiram que a jovem comparecesse à entrevista com uma atitude infantilizada, tendo condições de compreender que a caracterização exagerada poderia suscitar reação adversa do público, como de fato ocorreu. Acompanharam a cliente à entrevista, abrindo, assim, mão de seu direito à intimidade e à imagem. Aconselharam-na no mesmo recinto em que as câmeras estavam ligadas, abdicando, assim, do direito ao sigilo de comunicação e do sigilo entre advogado e cliente. E a requerida, ao veicular as imagens, fê-lo no exercício de seu direito de informar.

Sendo assim, quaisquer danos causados aos autores pela entrevista não podem ser imputados à requerida, na medida em que não se vislumbra, na conduta dessa última, a prática de qualquer ato ilícito. Não há, portanto, que se falar em indenização por dano patrimonial ou moral.

E mais não é necessário aduzir para a confirmação da r. sentença apelada, inclusive pelos seus próprios, acertados e bem deduzidos fundamentos.

Pelo exposto é que se nega provimento ao recurso.

Participaram do julgamento os Desembargadores Teixeira Leite (Presidente e Revisor) e Fábio Quadros (3º Juiz).

São Paulo, 06 de março de 2008.

MAIA DA CUNHA

RELATOR

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!