Células-tronco

Leia o voto de Marco Aurélio a favor das pesquisas

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29 de maio de 2008, 18h58

O ministro Marco Aurélio, que votou a favor das pesquisas com células-tronco embrionárias nos termos da Lei de Biossegurança, começou seu voto fazendo jus ao seu título de polêmico. Primeiro, elogiou o ministro Menezes Direito e seu pedido de vista no início do julgamento em março. Em seguida, criticou a solução apresentada por Direito em seu voto. “O Supremo Tribunal Federal não é órgão de aconselhamento.”

O ministro se referia às ressalvas que Direito fez ao permitir as pesquisas com células-tronco. “Nestes praticamente 18 anos de tribunal, jamais presenciei, consideradas as diversas composições, a adoção desse critério, a conclusão de julgamento no sentido de recomendar esta ou aquela providência, seja para adoção pelo Poder Legislativo, seja pelo Executivo, em substituição de todo extravagante”, afirmou. “Em processo como este, de duas uma: ou declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade, total ou parcial, do ato normativo abstrato atacado.”

E foi o que o próprio Marco Aurélio fez. Buscou na legislação de 18 países que permitem as pesquisas com células-tronco um dos motivos para que o Brasil também permita. Lembrou também que, em pesquisa feita pelo Ibope em janeiro deste ano, 95% dos entrevistados se declararam a favor das pesquisas.

Para Marco Aurélio, ao contrário do que foi dito em Plenário, a Lei de Biossegurança é explícita, clara. E, mais ainda, constitucional. A declaração de inconstitucionalidade das pesquisas no Brasil, afirmou Marco Aurélio, prejudicaria aqueles que não têm condições de buscar o tratamento adequado fora do Brasil. “Que se aguarde o amanhã, não se apagando a luz que no Brasil surgiu com a Lei 11.105/05 [Lei da Biossegurança].

Leia o voto

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.510-0 DISTRITO FEDERAL

RELATOR: MIN. CARLOS BRITTO

REQUERENTE(S): PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA

REQUERIDO(A/S): PRESIDENTE DA REPÚBLICA

ADVOGADO(A/S): ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

REQUERIDO(A/S): CONGRESSO NACIONAL

INTERESSADO(A/S): CONECTAS DIREITOS HUMANOS

INTERESSADO(A/S): CENTRO DE DIREITO HUMANOS – CDH

ADVOGADO(A/S): ELOISA MACHADO DE ALMEIDA E OUTROS

INTERESSADO(A/S): MOVIMENTO EM PROL DA VIDA – MOVITAE


ADVOGADO(A/S): LUÍS ROBERTO BARROSO E OUTRO

INTERESSADO(A/S): ANIS – INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO

ADVOGADO(A/S): DONNE PISCO E OUTROS

ADVOGADO(A/S): JOELSON DIAS

INTERESSADO(A/S): CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL – CNBB

ADVOGADO(A/S): IVES GRANDRA DA SILVA MARTINS E OUTROS

V O T O

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Antes de tudo, registro a valia do pedido de vista formulado pelo ministro Menezes Direito. Permitiu a reflexão maior sobre o tema, ensejando, já agora, o término do julgamento. A iniciativa mostrou-se regimental e harmônica com o interesse coletivo no que repousa na segurança dos pronunciamentos do Supremo, porquanto, decidida a matéria, não há órgão judicante capaz de revisá-la.

Quanto ao voto de Sua Excelência, sempre vejo com restrições a denominada interpretação conforme à Constituição. É que há o risco de, a tal título, redesenhar-se a norma em exame, assumindo o Supremo, contrariando e não protegendo a Constituição Federal, o papel de legislador positivo. Em síntese, a interpretação conforme pressupõe texto normativo ambíguo a sugerir, portanto, mais de uma interpretação, e ditame constitucional cujo alcance se mostra incontroverso. Essas premissas não se fazem presentes.

Também é de todo impróprio o Supremo, ao julgar, fazer recomendações. Não é órgão de aconselhamento. Em processo como este, de duas uma: ou declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade, total ou parcial, do ato normativo abstrato atacado. Nestes praticamente dezoito anos de Tribunal jamais presenciei, consideradas as diversas composições, a adoção desse critério, a conclusão de julgamento no sentido de recomendar esta ou aquela providência, seja para adoção pelo Poder Legislativo, seja pelo Executivo, em substituição de todo extravagante.

Para efeito de documentação, transcrevo o artigo da Lei nº 11.105/2005 – Lei de Biossegurança – atacado por meio desta ação direta de inconstitucionalidade:

[…]

Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:


I – sejam embriões inviáveis; ou

II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.

§ 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.

§ 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.

§ 3º É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.

Pinço do dispositivo impugnado certos requisitos para a realização da pesquisa e da terapia mediante o uso de células-tronco embrionárias:

1. Haver embriões humanos produzidos por fertilização in vitro não utilizados.

2. Tratar-se de embriões inviáveis ou estarem os embriões congelados há três anos ou mais na data da publicação da lei ou, se já congelados em tal data, após completarem três anos de congelamento.

3. Existir o consentimento daqueles que forneceram o material.

4. Submeterem as instituições de pesquisa e serviços de saúde os respectivos projetos, com vistas à aprovação, a comitês de ética em pesquisa.

5. Não ocorrer a comercialização do material biológico, configurado, no caso de inobservância da lei, tipo penal.

Ante tais requisitos, cabe indagar, simplesmente, onde reside a ofensa do citado artigo 5º à Carta Federal a ponto de levar à declaração de inconstitucionalidade. Mas, até mesmo em respeito a ópticas diversas, à atuação do então Procurador-Geral da República, Dr. Cláudio Fonteles, ao ajuizar esta ação, cumpre a análise do tema.

Devem-se colocar em segundo plano paixões de toda ordem, de maneira a buscar a prevalência dos princípios constitucionais. Opiniões estranhas ao Direito por si sós não podem prevalecer, pouco importando o apego a elas por aqueles que as veiculam. O contexto alvo de exame há de ser técnico-jurídico, valendo notar que declaração de inconstitucionalidade pressupõe sempre conflito flagrante da norma com o Diploma Maior, sob pena de relativizar-se o campo de disponibilidade, sob o ângulo da conveniência, do legislador eleito pelo povo e que em nome deste exerce o poder legiferante. Os fatores conveniência e oportunidade mostram-se, em regra, neutros quando se cuida de crivo quanto à constitucionalidade de certa lei e não de medida provisória. Somente em situações extremas, nas quais surge, ao primeiro exame, a falta de proporcionalidade, pode-se adentrar o âmbito do subjetivismo e exercer a glosa. No caso, a lei foi aprovada mediante placar acachapante – 96% dos Senadores e 85% dos Deputados votaram a favor, o que sinaliza a razoabilidade.


No tocante à questão do início da vida, não existe balizamento que escape da perspectiva simplesmente opinativa. É possível adotar vários enfoques, a saber:

a) o da concepção;

b) o da ligação do feto à parede do útero;

c) o da formação das características individuais do feto;

d) o da percepção pela mãe dos primeiros movimentos;

e) o da viabilidade em termos de persistência da gravidez;

f) o do nascimento.

Os filósofos da antigüidade e Santo Agostinho revelaram ópticas diversas[1]. Aqueles acreditavam que o embrião ou o feto não se mostrava formado senão após quarenta dias da concepção no caso masculino e entre oitenta e noventa dias no caso feminino. O pensamento de Aristóteles derivava da teoria dos três estágios da vida: vegetal, animal e racional. O estágio vegetal era alcançado na concepção, o animal na animação – quando incorporada a alma – e o racional logo após o nascimento com vida. Essa teoria passou a ser aceita pelos primeiros pensadores cristãos. O debate teológico refletiu-se nos escritos de Santo Agostinho, que traçava distinção entre embryo inanimatus, quando não presente a alma, e embryo animatus, portanto o já animado. Tal enfoque, acredita-se, teria origem na interpretação emprestada a versículo do livro bíblico Êxodo, cuja autoria é atribuída a Moisés:

Êxodo 21:22 Se alguns homens brigarem, e um ferir uma mulher grávida, e for causa de que aborte, não resultando, porém, outro dano, este certamente será multado, conforme o que lhe impuser o marido da mulher, e pagará segundo o arbítrio dos juízes;

Êxodo 21:23 mas se resultar dano, então darás vida por vida,

Êxodo 21:24 olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé,

Êxodo 21:25 queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe.


Nota-se que haveria punição diferente para a hipótese de aborto se comparada à ocorrência de outro dano. O certo é que se encontra, nos escritos de Santo Agostinho, a visão de que poderes humanos não podem determinar o ponto, durante o desenvolvimento do feto, em que a mudança crítica ocorre, ou seja, o feto adquire a alma.

Houvesse a necessidade de abordar tema que não está em pauta – o aborto –, poder-se-ia citar a possibilidade de sobrevivência do feto – inconfundível com o embrião – sob o ângulo científico. Nessa perspectiva, a Suprema Corte americana, no controverso caso Roe versus Wade, decidido em 1973, estabeleceu que a viabilidade se dá a partir de vinte e oito semanas, podendo ocorrer até com vinte e quatro semanas. Em síntese, para efeito de proteção da vida em potencial, a Suprema Corte americana assentou que o ponto revelador de interesse obrigatório a ser protegido surge com a capacidade do feto de sobreviver fora do útero. Considerou, sim, a presença do interesse em garantir a saúde materna antes desse período, autorizando a realização do aborto apenas nos três primeiros meses de gravidez, pois, a partir desse momento, a intervenção faz-se mais perigosa que o próprio parto[2]. Vale frisar que esse precedente tornou irrelevante a discussão, na América, sobre a constitucionalidade da pesquisa em células-tronco em face de suposta transgressão ao direito à vida, havendo tão-somente questionamentos sobre o financiamento público federal em tal campo.

No caso concreto, não está envolvida a denominada viabilidade. Em primeiro lugar, o artigo 5º da Lei nº 11.105/2005 versa sobre o uso de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro, não cogitando de aproveitamento daqueles fecundados naturalmente no útero. Em segundo lugar, a lei contendo inúmeras cláusulas acauteladoras e até mesmo proibitivas, como é o caso da referente à clonagem, condiciona a pesquisa a embriões não utilizáveis no procedimento de inseminação. É bem explícita ao considerar apenas os inviáveis e os congelados há três anos, ao prever o consentimento dos fornecedores dos óvulos e dos espermatozóides e ao proibir a comercialização, versando diversos tipos penais. A viabilidade, ou não, diz diretamente com a capacidade de desenvolver-se a ponto de surgir um ser humano.

Ora, está-se diante de quadro peculiar a afastar tal resultado. Levem em conta, para tanto, a existência do embrião in vitro e não no útero, e mais a constatação da inviabilidade de uso considerada a destinação inicial. Soma-se a essa limitação o necessário consentimento daqueles que forneceram o material, os elementos, ficando assim descartada, quer sob o ângulo da utilidade, quer sob o ângulo da vontade do casal, a possibilidade de implantação no útero.

Vale dizer que, na prática, ocorre a fecundação de vários óvulos, mantendo-se banco próprio para fazer frente ao insucesso da inseminação. Verificando-se o contrário – e a realidade tem-se mostrado extremada no que gerados gêmeos, trigêmeos, quadrigêmeos –, os óvulos que sobejam acabam desprezados, dando-se-lhes o destino do lixo, já que dificilmente quem de direito delibera por implantá-los em terceira pessoa.

Então, quer pela passagem do tempo sob o estado de congelados, quer considerada a decisão dos que forneceram o material, os embriões jamais virão a se desenvolver, jamais se transformarão em feto, jamais desaguarão no nascimento. A propósito, expressivas são as palavras do biólogo David Baltimore, ganhador de prêmio Nobel, ao ser indagado sobre a discussão ora submetida a este Tribunal:


Não sei falar a respeito do aspecto jurídico do assunto, mas do ponto de vista científico é uma discussão sem sentido. Afinal, os embriões humanos foram descartados porque o casal já teve o número de filhos que queria ou por qualquer outra razão. O fato é que os embriões serão destruídos de qualquer modo. A questão é saber se serão destruídos fazendo o bem a outras pessoas ou não. A meu ver, a resposta é óbvia.[3]

No tocante ao aspecto constitucional e considerado o direito à vida, expressou-se José Afonso da Silva, para quem as pesquisas não podem ser interrompidas[4]:

Não intentaremos dar uma definição disto que se chama vida, porque é aqui que se corre o grave risco de ingressar no campo da metafísica supra-real, que não nos levará a nada. Mas alguma palavra há de ser dita sobre esse ser que é objeto de direito fundamental. Vida, no texto constitucional (art. 5º, caput), não será considerada apenas no seu sentido biológico, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva. Sua riqueza significativa é de difícil apreensão porque é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade. É mais um processo (processo vital), que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que muda de qualidade, deixando, então, de ser vida para ser morte. Tudo que interfere em prejuízo deste fluir espontâneo e incessante contraria a vida.[5]

Cito este trecho de José Afonso da Silva para revelar o descompasso entre a situação concreta versada no artigo em comento da Lei de Biossegurança e aquela outra que pode resultar, sem interferências estranhas, em uma vida.

No enfoque biológico, o início da vida pressupõe não só a fecundação do óvulo pelo espermatozóide como também a viabilidade antes referida, e essa inexiste sem a presença do que se entende por gravidez, ou seja, gestação humana.

Assentar que a Constituição protege a vida de forma geral, inclusive a uterina em qualquer fase, já é controvertido – a exemplo dos permitidos aborto terapêutico ou do resultante de opção legal após estupro -, o que se dirá quando se trata de fecundação in vitro já sabidamente, sob o ângulo técnico e legal, incapaz de desaguar em nascimento. É que não há a unidade biológica a pressupor, sempre, o desenvolvimento do embrião, do feto, no útero da futura mãe. A personalidade jurídica, a possibilidade de considerar-se o surgimento de direitos depende do nascimento com vida e, portanto, o desenlace próprio à gravidez, à deformidade que digo sublime: vir o fruto desta última, separado do ventre materno, a proceder à denominada troca oxicarbônica com o meio ambiente. Por isso mesmo, o pró-reitor de graduação da Universidade Federal de São Paulo e presidente da Federação de Sociedade de Biologia Experimental, o médico Luiz Eugenio Mello, ressaltou:


Um embrião produzido em laboratório, sem condições para implantação em um útero de uma mulher, ou nos termos da lei, um embrião inviável, que seria descartável, não é uma pessoa humana[6].

Se, de um lado, é possível dizer que a criminalização do aborto compele a grávida a gerar o filho concebido, concebido naturalmente mesmo contra a respectiva vontade, ficando com isso enfatizado na legislação de regência o interesse do nascituro –, de outro, não se pode conceber estejam os fornecedores dos óvulos e dos espermatozóides obrigados a dar conseqüências a esses atos, chegando a forçar a mulher a gerar todos os embriões fecundados artificialmente, potencializando, a mais não poder, o ato de vontade inicial. Caminhar em tal sentido – isso para não se levar em conta o destino dos óvulos fecundados que tenham sobejado ao êxito da inseminação – é transformar a mulher em verdadeira incubadora, é contrariar-se o planejamento familiar assegurado na Constituição. Em síntese, aqui não se trata de questionar a possibilidade de obrigar uma pessoa – a gestante – a ficar fisicamente conectada a outra, tema a ser discutido, sob o ângulo constitucional, oportunamente, mas sim de definir o destino dos óvulos fecundados que fatalmente seriam destruídos e que podem e devem ser aproveitados na tentativa, sempre inesgotável, de progresso da humanidade.

Vale notar ainda que, no campo da doação de órgãos, inexiste base na Carta Federal ou em lei que compila os pais a fazê-la para salvar a vida dos filhos.

Contrapõe-se à visão avessa à utilização dos embriões in vitro dado da maior importância considerado até mesmo predicado que transparece em desuso – a solidariedade. É fundamento da República a dignidade da pessoa humana. Ora, o que previsto no artigo 5º da Lei nº 11.105/2005 objetiva, acima de tudo, avançar no campo científico visando a preservar esse fundamento, a devolver às pessoas acometidas de enfermidade ou às vítimas de acidentes uma vida útil razoavelmente satisfatória.

No mundo científico, é voz corrente que as células-embrionárias não são substituíveis, para efeito de pesquisa, por células adultas, uma vez que estas últimas não se prestam a gerar tecidos nervosos, a formar neurônios. Então doenças neuromusculares e o tratamento da medula de alguém que ficou paraplégico ou tetraplégico bem como de acometidos por Parkinson não terão possibilidade de serem alcançados pela pesquisa a partir de células adultas. Confiram a entrevista da bióloga Mayana Zatz a seguir referida.

Em outras palavras, os valores cotejados não possuem a mesma envergadura, surgindo triste paradoxo no que, ante material biológico que terá, repito, destino único – o lixo –, seja proibida a utilização para salvar vidas. Quanto preconceito, quanto egoísmo, fazendo lembrar Vieira no Sermão da Quinta-Feira da Quaresma em 1669:

“A cegueira que cega cerrando os olhos não é a maior cegueira; a que cega deixando os olhos abertos, essa é a mais cega de todas.”

Sob esse aspecto, faz-se necessário ter presente passagem de obra de Márcio Fabri dos Anjos:


A ética não se nutre simplesmente da ordem colocada, mas de objetivos e finalidades segundo os quais a ordem se refaz para garantir o processo humano.[7]

A óptica dos contrários às pesquisas não merece prosperar, distanciando-se de noção humanístico-racional. Sob o ângulo prático, sob o ângulo do tratamento igualitário, tão próprio a sociedade que se diga democrática, a conclusão sobre a inconstitucionalidade do artigo 5º em análise prejudicará, justamente, aqueles que não têm condições de buscar, em outro centro no qual verificado o sucesso de pesquisas com células-tronco, o tratamento necessário. Será que tudo isso interessa à sociedade brasileira?

Trago, para ilustrar, informações sobre o assunto, relativamente a diversos países, veiculadas em sítios na internet[8]. E o faço em ordem alfabética:

África do Sul – Permite todas as pesquisas com embriões, inclusive a clonagem terapêutica. É o único país africano com legislação a respeito.

Alemanha – Permite a pesquisa com linhagens de células-tronco existentes e sua importação, mas proíbe a destruição de embriões.

Austrália – Lei aprovada em Dezembro de 2006 permite o clone terapêutico, a união do DNA de células da pele em ovos para produzir células-tronco, também conhecidas como células-mestre, capazes de produzir todos os tecidos do corpo humano. Os embriões clonados não podem ser implantados no útero e precisam ser destruídos em 14 dias. Em 2002, o Parlamento autorizou os cientistas a extraírem células-tronco de embriões divididos para fertilização in vitro, mas baniu a clonagem de células.

China – Permite todas as pesquisas com embriões, inclusive a clonagem terapêutica.

Cingapura – O país se proclamou como um centro internacional para a pesquisa em células-tronco, atraindo cientistas de diversas partes do mundo, incluindo os cientistas britânicos que clonaram a ovelha Dolly. São fornecidos incentivos robustos para a pesquisa em células-tronco, incluindo a clonagem de embriões humanos.

Coréia do Sul – Permite todas as pesquisas com embriões, inclusive a clonagem terapêutica.


Espanha – Em maio de 2006, o Parlamento votou para expandir o número de embriões disponíveis para a pesquisa em células-tronco, de forma a incluir qualquer congelado até 14 dias da concepção. Antes, os pesquisadores apenas poderiam usar os embriões congelados anteriormente a Julho de 2003. A lei também permite aos pais de crianças com doenças incuráveis a conceberem novos embriões e escolherem um saudável para servir como doador de tecidos, em casos em que todos os demais tratamentos falharam.

Estados Unidos – Proíbe a aplicação de verbas do governo federal a qualquer pesquisa envolvendo embriões humanos – a exceção é feita para 19 linhagens de células-tronco derivadas antes da aprovação da lei norte-americana. Mas Estados como a Califórnia permitem e patrocinam esse tipo de pesquisa – inclusive a clonagem terapêutica.

França – Não tem legislação específica, mas permite a pesquisa com linhagens existentes de células-tronco embrionárias e com embriões de descarte.

Índia – Proíbe a clonagem terapêutica, mas permite as outras pesquisas.

Israel – Permite todas as pesquisas com embriões, inclusive a clonagem terapêutica.

Itália – Proíbe totalmente qualquer tipo de pesquisa com células-tronco embrionárias humanas e sua importação.

Japão – Permite todas as pesquisas com embriões, inclusive a clonagem terapêutica. Mas a burocracia para obtenção de licença de pesquisa é tão grande que limita o número de pesquisas.

México – Único país latino-americano além do Brasil que possui lei permitindo o uso de embriões. A lei mexicana é mais liberal do que a brasileira, já que permite a criação de embriões para pesquisa.

Reino Unido – Tem uma das legislações mais liberais do mundo e permite a clonagem terapêutica.


Rússia – Permite todas as pesquisas com embriões, inclusive a clonagem terapêutica.

Suíça – Os eleitores aprovaram a pesquisa em célula-tronco embrionária mediante um referendo nacional ocorrido em Novembro de 2004, autorizando apenas o uso de células-tronco embrionárias não utilizadas em processo de fertilização in vitro. A lei proíbe a clonagem humana e a criação de embriões para a pesquisa em células-tronco.

Turquia – Permite pesquisas e uso de embriões de descarte, mas proíbe a clonagem terapêutica (como o Brasil).

No Brasil, pesquisa efetuada em janeiro último pelo Instituto Ibope revelou o pensamento da população e este deve ser sopesado neste julgamento. O índice dos que se manifestaram em apoio ao uso de células-tronco embrionárias – desconsiderada a parcela dos que não opinaram – chegou a 95%[9].

Relembro o que consignei no exame da Questão de Ordem na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54-8/DF, quando o Plenário veio a mitigar a medida acauteladora deferida, que implicara o afastamento da glosa penal quanto à gestante e ao pessoal médico no caso de interrupção de gravidez de feto anencéfalo:

A questão, a partir de 1º de julho de 2004, data em que concedida a medida acauteladora no processo, movimentou, como não tinha acontecido jamais com qualquer tema submetido ao Judiciário – salvo, agora, relativamente à possibilidade de pesquisa em células-tronco -, os mais diversos segmentos da sociedade brasileira. Muitos foram os artigos publicados, pró e contra o pedido formulado, variando as opiniões conforme as concepções técnicas, religiosas e morais. Tal como nas cortes constitucionais estrangeiras, o tema alusivo à vida, seja qual for o ângulo – o da pena capital, o do aborto, o da eutanásia e o da interrupção da gravidez, ante a deformidade inafastável inviabilizadora da própria vida –, vem sendo alvo, no Brasil, de enorme expectativa. Frisei que os olhos da nação voltavam-se ao Supremo Tribunal Federal – e permanecem voltados – e este há de se pronunciar quer em um sentido, quer em outro, evitando a insegurança jurídica, a grande perplexidade que advém de teses díspares sobre a matéria. Lembrei que a História é impiedosa, não poupando posturas reveladoras de atos omissivos.

Cumpre a esta Corte a guarda da Constituição Federal e a estará implementando a todos os títulos, sob as mais diversas ópticas, vindo a julgar improcedente o pleito formulado nesta ação direta de inconstitucionalidade, mantendo a esperança, sem a qual a vida do homem torna-se inócua. Bem o disse a pró-reitora de pesquisa e coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo, professora Mayana Zatz, ao ressaltar que:

A terapia com células-tronco pode ser considerada como o futuro da medicina regenerativa. Entre as áreas mais promissoras, está o tratamento para diabetes, doenças neuromusculares, como as distrofias musculares progressivas e a doença de Parkinson. Com as células-tronco, também se poderá promover a regeneração de tecidos lesionadas por causas não hereditárias, como acidentes, ou pelo câncer […][10]


Então, que se aguarde o amanhã, não se apagando a luz que no Brasil surgiu com a Lei nº 11.105/2005.

Acompanho o relator, ministro Carlos Ayres Britto, e os que o seguiram no voto proferido e julgo improcedente o pedido formulado na inicial, assentando a harmonia do artigo 5º da lei atacada com a Constituição Federal, notadamente com os artigos 1° e 5° e com o princípio da razoabilidade.


[1] Roe v. Wade, 410 U.S. 113, 133 (1973).

[2] Id, p. 162-163.

[3] Veja. Páginas amarelas: Editora Abril, edição 2062, ano 41, nº 21, 28 de maio de 2008.

[4] SILVA, José Afonso. A questão das células-tronco embrionárias. Jornal Folha de S. Paulo, 21 de março de 2008.

[5] SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29ª ed., revista e atualizada. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 197.

[6] MELLO. Luiz Eugenio. Entre células e pessoas: a vida humana. Jornal Folha de S. Paulo, 1º de março de 2008.

[7] ANJOS, Márcio Fabri dos. “Ética e clonagem humana na questão dos paradigmas” in Pessini, Leo, BARCHIFONTAINE, Christian Paulo de, orgs / Fundamentos da Bioética. São Paulo: Paulus, 1996, p. 126.

[8] Informações obtidas nos sítios eletrônicos do Jornal Herald Tribune e Wikipedia, confirmadas no sítio eletrônico da The International Society for Stem Cell Research (ISSCR). Endereços eletrônicos abaixo:

http://www.iht.com/articles/ap/2006/12/07/asia/AS_GEN_Australia_Stem _ Cell_Glance.php. Acessado em 19 de maio de 2008.

– http://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%A9lula_tronco, acessado em 19 de maio de 2008.

http://www.isscr.org/public/regions/index.cfm, acessado em 27 de maio de 2008.

[9] Pesquisa IBOPE/CDD, Ibope Inteligência, JOB 110/2008, janeiro de 2008. Base de cálculo: 1.863 entrevistados, desconsiderando a parcela de pessoas que não concorda e nem discorda, não sabe dizer e não respondeu.

[10] Veja. Páginas Amarelas: Editora abril, edição 2050, ano 41, nº 9, 5 de março de 2008.

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