Democracia consciente

Entrevista: Carlos Ayres Britto, novo presidente do TSE

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6 de maio de 2008, 11h55

Carlos Ayres Britto - por SpaccaSpacca" data-GUID="carlos_ayres_britto.jpeg">Junte um poeta e um juiz, com boa dose de filosofia, humanidade e abertura para novas idéias, aliado a todas as viagens que uma mente criativa pode empenhar quando o assunto é a democracia, todos os seus atores e rumos na história do país. O resultado é o novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Carlos Ayres Britto.

Carlos Britto e seu colega de Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, tomam posse nesta terça-feira (6/5), às 19 horas, dos cargos de presidente e vice-presidente do TSE, respectivamente, para cumprir um mandato de dois anos. A cerimônia no Plenário da corte, em Brasília, contará com uma apresentação do Clube do Choro, que tocará o Hino Nacional e a Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. Questão de estilo. A posse do ministro Gilmar Mendes na presidência do Supremo teve como trilha sonora a Cantilena da Bachiana número 5 de Villa-Lobos, interpretada pela soprano Denise Tavarez.

Sua gestão à frente da mais alta corte eleitoral do país promete ser mais discreta que a do antecessor, ministro Marco Aurélio, mas sinaliza lições aos partidos e, sobretudo, ao eleitor. “É preciso valorizar o eleitor, estimulá-lo a participar do processo e a exercer o senso crítico. Mas também precisamos dizer ao eleitor que ele não é só uma vítima de eventuais maus políticos, ele também é cúmplice. Ele tem uma responsabilidade muito grande”, afirma.

Em administração democrática, o ministro deve implementar, se tiver apoio dos colegas, uma política de comunicação mais incisiva com a sociedade. “É preciso chamar o eleitor à responsabilidade. É por isso que se diz, de longa data, que o voto é uma arma e é bom dizer isso ao eleitor”, explica.

Segundo o ministro, a Justiça Eleitoral vai encontrar um mecanismo para impedir, ou pelo menos dificultar, o ‘mandonismo partidário’ e imprimir ao partido um compromisso com ele próprio. “A primeira fidelidade é a do partido para com o seu programa e para com o processo democrático”, afirma. “Nós já estamos chegando nessa fase da cobrança da fidelidade dos partidos ao seu programa e ao processo democrático, e aí o mandonismo, o cesarismo partidário, vai ser questionado”, completa.

Para as eleições 2008 ele prevê a discussão de grandes temas na Justiça Eleitoral, como a propaganda eleitoral via internet, e-mail e blog. Outro tema que voltará à tona, segundo o ministro, é o da vida pregressa do candidato. Em entrevista ao site Consultor Jurídico em seu gabinete no Supremo Tribunal Federal, o ministro voltou a criticar o terceiro mandato e afirmou que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva é inteligente e democrata o suficiente para não embarcar nessa “aventura anti-republicana”. “Essa idéia do terceiro mandato é uma idéia infeliz, anti-republicana e antidemocrática”, diz o ministro. Carlos Britto comandará o TSE por dois anos. Ele é ministro da Corte desde maio de 2006.

Leia a entrevista

ConJur — Ministro como será a atuação da Justiça Eleitoral em 2008?

Carlos Britto — Eu tenho por mais estimulante dos desafios e mais limpo dos propósitos dar seqüência à bela tradição de efetividade da Justiça Eleitoral. Eu já chego estimulado com essa perspectiva, de confiar em um trabalho que tem dado certo. A Justiça Eleitoral é quem planeja, executa e apura as eleições no plano administrativo. Em seqüência vem o plano jurisdicional, que julga os “pepinos”, as broncas e as causas resultantes desse processo.

ConJur — O que deve ser a principal causa da Justiça Eleitoral neste ano?

Carlos Britto — Um dos temas, seguramente, é o controle ou não da mídia eletrônica a partir dos blogs. Isso virá à tona. A propaganda eleitoral via internet, via e-mail, via blog vai aflorar. Outro tema que virá à tona é o da vida pregressa do candidato.

ConJur — Essa discussão já não foi encerrada no caso Eurico Miranda?

Carlos Britto — Já foi. Já houve decisão no caso de Eurico Miranda, mas essa é uma questão recorrente. É lógico que isso vai voltar. Algum Tribunal pode negar registro e em grau de recurso isso chega ao TSE. O TSE vai dizer se a Justiça Eleitoral tem o poder de examinar a vida pregressa do candidato e se diante de uma situação incomum, de processos de caráter penal e administrativo, é possível fazer a distinção que eu já venho fazendo sobre a inelegibilidade. Há duas inelegibilidades. Há a inelegibilidade superveniente, quando o sujeito, por exemplo, é eleito para um cargo usando de meios escusos. E há a inelegibilidade originária ou precedente, chamada pela Constituição de condição de elegibilidade. Uma vida pregressa sem um número avultado de processos penais e por improbidade administrativa, e até isenta dessas máculas, é condição de elegibilidade? Vale dizer, é uma inelegibilidade originária?


ConJur — Mas ministro, a Câmara dos Deputados, por exemplo, já teve e ainda tem parlamentares que respondem a muitos processos na Justiça, desde homicídio até desvio de dinheiro público. Será que a Justiça Eleitoral tem de se manifestar sobre o tema ou é caso de conscientização do eleitor?

Carlos Britto — Essa é a política judiciária eleitoral. O TSE faz uma comunicação direta com o eleitor. São mensagens, são vinhetas oficiais. É da tradição estimular o eleitor a comparecer, alertá-lo para os perigos. Existe essa comunicação com os protagonistas centrais do processo eleitoral: os candidatos, os partidos e os eleitores. Essa política judiciária vai continuar. Eu tenho o meu estilo e eu posso imprimir uma mensagem novidadeira, diferenciada. Ainda estamos estudando o melhor modo de nos comunicarmos com esse público alvo, que é constituído de partidos, eleitores e candidatos.

ConJur — A Justiça Eleitoral tem um papel de orientação geral, tanto que o ministro Marco Aurélio justificou assim suas recentes manifestações sobre um programa do governo federal. Até que ponto que a Justiça Eleitoral pode e deve se manifestar?

Carlos Britto — A orientação faz parte dos cometimentos da Justiça Eleitoral, mas eu entendo que essa orientação tem uma via própria, que é a resposta às consultas. As consultas não têm carga decisória, mas têm um vetor orientador. Como presidente não falarei sozinho: “Não façam isso porque senão o tribunal vai reagir assim…”. Não vou antecipar decisões colegiadas.

ConJur — O senhor acha que o brasileiro sabe votar?

Carlos Britto — É preciso valorizar o eleitor, estimulá-lo a participar do processo e a exercer o senso critico. Mas também precisamos dizer ao eleitor que ele não é só uma vítima de eventuais maus políticos, ele também é cúmplice. Ele tem uma responsabilidade muito grande. Se o colegiado concordar, vou implementar uma idéia, que é mudar um pouco o eixo da comunicação do TSE com o eleitor nesse sentido. O voto é um dever. Não se ganha o direito de votar para se servir do voto, é para servir a coletividade. É preciso chamar o eleitor à responsabilidade. É por isso que se diz, de longa data, que o voto é uma arma e é bom dizer isso ao eleitor.

ConJur — E qual seria a melhor forma de chamar o eleitor à responsabilidade?

Carlos Britto — Recorremos à política judiciária, no plano da comunicação com o grande público. Vou ter de recorrer aos entendidos, aos jornalistas e aos comunicadores. É preciso estimular o eleitor sem deixar de dizer que a qualidade de vida política no país passa pela responsabilidade dele.

ConJur — O senhor falou do dever do voto. O que o senhor pensa sobre o voto facultativo?

Carlos Britto — É correto. Eu trabalharia nessa perspectiva do voto facultativo, porque ele opera no plano da consciência cívica. O sujeito vai lá para marcar sua presença para participar do processo livre e conscientemente. Esse casamento operacional entre a liberdade e a consciência é o ouro todo, é a glória. Ir para a urna pelo caráter da obrigatoriedade — com um ferrão nas costas, senão não poderá participar de processo licitatório ou, como funcionário público, pode ter o contracheque bloqueado — é uma ducha fria no entusiasmo. Agora, se não está obrigado e vai lá mais do que votar, para participar de movimentos ou influenciar outros eleitores… sou muito a favor do voto livre.

ConJur — O que o senhor pensa do terceiro mandato?

Carlos Britto — O presidente Lula, inteligente como é, democrata como é e sempre foi, não vai embarcar nessa aventura anti-republicana do terceiro mandato. Essa idéia do terceiro mandato é uma idéia infeliz, anti-republicana e antidemocrática. Se já foi difícil assimilar a idéia do segundo mandato consecutivo, em pleno andamento do jogo, muito mais difícil vai ser assemelhar do ponto de vista da constitucionalidade, um terceiro mandato consecutivo porque ele estilhaça toda a idéia de limite temporal. A temporariedade no exercício dos mandatos é a maior contribuição da República para a democracia. A temporariedade dos mandatos se traduz na possibilidade de renovação dos quadros dos dirigentes, e não há democracia sem renovação. E tem mais: na minha opinião, a matéria não comporta plebiscito. Não se pode convocar um plebiscito para decidir sobre esse tema e depois do plebiscito emendar a Constituição.

ConJur — Apesar de a Justiça Eleitoral ser considerada a mais rápida do país, até um mês atrás ainda estava julgando repercussões das eleições de 2004. Como resolver isso?

Carlos Britto — São gargalos. São pontos de fragilidade mesmo. Mesmo assim, esses processos não são muitos. A maioria nós já resolvemos. Agora por peculiaridade, particularidade, acidentes de percurso, e uma coisa que ninguém pode dizer de público, não que eu seja hipócrita, mas às vezes os advogados manejam muito bem os recursos eleitorais e a gente não consegue julgar. Não estou jogando a responsabilidade exclusivamente para os advogados, mas é fato que toda a Justiça brasileira padece desse problema, de instâncias recursais que se superpõem, de mecanismos processuais numerosíssimos.


ConJur — O senhor está sugerindo que o sistema recursal eleitoral também precisa de alterações legislativas?

Carlos Britto — Na verdade a Justiça Eleitoral já tem um sistema recursal diferenciado que favorece o nosso trabalho, mas vamos ver se eu posso contribuir com conhecimento de causa. Quando eu digo que posso contribuir não é que eu acredito demasiadamente na minha capacidade de inovar e na minha acuidade visual, interpretativa, para dizer que vou chegar e vou dar uma clareada nos horizontes mentais, vou quebrar paradigmas e vou implantar uma nova cultura eleitoral. É que eu sou muito aberto para sugestões e vou fazer reuniões com servidores, jornalistas e advogados, para dizer exatamente isso. Sou uma pessoa aberta, uma pessoa receptiva a sugestões e espero criar um ambiente favorável para isso. Quem tiver boa vontade e sugestões para melhorar o processo eleitoral vai encontrar da minha parte toda abertura e receptividade.

ConJur — A fidelidade partidária foi a grande resposta do TSE no ano de 2007. Qual balanço o senhor faz de um ano de fidelidade partidária?

Carlos Britto — O saldo é positivo. Nós não conseguimos fazer o equacionamento no atacado e no varejo porque era impossível. Fizemos no atacado. Basta lembrar que quem migrou antes daquela data guilhotina pode se tornar um vira-casaca compulsivo, em minha opinião. Ele pode continuar mudando, não há o que fazer com ele até 2008. Não foi possível resolver, a um só tempo, o atacado e o varejo por causa da data de corte. O meu voto foi no sentido de retroagir até a eleição. Eu e o ministro Marco Aurélio pensamos assim e perdemos. Nós sabíamos que não resolveria muita coisa no varejo, porém quando se quer quebrar um paradigma ruim, nefasto e implantar uma nova cultura muito mais arejada eticamente e democraticamente, você se contenta com o atacado. Você sabe que, a partir daquilo, uma nova mentalidade vai ser implantada.

ConJur — Qual é o futuro da fidelidade partidária?

Carlos Britto — A democracia é um processo de aperfeiçoamento. É um processo cumulativo de qualificação. A democracia é crescentemente superavitária, ela incorpora mais saldos à sua conta bancaria e aos seus estoques de boas novidades. Nesse crescendo democrático, nós estamos pugnando pela fidelidade do filiado ao seu partido, mas em um segundo momento, nós encontraremos mecanismos para impedir, ou pelo menos dificultar, o mandonismo partidário, a oligarquia endógena partidária. Nós vamos chegar a esse ponto. O aperfeiçoamento também vai passar por esses questionamentos das figuras dos donos dos partidos, porque nós temos recebido esse tipo de queixa e é procedente. Os filiados dizem: “Vocês nos cobram fidelidade. A fidelidade a um partido que tem dono dirigido por oligarcas, cesaristas, mandões, coronéis, de terno e gravata”. Eles estão certos. Nós vamos aperfeiçoar o processo para divulgar essa idéia e criar mecanismos de que o partido tenha um compromisso, deva respeito a si mesmo, deva fidelidade a si mesmo. A primeira fidelidade é a do partido para com o seu programa e para com o processo democrático. Nós vamos descobrir mecanismos viabilizadores dessa idéia. Nós vamos chegar, já estamos chegando nessa fase da cobrança da fidelidade dos partidos ao seu programa e ao processo democrático, e aí o mandonismo, o cesarismo partidário, vai ser questionado.

ConJur — Tem uma discussão na pauta do TSE que passa pela fidelidade do eleito ao partido e do partido a ele mesmo, que é a discussão das regras do quociente eleitoral. O senhor está com pedido de vista neste caso. O senhor não acha que essas regras atuais forçam os partidos a fazer coligações? Não põem em risco a própria fidelidade partidária?

Carlos Britto — Eu já tenho dito que o dogma é para ser convertido em problema. É para ser problematizado, analisado e estudado como todo problema. Se depois de problematizado, o dogma resiste a uma crítica consistente, devida, isenta, ele deve ser mantido e reverenciado de joelhos e mãos postas. Agora, se ele não resiste, é preciso ter coragem para estilhaçá-lo. O quociente eleitoral é um dogma. Ele resiste a uma análise na perspectiva, por exemplo, do eleitor soberano? A Constituição diz que o eleitor é soberano. O poder mais alto é o poder soberano. A soberania é o que está acima de tudo e acima de todos. O eleitor soberano, então, diz: “Eu vou votar em fulano de tal, filiado a tal partido” ou “eu não vou votar em nenhum candidato nominalmente, eu vou votar por sigla, nesse partido”. Aí vem a lei e diz que o partido que não conseguir o quociente eleitoral não se aproveita nem dos votos que lhe foram dados, nem seus candidatos se aproveitam dos votos que foram dados e partidos de candidatos que não tiveram votos se apropriam desses votos. O eleitor volta e diz: “Meu voto foi para onde? Não foi para meu candidato? Não, não foi. Não foi para o meu partido? Não, não foi. Espera aí, foi para um candidato de um partido que eu não votei”. Que soberania é essa?


ConJur — Tem um caso emblemático, o do município de Juatuba, em que um único partido atingiu o quociente eleitoral e ficou com todas as cadeiras da câmara legislativa. Isso não é uma distorção?

Carlos Britto — Veja, não estou antecipando o meu voto, estou fazendo um questionamento. Eu já confirmei o que os sábios do direito já diziam desde sempre: quando o seu senso de justiça material reage a uma praxe, a uma tradição, preste atenção, ali está ou pode estar a grande oportunidade para se dar um salto quântico, de qualidade, para quem tiver coragem de problematizar os dogmas. Vão me dizer que o sistema é proporcional. Mas a gente não pode trabalhar com o sistema proporcional de outro modo, que não signifique uma apropriação indébita de votos do eleitor soberano? Isso é uma apropriação indébita. Não é possível bolar um sistema de representação proporcional impeditivo dessa apropriação. Nós temos um ranço autoritário que se disfarça, que se encobre, que se mascara. A quem serve o quociente eleitoral como cláusula de exclusão partidária, cláusula de barreira? Aos grandes partidos. É um mecanismo autoritário e elitista.

ConJur — Essa questão do quociente eleitoral, da fidelidade, são temas que rondam uma reforma política discutida eternamente no Congresso Nacional. Como é que o TSE pode contribuir para essa reforma política?

Carlos Britto — Esse ativismo judiciário se dá no campo interpretativo, não é no campo legislativo. Eu nunca concordei com essa idéia de que nós estamos usurpando função. Não estamos. Esse nosso ativismo judiciário no campo interpretativo, ou seja, extraindo de velhos dispositivos jurídicos angulações normativas novas, isso faz parte do processo interpretativo, isso ajuda o Congresso Nacional a meditar sobre os temas e a ocupar o espaço que é dele. Qual é o espaço dele? É o legiferante. Então na medida em que a gente se antecipa no plano interpretativo apontando aspectos, visualidades, propriedades normativas, novas de velhos dispositivos, o Congresso se sente motivado.

ConJur — Aconteceu isso com a fidelidade partidária…

Carlos Britto —Aconteceu. É o novo olhar, o olhar democrático sobre o dispositivo, que pode desencadear uma reação normativa nova. Quem afirma isso no nível microscópico ou subatômico é a física quântica, que faz revelações extraordinárias. Ela diz que as coisas estão em movimento, que dialogam, se encontram, se interpenetram e se modificam. O observador, o cientista, consciente, atento, desencadeia reações no objeto, que acontece na realidade do observador e, em certa medida, do jeito que o observador quer. Se transportar isso para a área jurídica, o operador jurídico atento, consciente, tocado de pureza democrática, ética, projeta um novo olhar sobre o dispositivo que, por sua vez, revela uma angulação normativa imperceptível até então. É o que nós temos feito. Vamos ter boas novidades.

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