Propaganda e informação

Entrevista: Luís Roberto Barroso, advogado

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24 de junho de 2008, 19h42

Barroso - por SpaccaSpacca" data-GUID="barroso.png">Na tarefa de diferenciar propaganda eleitoral de informação jornalística deve ser aplicado o princípio in dubio pro liberdade de expressão. A opinião é do advogado Luís Roberto Barroso, para quem a Justiça não deve ser excessivamente rigorosa ao julgar casos de entrevistas de pré-candidatos à imprensa sob pena de sufocar a circulação de idéias. “É cada vez mais recorrente a percepção de que o debate travado no espaço público é essencial para a democracia”, diz.

Nas últimas semanas, diversos veículos de comunicação foram acionados por entrevistar candidatos às eleições municipais deste ano. Em São Paulo, o Ministério Público Eleitoral entrou com representações contra a pré-candidata à prefeitura Marta Suplicy (PT-SP), o atual prefeito Gilberto Kassab (DEM-SP), e os jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo e a revista Veja São Paulo.

A candidata petista, a Folha e a Vejinha foram multados pela Justiça Eleitoral e já recorreram ao Tribunal Regional Eleitoral paulista. Nesta terça-feira (24/6), na tentativa de aplacar a polêmica, o presidente do TSE, ministro Carlos Britto, chegou a propor a liberação das entrevistas de pré-candidatos (clique aqui para ler).

Em entrevista ao Consultor Jurídico, Barroso ressaltou que é dever do político prestar contas de seus atos e considera aceitável que a imprensa ouça as opiniões de pré-candidatos a respeito de temas políticos — não apenas a respeito de suas opiniões sobre cachorros e música.

Barroso destacou que multar os veículos e os candidatos no período pré-eleitoral arranha o princípio da liberdade de expressão. Ele ressaltou, por exemplo, que quando uma personalidade é entrevistada e dá sua opinião, ela poderá auxiliar determinado candidato ou idéia. Mas, “apesar disso, não parece defensável o banimento das opiniões e discussões políticas”.

Na entrevista, Barroso tratou ainda das diferenças na regulamentação da propaganda eleitoral nos diferentes meios de comunicação, como TV, rádio, mídia impressa e internet. E, a respeito da rede mundial de computadores, ressaltou que é muito difícil, “senão impossível, organizar um conjunto de restrições eficazes e adequadas no ambiente virtual”.

O advogado Luís Roberto Barroso é professor de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, livre-docente e doutor pela mesma instituição, e mestre em Direito pela Universidade de Yale, nos Estados Unidos.

Leia a entrevista

ConJur — De acordo membros do Ministério Público, o problema não é a entrevista feita com os candidatos, e sim a apresentação de suas plataformas políticas nos meios de comunicação. Esse argumento justifica a aplicação de multa aos pré-candidatos e aos veículos de imprensa que os entrevistaram?

Luís Roberto Barroso — É preciso registrar que a decisão segue a orientação firmada em outros precedentes sobre questões conexas. A legislação eleitoral (Lei 9.504/97) estabelece uma data inicial para o início das campanhas e veda a divulgação de propaganda em data anterior. Em algumas oportunidades, a Justiça Eleitoral tem entendido que a menção a propostas específicas ou mesmo a qualidades do candidato caracterizam propaganda e, portanto, seriam vedadas. Por outro lado, a crítica a adversários políticos, por si só, seria aceitável.

ConJur — O senhor concorda com essa orientação?

Barroso — Não me parece que essa orientação seja a mais adequada. A dificuldade é distinguir a propaganda de outras manifestações de opinião, que podem ser legítimas. A minha convicção é de que esse juízo não deve ser excessivamente rigoroso, em homenagem aos princípios da liberdade de expressão e informação. Na verdade, é cada vez mais recorrente a percepção de que o debate travado no espaço público é essencial para a democracia. O ideal é que essa discussão se produza de forma continuada, a fim de criar um ambiente republicano de fiscalização do poder e produção de idéias. Nesse sentido, tendo a considerar aceitável que um veículo de comunicação ouça as opiniões de um pré-candidato a respeito de temas políticos. E igualmente normal que esse indivíduo emita juízos de valor sobre a Administração atual, seus opositores e também suas próprias propostas.

ConJur — E isso não significará, necessariamente, que o candidato esteja fazendo propaganda.

Barroso — A interpretação deve ser in dubio pro liberdade de expressão. Isso afasta qualquer forma de divulgação paga — que constitui inequivocamente propaganda — e também campanhas louvatórias, quando caracterizadas de forma manifesta. Um bom parâmetro seria a abertura de determinado veículo a idéias opostas. Um jornal ou revista que se proponha a entrevistar todos os candidatos a determinado cargo eletivo não deve, em princípio, ser censurado sob a alegação de estar veiculando propaganda.


ConJur — O juiz Marco Antonio Martins Vargas, que aplicou a multa à imprensa no caso das entrevistas com a Marta Suplicy, disse que não houve censura. Nas palavras dele “o que se deve ponderar é que, numa análise sobre dois princípios constitucionais, tende a haver um equilíbrio entre eles”. É correto esse raciocínio?

Barroso — É tecnicamente correto. O juiz se referiu à chamada ponderação de interesses, que é uma técnica de decisão aplicável ao conflito entre princípios constitucionais, que são dotados de igual hierarquia. A liberdade de expressão, que é protegida pela Constituição, pode se chocar com outros interesses legítimos, protegidos por normas como os princípios da igualdade e democrático. Seria o caso, por exemplo, do interesse de evitar que um candidato dotado de maior poder econômico se valha dessa circunstância para dominar amplamente a campanha. Vale destacar, porém, que se trata de uma técnica de decisão. Isso não significa que a decisão concreta tenha sido necessariamente adequada.

ConJur — O Ministério Público Eleitoral tem condições de determinar e diferenciar claramente o que é propaganda e o que é informação?

Barroso — Essa é uma distinção muito difícil, uma vez que a informação em geral dificilmente é neutra. Um mesmo fato pode ser narrado sob inúmeros pontos de vista e é inevitável que sejam escolhidos pontos de ênfase. Além disso, em matéria eleitoral, parece extremamente difícil distinguir uma avaliação política isenta de uma peça de propaganda. Quando uma personalidade é entrevistada e dá sua opinião, é certo que ela poderá auxiliar determinado candidato ou idéia. Apesar disso, não parece defensável o banimento das opiniões e discussões políticas. Ao contrário, o que se defende é a expansão do debate público livre, dando-se a todos os interessados a chance de tecer suas críticas ao que for proposto. Uma intervenção estatal, ainda quando bem intencionada, dificilmente deixará de sufocar esse ambiente republicano. Assim, a intervenção parece adequada apenas nos casos extremos, para afastar manipulações evidentes do debate.

ConJur — Por que a sanção não atinge da mesma maneira televisão, rádio, internet e veículos impressos? A candidata Marta Suplicy, por exemplo, concedeu entrevista à Rádio CBN e a emissora não foi multada.

Barroso — O fato de a multa não ter sido aplicada em determinado caso específico não significa que a mídia em questão esteja imune a restrições. A aplicação de sanção depende da instauração de processo e de uma sentença condenatória. Ou seja, ainda que um processo tivesse sido instaurado, o juiz encarregado do julgamento poderia entender — como me parece mais adequado — que uma entrevista não deve ser tratada como propaganda. Salvo se for paga, naturalmente, o que a transformaria em uma peça de publicidade. Vale destacar que essa linha restritiva da Justiça Eleitoral tende a se tornar cada vez mais artificial, sobretudo por conta das divulgações realizadas na internet.

ConJur — É bastante complicado regular uma questão como essa no ambiente eletrônico, não?

Barroso — Como proibir que um eleitor, simpatizante de determinado candidato, veicule opiniões elogiosas, que alcançarão uma quantidade significativa de destinatários? E como impedir que os partidos se valham dessa brecha para veicular propaganda dissimulada? Existe até um projeto de lei, de 2008, a respeito da propaganda via internet, dos deputados Jorge Bittar e Paulo Teixeira, mas me parece muito difícil, senão impossível, organizar um conjunto de restrições eficazes e adequadas no ambiente virtual. Provavelmente serão beneficiados os candidatos dispostos a se valer de pessoas interpostas, contrariando a lógica do sistema.

ConJur — Há casos de multas em eleições anteriores em razão de entrevistas concedidas por pré-candidatos?

Barroso — Há precedentes e a tendência tem sido restritiva, considerando que a menção a projetos de governo ou mesmo a qualidades pessoais do candidato configura propaganda.

ConJur — A divulgação de obras e iniciativas do governo também não configura propaganda eleitoral antecipada, por exemplo? Qual a diferença?

Barroso — Sobre a propaganda dos programas de governo, há norma constitucional específica. O artigo 37, parágrafo 1º, admite essa forma de divulgação, desde que não contenha nomes, símbolos ou imagens que possam configurar promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos. Na prática, é natural que esse tipo de propaganda institucional beneficie os partidos de situação, mas se entende que o interesse na prestação de contas é mais relevante, justificando-se apenas à vedação de referências explícitas aos agentes envolvidos. Isso apenas evidencia a já mencionada dificuldade de se produzir qualquer manifestação inteiramente isenta. O cerceamento das discussões políticas sufoca o debate e a circulação de idéias.


ConJur — Não é obrigação do político prestar contas de seus atos como representante eleito do povo?

Barroso — Sem dúvida. Inclusive a Constituição faculta a qualquer cidadão o exercício de fiscalização desses atos, por meio da solicitação de informações, de representação aos órgãos de controle — como os Tribunais de Contas —, ou mesmo pela propositura de ações judiciais. A Constituição, em seu artigo 5º, LXXIII, permite que qualquer cidadão ajuíze ação popular para anular ato que considere lesivo ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio-ambiente ou ao patrimônio histórico e cultural. Permite também, como referido, que o governo veicule propaganda institucional, vedando apenas que sejam divulgados nomes, símbolos ou imagens que relacionem a atividade pública a agentes específicos, de forma ostensiva. Por outro lado, como evitar que o presidente da República ou governador de estado concedam declarações a imprensa, ou concedam entrevistas, ainda quando venham a concorrer a um novo mandato? Volta-se ao mesmo ponto: as restrições de que se trata têm um custo muito alto, sufocando o debate público.

ConJur — Na sua visão, o que diferencia a informação jornalística da propaganda eleitoral?

Barroso — A propaganda eleitoral, como a publicidade em geral, destina-se deliberadamente a convencer, a obter adesões para determinado candidato ou idéia. A matéria jornalística deve ser desinteressada, o que é diferente de neutra. A neutralidade absoluta é uma propriedade que vai bem em rochas e outros objetos inaminados. Seres humanos têm preferências, idéias pré-concebidas, crenças, valores. Assim, é muito difícil que o relato de um fato — e mais ainda a exposição de uma idéia — possam ser atividades inteiramente neutras. O jornalismo não deve ser parcial, no sentido de estar associado a determinado grupo, por interesses próprios. É certo que é uma distinção tênue, mas essa é uma circunstância inevitável quando se lida com princípios contrapostos e igualmente válidos. O tratamento de conceitos parcialmente indeterminados é uma constante no Direito contemporâneo e seria difícil escapar a isso em um domínio marcado por tantas sutilezas. A alternativa de restringir a liberdade de expressão, em caráter geral, sufocando o debate público, me parece o pior caminho disponível.

ConJur — Deve-se aplicar aos jornais e revistas as mesmas regras que se aplicam às emissoras de rádio e televisão, que são concessões públicas?

Barroso — Entendo que não. E não apenas em razão do aspecto mencionado — atividade privada Vs. concessões —, ao qual nem atribuo tanta ênfase, já que a atividade jornalística desempenha função social relevante, qualquer que seja a mídia. O elemento mais importante seria a diferença de penetração. O rádio e, sobretudo, a televisão atingem um público mais abrangente. De forma ainda mais importante, a conduta dos seus destinatários é essencialmente passiva. A mensagem chega às casas sem ter sido solicitada. É verdade que se pode trocar de canal ou emissora, mas nem sempre há opções variadas e pode haver atrativos diversos que acompanhem determinado conteúdo. No caso de jornais e revistas, o público escolhe o produto e o adquire de forma específica. Entendo que essa diferença justifica tratamentos diversos. Como já ocorre, aliás. A propaganda em rádio e televisão só pode ser gratuita, ao contrário da mídia impressa, que pode veicular material pago, informando essa circunstância (Lei 9.504/97, artigo 44).

ConJur — A lei, quando estabelece um prazo para propaganda eleitoral, não está se referindo a propaganda eleitoral gratuita no rádio e televisão?

Barroso — Não me parece. A Lei 9.504/97 estabelece esse marco em caráter geral, no seu artigo 36. A partir do seu artigo 42, passa a tratar de forma específica da propaganda em rádio e televisão. A leitura correta da lei, a meu ver, envolve uma interpretação restritiva do conceito de propaganda, conforme mencionado antes. Englobaria quaisquer manifestações pagas e também campanhas manifestamente louvatórias. Por outro lado, ficariam de fora os debates políticos produzidos no espaço público e com pretensão jornalística, como entrevistas e matérias de imprensa.

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