Folha corrida

Aceitar candidato com ficha suja é desistir de instituições sadias

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23 de junho de 2008, 18h52

No dia 10 de junho de 2008, o Tribunal Superior Eleitoral decidiu, por sua maioria, que os políticos que são réus em processos criminais, em ação de improbidade administrativa ou em Ação Civil Pública, sem condenação definitiva, isto é, sem sentença transitada em julgado, podem se candidatar nas eleições de 2008.

Os argumentos sustentados pelo relator do processo da consulta, ministro Ari Pargendler, e demais ministros, que o acompanharam, foram no sentido de que a lei de inelegibilidades (Lei Complementar 64/1990) já limita os critérios para a concessão de registro de candidaturas e que “o poder judiciário não pode, na ausência de lei complementar, estabelecer critérios de avaliação da vida pregressa de candidatos para o fim de definir situações de inelegibilidade”.

Contrária e corretamente, os três ministros vencidos, Carlos Ayres Britto, Joaquim Barbosa e Felix Fischer, defenderam, entre outros aspectos, a competência da Justiça Eleitoral para apreciar os pedidos de registro de candidatura a cargo político na perspectiva da vida moral pregressa do político, enfatizando que a Constituição não exigiria do exercente do cargo um padrão de moralidade que já não fosse a natural continuação de uma vida pregressa também pautada por valores éticos.

Sem dúvida alguma, a decisão do TSE vem de encontro, como uma onda avassaladora, aos justos anseios de moralidade pública manifestados pela população, causando, a um só tempo, estupor, descrédito no poder judiciário e, acima de tudo, uma generalizada impotência no povo no sentido de não haver jeito de melhorar as instituições públicas. De outra sorte, a infeliz decisão alimenta a participação de pessoas inescrupulosas seja na administração de recursos públicos (prefeitos e governadores), seja na elaboração de leis (vereadores, deputados estaduais e federais e senadores).

O raciocínio esposado pela maioria dessa Corte de Justiça Eleitoral não convence, data vênia, já que a Constituição (artigo14, §9º) determina que a lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade, além dos especificados na própria Constituição, a fim de proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato.

A determinação constitucional constitui um comando e não é, apenas, uma opção legislativa infraconstitucional. Ora, se os congressistas, legislando em causa própria, ignoraram o preceito constitucional e fizeram constar da lei complementar um óbice intransponível quanto à averiguação da vida pregressa do candidato, ou seja, a exigência de condenação transitada em julgado, a qual, como se sabe, é demorada de se obter, pois no Brasil os processos criminais perduram por anos e anos, em razão dos inumeráveis recursos interpostos e diligências requeridas pelo réu, eles, protegendo-se, agiram com espírito corporativo e contrariaram a intenção clara, precisa e manifesta da Carta Política. Assim, a Lei Complementar 64/90 (artigo 1º, alínea “e”), salvo melhor juízo, é, nessa parte, inconstitucional.

Atente-se, ainda, que a própria Carta Política, em seu artigo 37, também erige o princípio da moralidade como uma das condições para a validade dos atos da administração pública. Logo, esse princípio, que prevalece sobre as próprias normas constitucionais e muito mais sobre a lei complementar ou ordinária, não pode ser olvidado. Como pressupor que um candidato eleito, que responda criminalmente perante a justiça por corrupção ou improbidade administrativa, vá exercer o seu cargo e praticar atos administrativos com dignidade, decência e lisura? Pode até acontecer, mas será em virtude de uma milagrosa exceção.

A meu ver, a decisão do TSE afronta o princípio constitucional da moralidade. Este permeia não só os atos dos agentes políticos e servidores públicos, mas se entranha também na sua própria conduta, atual e pregressa. O julgado deprecia, ainda, a própria Justiça, eis que a denúncia já foi recebida e/ou o candidato já foi condenado por sentença, ainda que em primeiro grau. Ou seja, para o TSE — numa visão simplista, puramente legalista, positivista e técnica, de extremado amor à literalidade da lei e desconsiderando a vontade do povo, expressa na Constituição, que exige uma vida pregressa ética do candidato — nada vale a condenação judicial deste nas instâncias inferiores, já que está sujeita a recurso.

Também, inacreditavelmente, para o TSE não tem significação alguma o fato de a denúncia ter sido recebida diretamente pelo próprio Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte de Justiça do país.

Não há que se invocar o princípio da inocência, restrito à dimensão penal, já que o princípio da moralidade é mais amplo, como o são, regidos por ele, o Direito civil e o administrativo. Mesmo sob o princípio da inocência o réu da ação penal pode ter alguns direitos restringidos, como no caso de prisão cautelar, provisória ou preventiva. Ele continua sendo considerado inocente, pois ainda não há sentença transitada em julgado, mas pode, eventualmente, responder ao processo na condição de preso. O mesmo acontece no campo político, onde se maximiza o exame da moralidade.

A elegibilidade pode sofrer restrições ante a comprovação, no exame da vida pregressa do candidato, da prática de atos tidos como imorais, principalmente quando denotados por ações penais, civis públicas ou de improbidade administrativa, em que seja réu, em processos em curso perante a justiça.

A Constituição, no que tange ao exercício do cargo e função públicos, por agente político ou servidor concursado, não abre mão do exame da vida pregressa do pretendente, ou seja, da exigência de uma conduta moral ilibada no passado. Se essa condição é exigida para os juízes e para os servidores públicos em geral, também o deve ser em relação aos políticos. Para todos eles, sem distinção — a Constituição é cega nesse aspecto, não distinguindo ninguém, em face do princípio da igualdade de todos perante a lei — o signo da moralidade se revela por atos diuturnos que não infrinjam os preceitos éticos de honestidade, idoneidade, lisura e decência. A pena, para os que não o detêm, no caso dos cargos eletivos, é a inelegibilidade. Se já eleito, é a perda do mandato, sem prejuízo das ações penal e cível.

O virtual acesso do eleitor — aquele que tiver fervor excepcional e inusitado interesse e se dispuser a enfrentar com paciência a burocracia forense — à ficha criminal do candidato, a ser permitido pelo TSE, conforme declarado na imprensa, não satisfaz, de maneira alguma, a exigência constitucional de o político comprovar sua vida pregressa pautada pela moralidade.

Não se argumente que o dispositivo infraconstitucional, ao exigir a condenação definitiva, protege o cidadão contra falsos processos crimes engendrado pelo Estado, a fim de evitar a sua legítima candidatura. É de se ver que, quando o judiciário recebe a denúncia penal, que pressupõe a comprovação nos autos da materialidade do delito e indícios de autoria, o fato tido como criminoso já passou pelo crivo da polícia (indiciamento no inquérito policial) e do ministério público (autor da denúncia), que são órgãos distintos, ambos vinculados ao executivo, sendo que este último tem caráter permanente e goza de independência e isenção. Sua missão primordial é a de, justamente, defender a sociedade civil e o patrimônio público, como titular da ação penal incondicionada e da Ação Civil Pública (CF-artigos. 127 e 129).

Por outro lado, a Constituição nunca pode ser interpretada como se fosse uma lei ordinária ou complementar. É de superior hierarquia. Há de se considerar os fins nela objetivados para cujo alcance todo esforço interpretativo deve ser empregado. Quando a Constituição emite um comando, que não pode ser ignorado por ninguém, ela autoriza, simultânea e implicitamente, o emprego de todos os meios necessários para sua realização.

Considerando que em nosso país o executivo sempre foi muito poderoso, necessitando de limitação, e o legislativo apresenta-se com feição frágil e fisiológica, o judiciário, que também não escapa de sua tibieza histórica, esquece-se de sua função de freios e contrapesos (checks and balances) — o dever de controlar o exercício constitucional dos dois outros ramos governamentais de modo que nenhum deles se sobreponha aos demais — ao deixar de fortalecer o poder legislativo. Para isso, basta à justiça eleitoral considerar inelegíveis os candidatos que sejam réus em processos criminais em curso, cuja reputação, agora maculada, deixou de ser ilibada.

Não o fazendo, ele amplia, ainda, a imoralidade no poder do executivo, ao permitir a posse nos cargos públicos de pessoas inidôneas. Também, enfraquece a si próprio, pois os poderes eleitos (legislativo e executivo), de que tais elementos venham a participar, estarão sempre conluiados para anular o poder político do judiciário, restringindo sua competência ou esvaziando sua jurisdição, seja por meio de leis, ou de emendas constitucionais, como se viu em 1926, no governo de Artur Bernardes, em 1937, com Getúlio Vargas e, recentemente, em 1968, durante a ditadura militar, no AI-5.

Data vênia, o TSE perdeu uma excelente oportunidade de ajudar a construir um país com instituições fortes e sadias.

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