Pressão econômica

Advocacia de Estado deve ser blindada contra poder dos políticos

Autor

21 de junho de 2008, 0h00

O recente noticiário político, em torno de supostas pressões para que fosse autorizada a venda da VarigLog para um fundo de investimento norte-americano, traz à tona uma importante discussão para a sociedade brasileira, no que diz respeito à fragilidade do controle interno de legalidade da Administração Pública Federal.

Segundo as denúncias trazidas a público pela ex-diretora da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), Denise Abreu, o então procurador-geral da agência reguladora teria sido compelido, em plena internação hospitalar, a alterar um parecer jurídico para que o órgão deixasse de exigir a comprovação de composição de capital exigida para a operação.

A resistência em alterar outro parecer jurídico, relacionado à sucessão tributária da Varig, teria custado o cargo ao procurador-geral da Fazenda Nacional.

Muito embora seja muito cedo para que sejam tiradas conclusões definitivas sobre o episódio em si, é certo que as denúncias revelam um grave problema no arcabouço legislativo da Advocacia-Geral da União, órgão que abrange os dois cargos mencionados e a quem a Constituição atribuiu, por meio da atividade jurídica consultiva, o controle interno de legalidade dos atos do Poder Executivo Federal.

Referimo-nos ao fato concreto de que, malgrado não se possa afirmar que esses eventos efetivamente tenham ocorrido da maneira como apresentados pelos jornais, a atual disciplina legal da Advocacia de Estado não protege os titulares de seus órgãos de pressões políticas, de modo que em tese, tudo o que se afirmou é perfeitamente possível.

O problema é muito grave, e inclusive já foi identificado pelo Congresso Nacional, que infelizmente não tem tratado o assunto com a rapidez de que a sociedade precisa. As recentes denúncias, no entanto, tornam oportuno retomar o debate a respeito da Proposta de Emenda Constitucional 82/07, apresentada ano passado pelo deputado federal Flávio Dino (PCdoB-MA), que tenta corrigir o estado de coisas atual e suprir deficiências históricas no desenho institucional do controle de legalidade da Administração Pública, ao prever expressamente as necessárias autonomias administrativa, funcional e financeira para a Advocacia de Estado, instituição que é representada no plano federal pela Advocacia-Geral da União, e nos estados, pelas respectivas procuradorias. Essas alterações, mais do que interessantes, são imprescindíveis para o aperfeiçoamento do Estado brasileiro.

Antes de qualquer coisa, é necessário esclarecer que a autonomia para a AGU não gera nenhuma redundância, diante da circunstância de o Ministério Público contar com essa mesma prerrogativa, porque as duas instituições têm funções complementares entre si, e um modelo eficaz de controle contra a corrupção precisa da integração dos enfoques próprios a cada uma.

É certo que o Ministério Público necessita da independência para processar criminalmente o mau administrador, e sua autonomia é ferramenta imprescindível para isto. Mas a Advocacia-Geral da União é quem tem posição estratégica para combater a corrupção no aparelho do Estado, porque a atividade de consultoria ao Poder Executivo a coloca naturalmente em condições de analisar cada convênio, cada licitação, cada contrato que possa dar ensejo à liberação de verbas públicas.

Se houver irregularidades, o advogado da União irá sempre detectá-las no nascedouro, podendo evitar os seus danosos efeitos para a sociedade. Já o Ministério Público depende do recebimento de representações, da descoberta dos fatos no curso do processo penal, ou de outros meios aleatórios pelos quais a ilegalidade (já consumada) seja levada ao seu conhecimento. Dada a sua posição institucional, tudo o que ele pode conhecer é uma amostragem da corrupção que desperdiça os recursos obtidos pelo Estado à custa da boa vontade e do sacrifício dos contribuintes, em uma atuação repressiva e tardia. Porém, quem está em condições de fazer o pente fino, para erradicar de fato esse mal de maneira preventiva, é o advogado público.

Assim, se quisermos que o combate à corrupção, mais do que pirotécnico, seja de fato eficiente, a Advocacia de Estado é a instituição que deve ser blindada contra o poder dos políticos.

No entanto, atualmente, o que se vê na esfera federal é que a ausência de autonomia administrativa permite que os consultores jurídicos que prestam a assessoria jurídica para cada um dos ministérios sejam nomeados por critérios subjetivos, dentre profissionais que não integram a advocacia pública, e que muitas vezes estão habituados a defender, em suas bancas privadas, justamente os interesses opostos aos da administração. Não é de se espantar que a atuação desses profissionais, ocupantes transitórios de cargos em comissão na Advocacia-Geral da União, não seja das mais rigorosas. E se quiserem assim fazer, nada os impede de produzir os chamados pareceres “encomendados”, descompromissados da lei e do interesse público, ou de simplesmente “fecharem os olhos” para fragilidades jurídicas menos óbvias.

O cenário fica ainda mais grave, porém, porque tais consultores têm os meios de reproduzir a “política de vistas grossas” com o exercício de violentas pressões de natureza econômica sobre os advogados públicos remanescentes no quadro consultivo, pois é uma verdade amplamente reconhecida que estes profissionais, a quem o governo impõe remuneração correspondente à metade das demais carreiras jurídicas, somente têm condições de perceber um salário digno de suas funções, se ao subsídio inerente ao cargo efetivo for cumulada uma das funções de confiança de livre nomeação e exoneração do Poder Executivo, os chamados “cargos de Direção e Assessoramento Superior” (DAS).

Por fim, a mesma falta de autonomia possibilita a usual usurpação das atribuições da advocacia pública, constitucionalmente estabelecida, por profissionais contratados em comissão para a área administrativa dos ministérios, em uma situação altamente irregular, mas muito freqüente no governo.

Quanto à autonomia funcional, muito embora haja tênues linhas normativas que permitam ao advogado público defender seu posicionamento técnico-jurídico, emprestadas do Estatuto da Advocacia, a verdade é que este profissional estará sujeito a inúmeros inconvenientes se ousar divergir das pressões políticas que conflitem com a legalidade. Um desses fatores, já mencionado, liga-se a questão remuneratória: o advogado público que sustente seu posicionamento técnico em contrariedade ao imperativo político pode ser livremente exonerado do cargo DAS, e privado da dignidade remuneratória que, por lei, é assegurado às demais instituições de controle da legalidade dos atos do Estado.

Mas essa é a menor das conseqüências a que ele estará sujeito, porque nada no atual arcabouço legislativo impede que um advogado público, reiteradamente “inconveniente” para o administrador público que ele deve fiscalizar, seja removido, de um dia para o outro, do local ou setor onde exerce suas atividades. Já aqueles ocupantes de cargos de hierarquia mais alta (Procuradoria-Geral e Consultoria-Geral da União, Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional), sem a garantia de um mandato fixo, podem ser livremente exonerados pela simples expressão de seu pensamento jurídico em temas mais “sensíveis”.

Percebam os leitores, neste ponto, que não se trata aqui de conjecturas e paranóia. É fato que os avanços sobre a liberdade técnica da advocacia pública são freqüentes e gravíssimos: houve notícia, este ano, de que consultor jurídico de importante ministério teria chegado ao extremo de baixar determinação de que somente poderiam ser anexados aos processos administrativos os pareceres jurídicos previamente aprovados pela chefia, restringindo a publicidade das objeções técnicas que estejam em desacordo com a vontade do órgão. Ora, discordar de um parecer jurídico, fundamentadamente, é uma coisa; censurá-lo, para que se permita ao administrador público posteriormente dizer que não foi advertido da ilegalidade de suas pretensões, é outra completamente diferente.

Quanto à autonomia financeira, trata-se no fundo de instrumento das outras duas. A liberdade de fiscalização da legalidade no governo não é compatível com o estrangulamento econômico da instituição, que precisa de estrutura material, e da capacidade de reter recursos humanos qualificados para exercer funções de alta responsabilidade, e vitais para que o Poder Público se paute cada vez mais pelos princípios da legalidade, da impessoalidade e da democracia.

Diante desses elementos, a sociedade brasileira espera do Congresso Nacional uma contribuição à altura de todos os seus sacrifícios para que o combate à corrupção adquira as condições necessárias para ser feito de forma profissional, eficaz e impessoal. A aprovação da PEC 82 terá um importante papel nessa tarefa, e certamente eliminará as atuais suspeitas sobre a isenção dos pareceres jurídicos que embasam os atos do governo federal.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!