Punição zero

Com Lei Seca, Congresso mostra que não aprendeu com erros

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29 de julho de 2008, 13h06

Quando a Lei 9.503 instituiu em 1997 o Código de Trânsito Brasileiro, a redação original de seu artigo 165 exigia que o motorista tivesse mais de seis decigramas de substância etílica por litro de sangue para que a infração administrativa de embriaguez ao volante pudesse ser caracterizada.

À época, muitos doutrinadores alertaram que o Código teria adotado um critério muito rigoroso para punir, administrativamente, o motorista que dirigia após ingerir bebida alcoólica, já que o nível de concentração mínima de álcool no sangue não podia ser constatado por meio de um exame clínico ou por mera declaração do agente de trânsito.

Para a doutrina, o exame de cada caso concreto consistiria em um critério de aferição muito mais adequado à hipótese, na medida em que “não ocorre uma relação exata e obrigatória entre a quantidade de álcool no sangue e as repercussões no sistema nervoso” [Reale Júnior, Miguel, Crime de Embriaguez ao Volante, RT 450/340]. Vale lembrar aqui que o tipo do artigo 165 do Código de Trânsito não exigia a constatação do estado de embriaguez para a configuração da infração administrativa de trânsito, mas tão somente a influência de álcool na condução de veículo automotor pelo agente.

Nada obstante, foi preciso que decorressem quase 10 anos de vigência daquele diploma legal para que o Congresso Nacional se desse conta da impossibilidade de se punir administrativamente os infratores que se recusavam a realizar o testes de alcoolemia previstos no Código. É que, como bem afirmou o autor das modificações originais propostas ao artigo 165, deputado Beto Albuquerque, “[apesar dos testes de alcoolemia] constituírem a prova de que o condutor se encontra ou não embriagado e, conseqüentemente, serem capazes de configurar a infração ou o crime de trânsito, pelo direito brasileiro, ninguém é obrigado a fazê-los. Desta forma, não haveria como caracterizar o delito. Conseqüentemente, isso acaba gerando a impunidade, o que é inadmissível, pois todos sabemos que um dos maiores responsáveis por acidentes de trânsito é o estado de embriaguez dos condutores” [Projeto de Lei 735, de 2003].

Com efeito, na medida em que a jurisprudência de nossos tribunais amplia a cláusula da ampla defesa e de outros preceitos constitucionais, como o da presunção de inocência, para daí extrair o entendimento de que ninguém está obrigado a fazer prova contra si mesmo, não era mesmo de se esperar que os condutores flagrados pela fiscalização se auto-incriminassem, soprando o bafômetro ou permitindo a coleta de seu material sanguíneo, o que inviabiliza, por óbvio, a obtenção da prova necessária à caracterização da embriaguez ao volante.

A medida legislativa projetada consistia, portanto, em combater a recusa do condutor em realizar os testes de alcoolemia, permitindo que a infração administrativa também pudesse ser caracterizada por notórios e incontestáveis sinais de embriaguez, aos olhos de qualquer testemunha. O agente de trânsito passaria a poder descrever os sintomas de influência alcoólica do condutor que se negasse a realizar o exame de bafômetro, e lavrar a autuação, sem que estivesse limitado pela concentração etílica ao qual a lei fazia referência.

O referido projeto, que após a sua propositura deu origem à Lei 11.275, de 7 de fevereiro de 2006 — modificou, radicalmente, a redação do artigo 165 do Código de Trânsito — que passou então a não mais mencionar o limite de concentração alcoólica necessária à caracterização do ilícito administrativo, sendo suficiente, desde então, que o motorista estivesse dirigindo sob influência de álcool para que a conduta descrita na primeira parte daquele dispositivo restasse caracterizada, incluindo-se aí também os casos em que o condutor se recusasse a fazer os testes de alcoolemia previstos na Lei 9.503/97.

Dito com outras palavras, desde o advento da Lei 11.275/06, deixou de ser necessário que o motorista apresente mais de seis decigramas de substância etílica por litro de sangue para que se lhe possa imputar a infração administrativa prevista no artigo 165 do Código de Trânsito, sendo suficiente para a configuração da infração administrativa de trânsito em exame, a constatação, por meio de qualquer prova que permita certificar que o motorista encontrava-se dirigindo sob a influência de substância alcoólica, ainda que o extinto limite legal de alcoolemia não tivesse sido superado.

Com a edição da Lei 11.705, de 19 de junho de 2008, sobrevieram mais alterações no Código de Trânsito Brasileiro, sobretudo no que diz respeito às conseqüências legais do consumo de álcool durante a direção veicular. Nesse tocante, malgrado as modificações encampadas pela denominada Lei de Tolerância Zero ou Lei Seca não tenham alterado substancialmente o conteúdo do ilícito administrativo previsto no artigo 165 do Código de Trânsito Brasileiro, o mesmo não pode se afirmar quanto ao texto da norma penal consubstanciada no artigo 306 do mesmo diploma legal, que passou a reclamar a verificação exata da taxa de alcoolemia presente na corrente sanguínea do condutor, ressuscitando um desastroso critério técnico objetivo que, além de impedir a aferição da concentração de álcool por simples testemunho ou exame clínico, inviabiliza a própria aplicação do dispositivo penal, tal qual ocorria para a caracterização da infração administrativa prevista no artigo 165 do Código de Trânsito, anteriormente à vigência da Lei 11.275/06.

A nova lei poderia ter determinado que um órgão administrativo, como o Departamento Nacional de Trânsito, elaborasse o complemento normativo do tipo do artigo 306 (o nível de substância alcoólica por litro de sangue bastante para a configuração do ilícito de embriaguez ao volante), valendo-se de conhecida técnica de remissão a outra instância legislativa empregada pelo Direito Penal sempre que a matéria de proibição for passível de modificação segundo as vicissitudes que sofrem os acontecimentos a que se referem.

Ao revés, a Lei 11.705/08 optou pela retomada de uma fórmula que, além de engessar — conforme afirmado anteriormente — a aplicação da própria lei, já havia fracassado de forma retumbante no que se refere à execução da infração administrativa correlativa, e que precisou, no passado, mutatis mutandis, de se socorrer do remédio trazido pela Lei 11.275/06 para que não se tornasse absolutamente inócua. Tudo isso em detrimento do sensato critério da influência da substância inebriante na condução do veículo, exigível até a edição da Lei Seca para a constituição típica tanto do ilícito administrativo quanto do ilícito penal previstos, respectivamente, nos artigos 165 e 306 daquele diploma legal.

Em suma, a impressão que fica é a de que o legislador definitivamente parece não ter vontade, nem interesse de aprender com os erros do passado. E nesse encadeamento, basta que daqui para frente as pessoas que forem paradas numa blitz se recusem a fazer o teste do bafômetro ou deixem de se submeter a exame de sangue, únicos instrumentos hábeis que permitem a comprovação do nível de concentração alcoólica estabelecido no artigo 306 da Lei Seca, para que a política criminal de “alcoolemia zero” revele, de forma escandalosa, toda a sua ineficácia ideológica e persuasória.

Infração administrativa

Redação original do CTB: Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool, em nível superior a seis decigramas por litro de sangue, ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica.

Redação dada pela Lei 11.275, de 2006: Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica.

Redação dada pela Lei 11.705, de 2008: Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência

Infração penal

Redação original do CTB: Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem.

Redação dada pela Lei 11.705, de 2008: Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência.

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