Segunda Leitura

Segunda Leitura: Promessa da CF não pode virar crime de abuso

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  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

27 de julho de 2008, 0h00

Vladimir Passos de Freitas 2 - por SpaccaSpacca" data-GUID="vladimir_passos_freitas1.jpeg">Em 9 de dezembro de 1965, pouco tempo depois de implantado o regime militar no Brasil, foi editada a Lei 4.898, que regula os crimes de abuso de autoridade. O objetivo era evitar que o autoritarismo agravasse as condutas arbitrárias. E elas eram praticadas diariamente. Não apenas pelos militares, como muitos pensam. Pela Polícia, também. Na verdade, a tortura era aceita pela sociedade. E assim se confessavam e se apuravam os crimes, principalmente contra o patrimônio. O Judiciário, indiretamente, validava tal conduta, consolidando jurisprudência no sentido de que as confissões feitas no inquérito policial tinham valor probante, desde que corroboradas por outros meios de prova (STF-RTJ 88/371).

Após a vigência da Lei dos Crimes de Abuso de Autoridade, as vítimas passaram a ter um bom instrumento legal à disposição. Foram muitas as condenações. Por prisões ilegais (chamadas “para averiguações”), por submeter a pessoa a vexame ou constrangimento e outras formas de abuso. Recentemente, o Tribunal de Justiça do Paraná condenou um juiz de Direito por submeter um advogado a grave constrangimento, prendendo-o durante uma audiência (Órgão Especial, AO, proc. 0141759-6, Rel. Des. Antonio Noronha, j. 4.12.2006).

Agora, passados quase 50 anos da histórica Lei 4.898, pretende-se sua mudança. É compreensível. Os tempos são outros. Os abusos persistem, sob diferentes formas. O Estado deve armar-se para coibi-los. Adaptar-se aos novos tempos. Mas, com bom senso e equilíbrio. Com os olhos voltados para todos os aspectos envolvidos na questão.

No embalo das notícias da Operação Satiagraha, o deputado Raul Jungmann apresentou projeto de lei, tornando crime de abuso de autoridade qualquer atentado contra os direitos fundamentais previstos na Constituição, Título II, e, em especial, contra um rol de condutas que especifica em vários incisos. Portanto, além das condutas explicitamente mencionadas, todas as outras previstas nos artigos 5º a 17, ou seja, todo agente público que “praticar, omitir ou retardar ato, no exercício de função pública, em razão dela ou a pretexto de exercê-la, com o intuito de impedir, embaraçar ou prejudicar o gozo de qualquer dos direitos e garantias fundamentais” estará cometendo delito de abuso de autoridade.

Na prática, isto significa que o policial, o funcionário da prefeitura, todos os servidores, enfim, estarão incidindo em um crime quando for descumprida uma regra específica da nova redação proposta (por exemplo: inciso VII, liberdade de trabalho, ofício ou profissão) ou mesmo contra um dispositivo genérico (por exemplo, artigo 7º, inciso IX, remuneração do trabalho noturno superior à do diurno). Por outro lado, omite-se o projeto em assuntos relevantes, como o uso de algemas ou o vazamento de informações em processos sigilosos.

A ser aprovado tal projeto, estaríamos a ter tipos penais não só abertos, como inusitados. Por exemplo, um juiz que concedesse uma liminar de reintegração de posse correria o risco de ser acusado de abusar de sua autoridade porque, na forma do artigo 2º, inciso IX, do projeto, poderia estar atentando contra a propriedade e sua função social. Policiais militares que prendessem um motorista dirigindo após ter ingerido bebida alcoólica poderiam estar ferindo o inciso V porque, afinal, a imagem do acusado estaria sendo atingida. O procurador do município que, interpretando um requerimento administrativo, opinasse pelo indeferimento, poderia estar incurso no inciso XV, que protege o direito adquirido e o ato jurídico perfeito. O diretor do presídio superlotado, que recebesse presos acima do adequado, talvez fosse acusado de infração ao inciso XVII, que protege a dignidade do condenado.

Mais uma vez, busca-se pela lei (no caso, a penal) solução para todos os problemas do país. A norma supriria a realidade. Um caso a mais de norma sem efetividade, como se não bastassem os muitos casos de leis irreais, descumpridas e ignoradas por todos (o ECA é o exemplo máximo). Os estrangeiros, ao conhecer nossa legislação, ficam encantados. Mas ao sair às ruas das grandes cidades e encontrar crianças fazendo malabarismos nos semáforos para receber uns trocados, vêem que a realidade é outra.

Pois bem, incluir como crime de abuso de autoridade tudo o que o constituinte prometeu em 1988 (e muitas vezes não cumpriu) é reincidir no erro. É substituir pela lei penal fatos que dependem de políticas públicas e boa fiscalização. É piorar os serviços públicos, pois os agentes, amedrontados, serão cada vez mais omissos. É acreditar que lei tudo resolve.

Mas, se esta for a conclusão da maioria, talvez seja mais fácil simplificar com uma Emenda Constitucional, incluindo o artigo 5º-A na Constituição, com a seguinte redação: “Todos os brasileiros têm o dever de viver honestamente e ao Estado cumpre assegurar que sejam todos felizes”. Esta norma sintetizaria tudo e, a partir dela, não seria mais necessário editar outras. E seríamos todos, como nos velhos filmes norte-americanos, felizes para sempre.

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