Emaranhado tributário

Legislação existente é confusa, complexa e mal elaborada

Autor

  • Ives Gandra da Silva Martins

    é professor emérito das universidades Mackenzie Unip Unifieo UniFMU do Ciee/O Estado de S. Paulo das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme) Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 1ª Região professor honorário das Universidades Austral (Argentina) San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia) doutor honoris causa das Universidades de Craiova (Romênia) e das PUCs PR e RS catedrático da Universidade do Minho (Portugal) presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP ex-presidente da Academia Paulista de Letras (APL) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).

23 de julho de 2008, 10h55

Se alguém disser que conhece perfeitamente a legislação tributária brasileira, podendo assegurar, com precisão, a interpretação do direito vigente, ou é um gênio ou um mentiroso. Nos meus 50 anos de exercício profissional, principalmente na área fiscal, não encontrei nenhum gênio, embora tenha convivido com muitos talentos. Entre eles, ressalto os formuladores do Código Tributário Nacional — diploma que resiste ao tempo —, juristas que serviam “pro honore” ao poder público.

É exatamente o trabalho desses doutrinadores, da época em que grandes causídicos eram convidados a elaborar as leis fiscais, que representa a parte estável do sistema brasileiro. Atualmente, o país não tem mais essa qualidade legislativa. São os “regulamenteiros” que produzem até mesmo as emendas constitucionais, todos eles membros do poder público e com a visão empanada, por terem que gerar receitas para uma máquina esclerosada, que não pára de crescer e da qual são diretos beneficiários.

Adolf Wagner, na passagem do século 19 para o 20, já dizia que as despesas públicas não tendem jamais a diminuir, graças à incrível capacidade dos detentores do poder de gerá-las para cada necessidade legítima ou ilegítima criada.

Por essa razão, a legislação existente, confusa, complexa, mal elaborada, que gera as mais variadas interpretações, leva especialistas e contribuintes ao desnorteio. Mesmo quando pensam estar cumprindo rigorosamente a lei, são surpreendidos por exegeses “convenientes e coniventes”, cujo objetivo único é aumentar a arrecadação tributária por meio de restrições de direitos.

Há alguns meses, o STF declarou ser de cinco anos o prazo decadencial para a constituição do crédito tributário relativo às contribuições destinadas à seguridade social. No entanto, garantiu à Fazenda permanecer com o fruto da ilegalidade, dispensando-a de devolver aos contribuintes as quantias por eles pagas relativamente a créditos que já haviam sido atingidos pela decadência!

Entendo que dois princípios regem o direito tributário brasileiro: o da legalidade e o da “ilegalidade eficaz”. É exatamente à luz da “ilegalidade eficaz” que a cobrança da contribuição, ao arrepio da lei e da Constituição, tornou-se “receita tributária” assegurada. Ao princípio da “ilegalidade eficaz” acresceu-se o da “imoralidade eficaz”, pois não é ético o fisco ficar com recursos a que, decididamente, não teria direito.

Casos semelhantes a esses vi se multiplicarem nos meus 50 anos de advocacia, sempre com o governo demonstrando possuir “pele de recém-nascido” quando alguém deixa de pagar o que deve ao Estado, lançando mão de sanções políticas e de prisões cinematográficas, e “pele de paquiderme” quando se trata de obrigações que lhe cabe pagar. O calote dos precatórios é a consagração “spilberguiana” da imoralidade pública.

O foco do presente artigo, todavia, é realçar a complexidade da legislação tributária. Pouco faz o fisco para simplificá-la ou torná-la mais clara. Dificulta ao máximo a vida do contribuinte, com exigências burocráticas que levam, segundo o Banco Mundial, a uma perda média, por parte do empresariado brasileiro, de 2.600 horas/ano para administrar tributos, contra 105 horas do alemão. É que à carga tributária elevadíssima (sete pontos percentuais acima da do Japão e dos EUA) acresce-se a carga burocrática, infernizando a vida do pagador de tributos, que, mesmo quando pensa cumprir suas obrigações corretamente, sente-se inseguro.

Sempre lutei para que as relações entre o fisco e o contribuinte fossem de tal ordem que a primeira função fiscal deveria ser a de esclarecer o contribuinte e simplificar as operações. Com isso, teria nele um aliado para promover a justiça tributária, e não um presumível sonegador. Infelizmente, é muito difícil obter qualquer informação segura e esclarecedora nas repartições fiscais.

Nesse caldo de inflação legislativa tributária, com normas publicadas todos os dias, exigências não razoáveis por parte da administração e tribunais abarrotados de questões, é de compreender as dificuldades que especialistas têm em orientar o contribuinte. Qualquer aconselhamento é suscetível de encontrar convenientes interpretações fiscais em contrário.

Mais do que nunca, a orientação do advogado a seu cliente deve ser seguida da expressão “s.m.j.” (salvo melhor juízo). Embora esteja ciente de que a orientação oficial dificilmente será a melhor.

[Artigo publicado na Folha de S.Paulo, desta quarta-feira, 23 de julho.]

Autores

  • Brave

    é advogado tributarista, professor emérito das Universidades Mackenzie e UniFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, é presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, do Centro de Extensão Universitária e da Academia Paulista de Letras.

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