Direito concorrencial

Considerações sobre a repressão aos cartéis no Brasil

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22 de julho de 2008, 12h21

Nos últimos anos, o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) vem reprimindo sistematicamente a prática das infrações à ordem econômica previstas na Lei 8.884/94. É notório, entretanto, que a partir de 2003, o combate a cartéis passou a ser o foco das autoridades brasileiras de Direito Concorrencial. Segundo dados oficiais do Ministério da Justiça, atualmente estão em curso aproximadamente 300 investigações de cartel.

Em 2007, foram cumpridos 84 mandados de busca e apreensão com o objetivo de colher eventuais provas sobre possíveis colusões, contrastando com os 19 mandados cumpridos em 2006 e somente 11 até 2005. Além disso, sabe-se que a partir de 2003 foram celebrados 10 acordos de leniência e cerca de 9 estão em negociação (informações da Secretaria de Direito Econômico — SDE, destacando a total confidencialidade destes).

A crescente adoção de medidas como estas possui relação direta com o fato inconteste de que a verificação e comprovação da existência de um cartel não é uma tarefa simples.

De acordo com o artigo 20 da lei brasileira de defesa da concorrência, são consideradas práticas anticoncorrenciais todos os atos que causem ou possam causar limitação ou prejuízo à livre concorrência e à livre iniciativa, dominação de mercado relevante, aumento arbitrário de lucros e exercício abusivo de posição dominante. Em seguida, o artigo 21 apresenta um rol de condutas que produzem ou podem produzir os efeitos elencados no dispositivo anterior, estando, entre eles, nos incisos I, II, III e VIII, o cartel.

O cartel é um acordo entre agentes econômicos que atuam no mesmo estágio da cadeia produtiva de um determinado mercado relevante, com o objetivo e o potencial de eliminar a concorrência. Na maioria das vezes, estes acordos estipulam fixação concertada de preços ou divisão do mercado e de clientes, podendo gerar um aumento de preço estimado em 10% a 20% do preço praticado em um mercado competitivo, conforme estimativas da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Dentre as condutas tipificadas pela Lei 8.884/94 como infrações à ordem econômica, o cartel é considerado a mais grave, porque causa, ao mesmo tempo, eliminação da concorrência, impossibilidade de escolha pelos consumidores, encarecimento dos produtos e reflexo de desinteresse da indústria por avanços tecnológicos e inovações, impedindo a melhoria das condições do mercado relevante.

A condenação por este ilícito concorrencial, no entanto, depende de prova, o que acaba por ser a maior dificuldade encontrada pelas autoridades administrativas. Um acordo entre concorrentes, que tenha sido eventualmente resultado de uma reunião, por exemplo, não conta com provas documentais facilmente acessíveis pelas autoridades de defesa da concorrência. Muitas vezes sequer existe um documento que ateste o acordo entre players de um mesmo mercado. Contudo, independentemente do grau de dificuldade na obtenção de provas — em atenção às garantias fundamentais previstas pela Constituição Federal e em nome da segurança jurídica — uma condenação pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) só é admissível caso a conduta ilícita esteja provada nos autos do processo administrativo.

Isto significa que a mera observância de indícios de conduta concertada, como, por exemplo, a estabilidade na curva de preços de um mercado relevante, não é suficiente para determinar a existência de um acordo para eliminação da concorrência. A uniformização dos preços pode ser decorrência do estado normal daquele mercado e tantos outros indícios podem ter explicações lógicas e plausíveis. Assim, verificadas evidências que levem a crer que em um mercado relevante possa existir um cartel, a produção de prova da ocorrência deste ilícito é indispensável para que se possa condenar um agente econômico.

Neste sentido, proibindo punições com base em meras especulações e intuições, o legislador incluiu na lei de defesa da concorrência mecanismos que auxiliam as autoridades investigativas, como (i) buscas e apreensões e (ii) inspeções nas sedes das empresas investigadas e (iii) acordos de leniência.

Entretanto, ainda que se destaque a dificuldade na obtenção de provas desta infração, deve ficar claro que não podem ser utilizados todos os métodos para se alcançar a prova do cartel, pois a lei prevê mecanismos, como os mencionados acima, mas impõe limites, especialmente no tocante ao devido processo legal.

A busca e apreensão de documentos, por exemplo, é uma medida que acaba por violar uma série de direitos e garantias individuais, e por tal razão pode ser autorizada apenas em casos excepcionais, que deverão sempre ser objeto de análise rigorosa e fundamentação detalhada por parte da autoridade em questão. Ou seja, a expedição de mandados como estes deve acontecer somente quando existirem reais indícios de infração por parte da empresa investigada, obedecendo-se as regras impostas pela lei de defesa da concorrência.

Conforme prevê a legislação, a Secretaria de Direito Econômico deve solicitar à Advocacia-Geral da União que apresente ao Poder Judiciário requerimento de mandado de busca e apreensão, aplicando-se as previsões dos artigos 839 e seguintes do Código de Processo Civil. Isto significa que a SDE não pode utilizar-se do fato de que a prova em cartel é difícil de ser produzida para invadir empresas sem critério algum.

Um item que deve ser igualmente respeitado e muitas vezes não é – ainda que isso seja eventualmente involuntário — é a confidencialidade dos documentos apreendidos nas sedes das empresas. O vazamento de informações é uma preocupação importante, especialmente tendo em vista que a imprensa tem atuado de maneira muito próxima à SDE, e não foi somente uma a oportunidade em que dados confidenciais de processos administrativos foram divulgados indevidamente em jornais de grande circulação.

É importante destacar, ademais, que as interceptações telefônicas, usualmente realizadas em investigações criminais, não são admissíveis em investigações administrativas de cartel. Conforme define o artigo 5º, inciso XII da Constituição Federal, as comunicações telefônicas são invioláveis, salvo nas hipóteses e formas que a lei estabelecer para fins de investigação criminal e instrução processual penal. Isto mostra que a Constituição Federal limitou a violação desta garantia apenas às investigações criminais.

Assim, não obstante o cartel ser infração extremamente lesiva à ordem econômica, conhecida mundialmente como a mais grave de todas, a aferição da prova da conduta ilícita é sempre necessária, é fundamental, é imprescindível. A punição do cartel é desejada e necessária para reprimir abusos e ilícitos concorrenciais de tamanha gravidade, mas para tanto deve restar comprovado nos autos o acordo entre os concorrentes de um determinado mercado com o objetivo e o potencial de extinguir a concorrência. Além disso, essa prova deve ser obtida por meios idôneos e em atenção ao devido processo legal, respeitando-se sempre as garantias constitucionais e os limites impostos pela lei.

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