Prisão ilegal

Militar homossexual preso por deserção pede liberdade

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17 de julho de 2008, 19h18

A defesa do militar Laci Marinho de Araújo, preso sob a acusação de deserção dias depois de ter assumindo que é homossexual, entrou com pedido de Habeas Corpus, no Superior Tribunal Militar, para livrar o sargento da prisão provisória. O pedido é assinado pelos advogados Marcio Gesteira Palma, Beatriz Vargas e Fernando Goulart.

Laci Marinho de Araújo foi preso na madrugada de 4 de junho. Três dias antes ele e seu companheiro foram capa da revista Época, na qual deram entrevista assumindo que eram gays. Eles foram ao programa Super Pop, da Rede TV!, pelo mesmo motivo. No final do programa, Araújo foi surpreendido com um decreto de prisão por ser considerado desertor.

A acusação veio porque Araújo não compareceu ao trabalho, no Hospital Geral de Brasília, até o dia 3 de abril de 2008. Como não foi trabalhar por mais de oito dias, ficou configurada a deserção. Ele diz que não foi ao trabalho por ter doenças psiquiátricas.

A defesa do sargento afirma que a prisão provisória é ilegal porque a Constituição Federal impede o cumprimento antecipado da pena. “A prisão, antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, constitui-se medida excepcional. E justamente por conta disto, só pode ser mantida em hipóteses específicas, sempre para assegurar o processo de conhecimento e permitir sua efetividade. No presente caso, a prisão provisória é mantida por si só, prolongando-se no tempo, sem que se aponte sua necessidade para qualquer fim relativo ao processo”, argumentam os advogados.

“Qualquer pena aplicada só poderá advir de sentença condenatória transitada em julgado. O encarceramento como punição, em qualquer momento distinto da sentença condenatória ainda pendente de recurso, constitui flagrante inconstitucionalidade”, alegam.

Os advogados deixam claro que o pedido de Habeas Corpus não questiona a acusação de deserção, mas a “inconstitucionalidade da manutenção da constrição provisória sem que se aponte sua necessidade”. “Por conta de uma decisão inidônea, o paciente vem sofrendo os efeitos de uma punição antecipada, vez que sua manutenção no cárcere, fruto do que já se pode denominar de renitência judicial, tem-se revelado, há muito, completamente desnecessária”, defendem.

Leia o pedido

Excelentíssimo Ministro Presidente do Superior Tribunal Militar

MARCIO GESTEIRA PALMA, BEATRIZ VARGAS e FERNANDO GOULART, brasileiros, advogados, inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, Conselho Seccional do Distrito Federal, respectivamente, sob os números 21.878, 26.483 e 24.633, com escritório profissional em Brasília, DF, vêm a Vossa Excelência, com fundamento no inciso LXVIII, do artigo 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil e na conformidade dos artigos 466 e seguintes do Código de Processo Penal Militar, impetrar a presente ordem de


HABEAS CORPUS,

com requerimento de concessão de medida liminar,

em favor de LACI MARINHO DE ARAÚJO, brasileiro, solteiro, 2º Sargento do Exército Brasileiro, RG nº xxxx-MD/EB, CPF nº xxxxxx, residente e domiciliado na SQN xxx, bloco x, aptº xxx, Asa Norte, Brasília, DF, hoje ilegalmente recolhido ao xadrez do Batalhão de Polícia do Exército de Brasília.

Aponta-se como autoridade coatora o Conselho Permanente de Justiça para o Exército, Auditoria da 11ª Circunscrição Judiciária Militar que, por unanimidade, nos autos da ação penal nº 529/03-3, negou pedido de liberdade provisória e indeferiu pleito de concessão de menagem, chancelando indubitável constrangimento ilegal que o paciente está a suportar desde o dia 4 de junho passado, quando foi preso.

1 — FATOS

1. O paciente, portador de enfermidades psíquicas diagnosticadas desde o ano de 2003 (doc. 1), vem sofrendo graves crises de saúde que redundaram em seu afastamento das funções desenvolvidas no Exército Brasileiro, a partir do ano 2006 – tudo com lastro em exames médicos produzidos e renovados, de tempos em tempos, por junta médica militar

2. Apesar de possuir um longo histórico médico atestado por laudos oficiais, como também laudo psiquiátrico elaborado por médica particular especialista (doc. 2) – que, no dia 21 de março passado, concluiu pela incapacidade para o serviço militar pelo prazo de trinta (30) dias ― o paciente foi novamente avaliado, em 28 de março de 2008, por junta médica do Exército que, nesta oportunidade, o declarou apto para o serviço militar, com restrições, conforme documento assinado pela junta médica presidida pelo Major Américo Birajara (doc.3).

3. No dia 4 de abril do corrente ano, por intermédio de seu procurador, Fernando Alcântara ― meio de notificação não previsto na legislação que deveria reger o procedimento, mas que, neste momento, não se questionará ― “recebeu” comunicado do Comandante do Contingente, convocando-o para se apresentar ao exercício do seu mister, a partir do dia 3 de abril de 2008 (doc.4).

4. Irresignado com a conclusão médica e impossibilitado de atender ao chamamento de seu superior, uma vez que se encontrava acamado, requereu, tempestivamente, a anulação do laudo proferido pela junta. (doc.5).

5. Antes de se processar o pedido de anulação do laudo – que, convém registrar desde logo, surtiu efeito, vez que nova junta foi formada e marcada outra visita médica ao paciente[1] o diretor do Hospital Geral de Brasília, Cel. Antônio André Cortes Marques, no dia 4 de abril de 2008, ofereceu Parte de Ausência nº 54 – Contg, reclamando providências, visto que o paciente estaria faltando à Organização Militar de Saúde (doc. 6).


6. Concluindo pela deserção do paciente, o diretor do Hospital Geral de Brasília, no dia 15 de abril passado, remeteu à Juíza-Auditora da 11º Circunscrição Judiciária Militar Instrução Provisória de Deserção, a qual, por determinação do Juízo, foi encaminhada ao Ministério Público Militar.

7. Acreditando, ao menos em tese, estar configurado o crime de deserção, o Parquet das armas requereu a expedição de Ordem de Busca e Apreensão em desfavor do paciente, o que restou deferido, nos seguintes termos:

(…)

DEFIRO o requerimento feito e, nos termos legais, DETERMINO a realização, com as cautelas legais, de BUSCA DOMICILIAR na SQN 306, Bloco “J”, Apt 101, Asa Norte, Brasília/DF, a ser realizada pelo Diretor Hospital-Geral de Brasília, ou quem suas vezes fizer, e os militares por ele designados para tal fim, com CAPTURA, na forma da lei, do desertor 2º Sargento Exército Brasileiro LACI MARINHO DE ARAÚJO, já identificado nos autos (…) Brasília – DF, 20 de maio de 2008. (doc.7)

8. Após incursões realizadas para dar cumprimento ao mandado de busca domiciliar e prisão expedido por aquele Juízo, por volta das 3 horas, do dia 4 de junho de 2008, o paciente foi preso na cidade de São Paulo/SP – onde havia participado de programa televisivo.

9. Efetivadas a prisão e a transferência do preso para Brasília/DF, no dia 12 de junho passado, o Ministério Público Militar ofereceu denúncia, imputando ao paciente a prática do crime definido no tipo penal do artigo 187 (deserção), do Código Penal Militar, in verbis:

(…) oferece DENÚNCIA contra LACI MARINHO DE ARAÚJO (…) em razão de ter deixado de comparecer para o expediente em sua Unidade, no dia 03 de abril de 2008, embora tenha sido considerado “apto” para o serviço pela junta Médica que o examinou (fls. 111) e tenha sido expressamente notificado para tanto (fls. 112), tendo completado à 00:00 (zero) hora do dia 12 subseqüente, os dias preconizados em lei, para que se consumasse o crime de Deserção, conforme narrado no respectivo Termo de fls. 28.

(…)

Ante o exposto, REQUER o Órgão Ministerial seja recebida a presente Denúncia, com a citação do 2º Sargento do Exército LACI MARINHO DE ARAÚJO, para se ver processar e julgar perante esse Juízo, como incurso no art. 187, da Lei Substantiva Castrense. (doc. 8)

10. Antes de lhe haver sido facultada vista dos autos, a defesa técnica requereu, no dia 13 de junho passado, ao Juízo da 11ª CJM, a concessão do benefício da menagem e, alternativamente, a transferência do paciente para um hospital, local adequado aos fins de atendimento médico que o quadro de saúde do paciente está a reclamar (doc. 9).


11. Na data aprazada para a qualificação e o interrogatório, e ainda em momento anterior à audiência, a defesa protocolizou pedido de concessão de liberdade provisória ao paciente ou, alternativamente, concessão da menagem domiciliar, reiterando os demais termos do requerimento anterior (doc. 10).

12. Apreciando o pleito de concessão de liberdade provisória, o Conselho Permanente da 11ª Circunscrição Judiciária Militar, à unanimidade, decidiu o seguinte:

(…)

É O RELATÓRIO

(…)

Verifica-se que legalmente está prevista e autorizada a prisão do desertor, até sessenta dias antes de seu julgamento. O prazo legalmente fixado e o momento de sua realização evidenciam a natureza provisória daquela prisão. Considerando que o Código de Processo Penal Militar iniciou sua vigência em 1969, e que a constituição Federal atual é de 1988, indaga-se acerca da possibilidade daquela prisão e de sua manutenção violar normas constitucionais que reconhecem e protegem a liberdade individual, além da consagração do princípio da presunção de inocência do réu antes do trânsito em julgado de sentença condenatória. Examinando-se a Constituição Federal vigente, verifica-se que o inciso LXI, de seu artigo 5º, estabelece que (…)

Sendo a deserção um crime propriamente militar, verifica-se que a Constituição recepcionou a norma legal que sujeita o desertor à prisão provisória, autorizando, numa exceção especialíssima, que seja ele preso independente de ordem judicial. Ser o desertor levado à prisão é, portanto, legal e constitucional. E afirma a norma constitucional que o preso não deverá ser mantido nessa condição se a lei admitir a liberdade provisória, e a lei aplicável ao desertor é uma lei especial – que pela sua natureza derroga a lei geral –, consubstanciada no Diploma Processual já referido, o qual veda a concessão de liberdade provisória em seu artigo 270, Parágrafo único, alínea b, in fine. Assim, se o Constituinte faz remissão à lei, como norma infraconstitucional, e esta não só não admite a liberdade provisória como também expressamente a veda, não há fundamento legal para atendimento do pleito da Defesa (…) (grifou-se) (doc. 11 )

13. O ato decisório proferido pelo Conselho Permanente carece de fundamentação idônea para justificar a manutenção da medida de exceção, uma vez que a decisão se escora, exclusivamente, no dispositivo legal que determina a prisão automática do acusado de deserção.

14. Tal determinação normativa, que serve para que se prenda, mas não é suficiente para a mantença da prisão ― que antes do trânsito em julgado de uma condenação, deve possuir índole processual, sob pena de se travestir em punição antecipada ― configura-se inegável coação contra o direito de ir e vir do paciente, a qual deve ser sanada pela via do habeas corpus.


2- DIREITO

15. A Constituição da República, com extrema clareza, faz valer, em seu artigo 5º, inciso LVII, o princípio cogente da presunção de inocência — ou, como preferem alguns, princípio da presunção de não-culpabilidade — que está a exigir o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, para que, a partir daí, o acusado venha a merecer tratamento penal decorrente da condição de culpado, incidindo, por conseguinte, os efeitos da condenação.

16. Sabe-se que o princípio da presunção de inocência não possui caráter absoluto. Não é menos sabido, contudo, que o sacrifício da liberdade, como medida processual, somente é tolerado como decorrência da demonstração – sob forte fundamentação – quanto à imprescindível necessidade da custódia provisória, o que – pode-se afirmar, sem chance de erro – não se faz presente neste caso.

17. A decisão, de forma equivocada, parte da premissa de que o simples procedimento que antecede a propositura da ação penal – Instrução Provisória de Deserção – é suficiente para gerar a privação da liberdade de maneira imediata e automática e, depois, para mantê-la, dispensando-se qualquer justificação ou demonstração da necessidade da medida para que ela se estenda no tempo.

18. O entendimento que ali se manifesta é de que a custódia deve perdurar, no mínimo, por 60 dias, com exclusivo fundamento na regra processual militar, independentemente da demonstração de sua necessidade.

19. O ato coator parte do pressuposto de que o art. 453 do Código de Processo Penal Militar se sobrepõe à garantia constitucional da presunção de inocência, entendendo que o princípio cogente não se aplica àquele que responde a ação penal militar por crime de deserção.

20. Contudo, não é esta a posição do Supremo Tribunal Federal , conforme se pode auferir de seus recentes julgados.

21. A Suprema Corte, sob a lente da interpretação constitucional, tem decidido pela prevalência da garantia também para o acusado da prática de crime propriamente militar, afirmando que “a decretação judicial da custódia cautelar deve atender, mesmo na Justiça castrense, aos requisitos previstos para a prisão preventiva nos termos do art. 312 do CPP. Veja-se:

EMENTA: Habeas Corpus. 1. No caso concreto, alega-se falta de fundamentação de acórdão do Superior Tribunal Militar (STM) que revogou a liberdade provisória do paciente por ausência de indicação de elementos concretos aptos a lastrear a custódia cautelar. 2. Crime militar de deserção (CPM, art. 187). 3. Interpretação do STM quanto ao art. 453 do CPPM ("Art. 453. O desertor que não for julgado dentro de sessenta dias, a contar do dia de sua apresentação voluntária ou captura, será posto em liberdade, salvo se tiver dado causa ao retardamento do processo"). O acórdão impugnado aplicou a tese de que o art. 453 do CPPM estabelece o prazo de 60 (sessenta) dias como obrigatório para a custódia cautelar nos crimes de deserção. 4. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), a concessão da liberdade provisória, antes de ultimados os 60 (sessenta) dias, previstos no art. 453 do CPPM, não implica qualquer violação legal. O Parquet ressalta, também, que o decreto condenatório superveniente, proferido pela Auditoria da 8ª CJM, concedeu ao paciente o direito de apelar em liberdade, por ser primário e de bons antecedentes, não havendo qualquer razão para que o mesmo seja submetido a nova prisão. 5. Para que a liberdade dos cidadãos seja legitimamente restringida, é necessário que o órgão judicial competente se pronuncie de modo expresso, fundamentado e, na linha da jurisprudência deste STF, com relação às prisões preventivas em geral, deve indicar elementos concretos aptos a justificar a constrição cautelar desse direito fundamental (CF, art. 5º, XV – HC nº 84.662/BA, Rel. Min. Eros Grau, 1ª Turma, unânime, DJ 22.10.2004; HC nº 86.175/SP, Rel. Min. Eros Grau, 2ª Turma, unânime, DJ 10.11.2006; HC nº 87.041/PA, Rel. Min. Cezar Peluso, 1ª Turma, maioria, DJ 24.11.2006; e HC nº 88.129/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, unânime, DJ 17.8.2007). 6. O acórdão impugnado, entretanto, partiu da premissa de que a prisão preventiva, nos casos em que se apure suposta prática do crime de deserção (CPM, art. 187), deve ter duração automática de 60 (sessenta) dias. A decretação judicial da custódia cautelar deve atender, mesmo na Justiça castrense, aos requisitos previstos para a prisão preventiva nos termos do art. 312 do CPP. Precedente citado: HC nº 84.983/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, unânime, DJ 11.3.2005. Ao reformar a decisão do Conselho Permanente de Justiça do Exército, o STM não indicou quaisquer elementos fático-jurídicos. Isto é, o acórdão impugnado limitou-se a fixar, in abstracto, a tese de que "é incabível a concessão de liberdade ao réu, em processo de deserção, antes de exaurido o prazo previsto no art. 453 do CPPM". É dizer, o acórdão impugnado não conferiu base empírica idônea apta a fundamentar, de modo concreto, a constrição provisória da liberdade do ora paciente (CF, art. 93, IX). Precedente citado: HC nº 65.111/RJ, julgado em 29.5.1987, Rel. Min. Célio Borja, Segunda Turma, unânime, DJ 21.8.1987). 7. Ordem deferida para que seja expedido alvará de soltura em favor do ora paciente. (HC 89.645; relator: Min. Gilmar Medes, 2º Turma, DJ de 28.9.2007).


22. Do voto do relator, condutor do aresto, é de se destacar o que se segue:

(…)

Em nosso Estado de Direito, a prisão é uma medida excepcional e, por essa razão, não pode ser utilizada como meio generalizado de limitação das liberdades dos cidadãos.

A prisão preventiva é medida excepcional que, exatamente por isso, demanda a explicitação de fundamentos consistentes e individualizados com relação a cada um dos cidadãos investigados (CF, art. 93, IX e art. 5º, XLVI).

Conforme preconiza ampla jurisprudência deste STF, a prisão cautelar é medida excepcional que, exatamente por esse motivo, não pode ser invocada sem a adequada e necessária motivação da fundamentação.

(…)

É dizer, mesmo na Justiça castrense, a decretação judicial da custódia cautelar deve atender, ao menos em tese, requisitos previstos para a preventiva nos termos do art. 312 do CPP.

Nesse contexto, não é possível conferir sustentação jurídica à interpretação do STM que presume como prazo mínimo o lapso de 60 (sessenta) dias.

Para que a liberdade dos cidadãos seja legitimamente restringida, é necessário que o órgão judicial competente se pronuncie de modo expresso, fundamentado e, na linha da jurisprudência deste STF, com relação às prisões preventivas em geral, deve indicar elementos concretos aptos a justificar a constrição cautelar desse direito fundamental (CF, art. 5º, XV – HC nº 84.662/BA, Rel. Min. Eros Grau, 1ª Turma, unânime, DJ 22.10.2004; HC nº 86.175/SP, Rel. Min. Eros Grau, 2ª Turma, unânime, DJ 10.11.2006; HC nº 87.041/PA, Rel. Min. Cezar Peluso, 1ª Turma, maioria, DJ 24.11.2006; e HC nº 88.129/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, unânime, DJ 17.08.2007).

23. Ainda sobre o tema prisão cautelar e seus requisitos, mesmo não tratando especificamente de crime militar, retornou a afirmar a Suprema Corte sobre a necessidade de elementos objetivos e idôneos para a manutenção da prisão processual voltando a consignar que:

EMENTA: Habeas Corpus. 1. "Operação Navalha". Inquérito no 544/BA, do Superior Tribunal de Justiça. 2. Alegação de falta de fundamentação do decreto de prisão preventiva. 3. Decreto prisional fundamentado em supostas conveniência da instrução criminal e garantia da ordem pública e econômica. 4. Segundo a jurisprudência do STF, não basta a mera explicitação textual dos requisitos previstos pelo art. 312 do CPP, mas é indispensável a indicação de elementos concretos que demonstrem a necessidade da segregação preventiva. Precedentes. 5. A prisão preventiva é medida excepcional que demanda a explicitação de fundamentos consistentes e individualizados com relação a cada um dos cidadãos investigados (CF, arts. 93, IX e 5º, XLVI). 6. A existência de indícios de autoria e materialidade, por si só, não justifica a decretação de prisão preventiva. 7. A boa aplicação dos direitos fundamentais de caráter processual, principalmente a proteção judicial efetiva, permite distinguir o Estado de Direito do Estado Policial. O prestígio desses direitos configura também elemento essencial de realização do princípio da dignidade humana na ordem jurídica, impedindo que o homem seja convertido em objeto dos processos estatais. 8. Os direitos de caráter penal, processual e processual-penal cumprem papel fundamental na concretização do moderno Estado democrático de direito. 9. A aplicação escorreita ou não dessas garantias é que permite avaliar a real observância dos elementos materiais do Estado de Direito e distinguir civilização de barbárie. A diferença entre um Estado totalitário e um Estado Democrático de Direito reside na forma de regulação da ordem jurídica interna e na ênfase dada à eficácia do instrumento processual penal da prisão preventiva. 10. O direito processual penal é o sismógrafo da Constituição, uma vez que nele reside a atualidade política da Carta Fundamental. O âmbito de proteção de direitos e garantias fundamentais recebe contornos de especial relevância em nosso sistema constitucional. 11. A idéia do Estado de Direito também imputa ao Poder Judiciário o papel de garante dos direitos fundamentais. É necessário ter muita cautela para que esse instrumento excepcional de constrição da liberdade não seja utilizado como pretexto para a massificação de prisões preventivas. Em nosso Estado de Direito, a prisão é uma medida excepcional e, por essa razão, não pode ser utilizada como meio generalizado de limitação das liberdades dos cidadãos. 12. Não é possível esvaziar o conteúdo constitucional da importante função institucional atribuída às investigações criminais na ordem constitucional pátria. A Relatora do INQ nº 544/BA possui amplos poderes para convocar sempre que necessário o paciente. Não se justifica a prisão para a mera finalidade de obtenção de depoimento. 13. Ausência de correlação entre os elementos apontados pela prisão preventiva no que concerne ao risco de continuidade da prática de delitos em razão da iminência de liberação de recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). 14. Paciente afastado da função de Procurador-Geral do Estado do Maranhão 11 (onze) meses antes da decretação da prisão cautelar. 15. Motivação insuficiente. 16. Ordem deferida para revogar a prisão preventiva decretada em face do paciente. (STF – HC 91.386 – Rel. Min. Gilmar Mendes – Segunda Turma – DJ 16/5/2008).


24. Como se verifica do recente decisum, o Supremo Tribunal Federal, reiteradamente, afirma que diante do ordenamento constitucional vigente é imprescindível se apontar razões idôneas e fortes o bastante para que se mantenha o cidadão preso cautelarmente, tudo para possibilitar “a realização do princípio da dignidade humana na ordem jurídica, impedindo que o homem seja convertido em objeto dos processos estatais.

25. As normas contidas nos arts. 453 e 270, parágrafo único, alínea b, in fine, do Código de Processo Penal Militar, sem a demonstração de qualquer necessidade para a manutenção da custódia cautelar e, no caso do paciente ― onde se impõe considerar seus já constatados problemas de natureza médico psíquica (doc. 1) ― se sobrepõem aos princípios cogentes da presunção de inocência e da dignidade da pessoa humana?

26. Aos olhos do ato combatido sim e justamente por possuir tal viés hermenêutico, apegado ao positivismo extremo e, por conseguinte, afastando a eficácia de normas constitucionais, que ele recebe a pecha de ilegal e deve ser sanado pelo presente habeas corpus.

27. Tal forma de aplicação da lei processual penal foi cunhada de interpretação retrospectiva[2]. Ocorre quando, como no presente caso, a Constituição da República é interpretada tendo por base legislação inferior e de cunho autoritário, negando-se validade à ordem imposta pelas garantias contidas no art. 5º. No presente caso, a presunção de inocência, a dignidade da pessoa humana e caráter fragmentário e excepcional das prisões, foram deixados de lado e não poderiam ter sido.

28. Nem se aduza, em defesa do ato coator, que a interpretação da lei processual penal militar, na esteira do seu art. 2º, se procede de literalmente. Assim como os dispositivos com os quais, ilegalmente, se mantém a prisão do paciente, também o art. 2º da norma adjetiva castrense deve se submeter à Constituição da República. A interpretação das normas, seja lá qual for sua natureza, deve ser pautada pelo ordenamento constitucional vigente.

29. Os cansados e anacrônicos dispositivos sacudidos em socorro da decisão não prevalecem, não se mantém hígidos, diante do ordenamento constitucional vigente. Neste exato sentido, leciona Canotilho[3] que a Constituição Republicana de 1988 não pode ser vista como um simples concentrado de princípios políticos, que visam apenas direcionar o legislador ¾ e o intérprete, acrescentamos ¾ para um caminho que ele seguirá de forma discricionária.

30. Ensina o constitucionalista português que a constituição é, pois, um complexo normativo ao qual deve ser assinalada a função da verdadeira lei superior do Estado, que todos os seus órgãos vincula"[4]. Por tais razões, em face do ordenamento constitucional vigente, não se pode mais subsistir a arbitrariedade que se comete contra o paciente: preso por deserção e mantido no cárcere com base em normas expurgadas pelo ordenamento constitucional vigente e sem qualquer fundamento idôneo que justifique sua constrição.


31. Assim, se verifica que o processo de constitucionalização inaugurado em 1988 obriga as normas infraconstitucionais ― dentre elas as militares ― se adequarem aos novos ditames, sofrendo um “banho de imersão” como ensina Liebman, um “processo de contaminação constitucional” nas palavras de Lênio Streck[5], ou uma “oxigenação constitucional” nas de MORAIS DA ROSA.[6]

32.O professor italiano FERRAJOLI assim atesta a obrigatoriedade da visão constitucional das leis:

A sujeição do juiz à lei não é de facto, como no velho paradigma juspositivista, sujeição à letra da lei qualquer que seja o seu significado, mas sim sujeição à lei somente quando válida, ou seja, coerente com a Constituição[7]

33. De tudo até aqui exposto, se verifica que, sob o aspecto constitucional a manutenção automática da prisão do paciente, com base em dispositivos flagrantemente afastados do ordenamento por força da Constituição Cidadã, demonstra a inequívoca ilegalidade do ato combatido. Mas há, mais!

34. Além do imperioso viés constitucional apontado ― o qual, por si só, é suficiente para a concessão da ordem postulada ― há que se verificar a prisão do paciente sob o viés processual, fazendo-se necessária uma breve análise da natureza da prisão do paciente. Diz o art. 220 do Código de Processo Penal Militar:

Art. 220. Prisão provisória é a que ocorre durante o inquérito, ou no curso do processo, antes da condenação definitiva.

35. Portanto, a prisão do paciente é prisão provisória, medida de natureza cautelar que, apesar de exigir a presença de fundamentos idôneos, se prolonga no tempo, de forma automatizada, sendo certo que o ato ora combatido ignora a necessidade se demonstrar a necessidade da cautela.

36. É elementar que para a decretação das medidas cautelares constritivas não basta o requisito do fumus commissi delicti (indícios de autoria e certeza da materialidade) sendo, da mesma forma, indispensável a demonstração do periculum libertatis (necessidade da custódia).

37. Assim, acusado e preso por deserção ― e aí se encontra o reconhecimento, pelo juízo coator, dos indícios de autoria e materialidade ― a presença solitária desta condição não é suficiente para manter o paciente preso, pois carece ser demonstrada a necessidade da custódia, imprescindível a demonstração do periculum in libertatis. Neste ponto, quedou-se inerte o ato combatido e, por tal razão, recebe a pecha de ilegal.


38. Note-se que a impetração não questiona a prisão decorrente da acusação de deserção, neste writ se aponta a inconstitucionalidade da manutenção da constrição provisória sem que se aponte sua necessidade.

39. É sabido, e no corpo desse writ já se registrou, que a prisão, antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, constitui-se medida excepcional. E justamente por conta disto, só pode ser mantida em hipóteses específicas, sempre para assegurar o processo de conhecimento e permitir sua efetividade.

40. No presente caso, a prisão provisória é mantida por si só, prolongando-se no tempo, sem que se aponte sua necessidade para qualquer fim relativo ao processo. A constrição do paciente durante o curso do processo a que responde justifica-se, aos olhos do ato combatido, por se tratar de acusação de crime de deserção. Assim, por conta de imputação que tal, entende ― e nesse passo vai mal ― que o paciente pode ser mantido preso, sem que se demonstre a necessidade, transformando medida de natureza cautelar em pena antecipada e jogando às favas o princípio da não culpabilidade.

41. Qualquer pena aplicada só poderá advir de sentença condenatória transitada em julgado. O encarceramento como punição, em qualquer momento distinto da sentença condenatória ainda pendente de recurso, constitui flagrante inconstitucionalidade. Ensina o professor Aury Lopes Junior que:

Fica evidenciado, assim que as medidas cautelares não se destinam a "fazer justiça”, mas sim garantir o normal funcionamento da justiça através do respectivo processo (penal) de conhecimento. Logo, são instrumentos a serviço do instrumento processo; por isso, sua característica básica é a instrumentalidade qualificada.[8]

42. Fato é que, por conta de uma decisão inidônea, o paciente vem sofrendo os efeitos de uma punição antecipada, vez que sua manutenção no cárcere, fruto do que já se pode denominar de renitência judicial, tem-se revelado, há muito, completamente desnecessária.

43. A autoridade coatora não se dignou a apontar um único fato, uma única razão concreta que pudesse preencher o conceito legal e abstrato de cautelaridade. Esse caráter escancaradamente retribucionista da medida que o paciente está a suportar é, na verdade, antecipação de castigo, o que vem de encontro ao objetivo da Carta Republicana que é, em regra, garantir a liberdade e de forma excepcional, sempre fundamentada, permitir a constrição cautelar.

44. Nunca é demais insistir na afirmação do genuíno sentido do Princípio Constitucional invocado:

“(…) A máxima da presunção de inocência sofreu sérios ataques partidos da Escola Técnico-Jurídica italiana, claramente influenciada pela ideologia fascista. Manzini foi um dos maiores críticos desse princípio, chegando a dizer que não há qualquer lógica nessa presunção, pois se a inocência do réu pudesse ser presumida não haveria como proceder contra ele. Não é este, evidentemente, o sentido do princípio em exame. Trata-se, na feliz expressão de Giuseppe Bettiol, de uma ‘idéia-força’, que quer significar não que o acusado seja de fato inocente, mas que deve gozar de um ‘estado de inocência’. Do status de inocente decorre que o réu não pode ser tratado como se já estivesse firmada sua culpa. (…) O princípio de inocência – ou estado de inocência – representa uma segurança jurídica para o cidadão e, nesse sentido, equivale à fórmula de ‘não-culpabilidade’. É totalmente improfícua para o Direito a busca do significado semântico da expressão, pois, com ‘presunção ou estado de inocência’, o que se quer é conferir um sentido político. Pesquisar a distinção de significado entre as duas expressões é tarefa para semanticistas e não para juristas. Trata-se de um falso dilema”.[9]


45. Prisão tal qual do paciente, sem fundamento e sem função, protraindo-se no tempo de per si, deve ser erradicada, pois funciona como verdadeira pena antecipada (cumprindo fins de prevenção geral ou especial, exclusivos da pena), resultando em sua inconstitucionalidade, à luz dos direitos fundamentais da presunção de inocência e dignidade da pessoa humana.

46. Frente ao exposto, indiscutível é o fato de que uma prisão de caráter processual deve estar lastreada em elementos fático-jurídicos que demonstrem a real necessidade da medida. Acaso não esteja cabalmente demonstrada a imprescindibilidade da constrição, conservar os seus efeitos é, sem dúvida, uma ilegalidade que deve ser estancada pela autoridade competente que dela tomar conhecimento.

3 – DO REQUERIMENTO DE MEDIDA LIMINAR

47. O fumus boni iuris encontra-se exposto à saciedade no corpo da mandamental. A manutenção de medida cautelar não pode advir de um comando legal que aplicado, por si só, redunda no afastamento de garantias constitucionalmente protegidas.

48. O periculum in mora advém do fato do paciente estar com o seu direito de liberdade ceifado desde o dia 4 de junho passado. Recolhido ao cárcere como condenado fosse, em clara inversão ao status de inocente atribuído pelo texto constitucional, o paciente está a sofrer as agruras de uma prisão cumprindo verdadeira punição antecipada, vez que não se apontou qualquer fato que justifique sua constrição.

49. Por conta do exposto, presentes os requisitos autorizadores, requerem a concessão de medida liminar, para o fim de que o paciente seja imediatamente colocado em liberdade, até o julgamento do mérito do presente habeas corpus.

4 – DO MÉRITO

50. Por todo o exposto, em primeiro, se requer, com fundamento nos artigos 74 e 88, § 3º, do Regimento Interno da Corte, sejam os impetrantes intimados da data da sessão de julgamento, porque desejam assomar à tribuna para sustentarem oralmente as razões sacudidas na mandamental.

51. No mérito requerem a confirmação da medida liminar porventura concedida e a concessão da ordem para que seja o paciente colocado em liberdade até o trânsito em julgado da ação penal que está a suportar, salvo se sobrevier alguma situação fático-jurídica que reclame medida cautelar constritiva.

Pedem deferimento.

Brasília, 16 de julho de 2008.


Marcio Gesteira Palma

OAB/DF 21.878

Beatriz Vargas

OAB/DF 26.483

Fernando Goulart

OAB/DF 24.633


[1] O Comandante do Contingente, 2º Ten. QAQ Afonso José Silva, no dia 9 de abril de 2008, dirigiu o memorando nº 22 ao paciente, aduzindo o seguinte: Informo-vos que na condição de procurador do 2º Sgt DE ARAUJO, e em atenção a parte citada no documento de referência foi agendado para o dia 11 Abr 08, na residência do militar nova Inspeção de Saúde.

[2] CASARA, Rubens R. Interpretação retrospectiva: sociedade brasileira e processo penal. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro. 2004.

[3] CANOTILHO, J.J. Gomes. e MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991. p.43

[4] Ob. cit. p.43

[5] STRECK, L.L.. “Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito”. 6ª ed.. Porto Alegre:Livraria do advogado. 2005, p. 245/246.

[6] ROSA, Alexandre Morais da. “Garantismo jurídico e controle de constitucionalidade material”. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005, p. 102.

[7] FERRAJOLI, Luigi. “O direito como sistema de garantias”, in Revista do Ministério Público, Lisboa, nº 61, jan-mar, 1995, p. 41.

[8] LOPES JR., Aury. “Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista”. 2ª ed.. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005. p. 202.

[9] RAMOS, Beatriz Vargas. Breves considerações sobre a prisão por efeito de condenação recorrível in Encarte Coleção Especial do Instituto de Ciências Penais – ICP, nº2, p. E-04. Belo Horizonte: Livraria Mandamentos Editora Ltda., abril de 2000.

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