Abuso do grampo

Escuta telefônica tem sido usada como ferramenta de opressão

Autores

16 de julho de 2008, 19h23

A Constituição Federal de 1988 tornou-se um marco na ordem jurídica brasileira, um verdadeiro divisor de água entre os tempos obscuros dos porões da ditadura, no qual havia o desprezo aos direitos individuais e o nosso Estado.

Nascia o Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar, dentre outros, o exercício dos direitos individuais, a liberdade, a segurança e a justiça como valores supremos da sociedade.

Objetivando resguardar tais direitos dotou-se a Constituição de elementos limitativos à atuação dos poderes estatais, a exemplo dos contidos no Capitulo I (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos).

A Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso XII, prevê exceção a inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas, na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

A Lei 9.296 de 24 de julho de 1996, ao regulamentar o dispositivo constitucional, em seu artigo 2º, estabeleceu hipóteses em que não se admitiria a autorização judicial para a interceptação telefônica, ao invés de catalogá-las quando cabíveis, que, conforme a analise de Vicente Greco Filho, é “lamentável porque a redação negativa sempre dificulta a intelecção da vontade da lei e mais lamentável ainda porque pode dar a entender que a interceptação seja a regra, ao passo que na verdade, a regra é o sigilo e aquela, a exceção.” [FILHO, Vicente Greco. Interceptação telefônica — considerações sobre a Lei nº 9.296 de 24 de julho de 1996. Editora Saraiva, 2006, p. 21]

Ao que parece tal advertência teve uma inspiração profética, considerando-se “que nenhum Tribunal de Justiça, Ministério Público ou Secretaria de Segurança Pública possui métodos de controle das escutas e nem sabem quantificar o número de escutas que estão sendo realizadas pelo país”, segundo o presidente da CPI dos grampos, Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), o que mostra, de forma inconteste, que a exceção tornou-se regra perniciosa à garantia constitucional do sigilo telefônico.

Possivelmente, encontrar-se-á a razão para tantas autorizações injustificáveis, no desrespeito ao preceituado no inciso II, do artigo citado, uma vez que a medida só deveria ser admitida diante da impossibilidade da prova poder ser feita por outros meios disponíveis.

Antonio Scarance Fernandes “considera legitima a autorização judicial mesmo depois de se demonstrar que avia outros meio, antes desconhecidos ou descobertos posteriormente, exceto quando ficar evidenciada a má fé por parte de quem requereu a produção da prova. [FERNANDES, Antonio Scarance. A lei da interceptação telefônica, Justiça Penal: provas ilícitas e reforma pontual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. v. 4, p. 56]

Tem-se notado que a interceptação telefônica vem sendo utilizada como instrumento principal de investigação e por vezes o único e não como instrumento residual, excepcional na ausência ou impossibilidade de recorrer-se a outro meios.

Poder-se-ia chegar à conclusão de que, não houvesse a possibilidade de valer-se das interceptações, não se conseguiria produzir prova alguma; de que os órgãos destinados a promover a solução dos crimes tornar-se-iam acéfalos, incapazes de exercerem a função para a qual foram criados.

Não nos cabe perscrutar os motivos de tal comportamento, no entanto, prima facie, poder-se-ia aventa algumas razões tais como falta de interesse de investigar-se por outros meios, facilidades, ocultação intencional de outros meios, conveniência, etc.

Vale destacar que a exceção legal foi prevista visando restringir a invasão da intimidade das pessoas, a casos realmente necessários e excepcionais, do contrário, poderia tornar-se inócuo o direito constitucionalmente tutelado.

Neste ponto, mostra-se de vital importância analisarmos em que circunstancias os magistrados vêm decidindo acerca das autorizações para interceptações.

A lei sob comento estabelece prazo máximo de 24 horas para que o juiz decida sobre o pedido, Não obstante tornar-se de prazo impróprio, tal lapso temporal é, além de exíguo, insuficiente para que o magistrado faça uma análise minuciosa do requerimento apresentado, constatando a existência dos requisitos legais, observando se há possibilidade, no caso concreto, valer-se de outros meios menos evasivos e sopesando os interesses e os direitos postos à sua apreciação, para só então decidir-se pela concessão ou não da medida excepcional.

As mesmas razões se aplicam às autorizações subseqüentes no curso da investigação, uma vez que os pedidos de prorrogação podem demandar um exame mais aguçado da real necessidade de se prorrogar a medida de exceção, sob pena de possibilitar-se que o monitoramento se estenda por tempo indefinido.

Não fosse assim, a função do juiz seria meramente homologatória da vontade do requente, lembrando que cabe ao Poder Judiciário velar pela licitude e legitimidade de tais procedimentos.

De outra feita, cumpre ressaltar que ao contrário do que dispõe o texto legal, as gravações interceptadas, em grande parte, não estão sendo transcritas em sua inteireza, opondo-se pelo “pinçamento” de trechos ou frases selecionadas, os quais são interceptados sem o emprego de métodos científicos, por pessoas desqualificadas para desempenhar tal mister, valendo-se de puro subjetivismo e, não raramente, embalados pelo “furor incriminatório”.

Há que se lembrar que as escutas constituem-se em indícios e não na rainha das provas. E ainda que se admita atribuir maior envergadura às interceptações, devem ser submetidas às exigências legais, aos princípios gerais da prova, lembrando que é necessária a realização de perícia nos termos do artigo 158 do Código de Processo Penal.

Nesse contexto merece destaque as constantes negativas, por parte do Poder Judiciário no que pertine ao pedido de transcrição integral de todo o produto das interceptações, os quais são, em sua maioria, embasados na impossibilidade de transcrição dado ao volume de conversas interceptadas.

Ora, é de extrema valia lembrar que em função do longo prazo de duração da medida, em alguns casos, a defesa sofre sensível prejuízo, uma vez que é humanamente impossível que alguém se lembre de todas as suas conversas de meses ou até anos atrás, causando desequilíbrio na paridade de armas conferidas às partes, haja vista que a acusação após ter amplo e irrestrito acesso à integralidade do que foi produzido ao longo da interceptação, seleciona o que lhe é conveniente, o que, infelizmente, na maioria dos casos, não é oportunizado à defesa, ofendendo os princípios da comunhão da prova, contraditório e ampla defesa, dando realce neste último, a possibilidade do próprio acusado valendo-se da autodefesa orientar seus defensores incumbidos da defesa técnica.

Outrossim, é necessário indagar-se se as interceptações, da forma como vem sendo produzidas, merecem ou não credibilidade.

Para tanto é imperioso lembrar que as pessoas que selecionam interpretam as conversas são chamadas constantemente em juízo, para corroborar o que antes haviam relatado por escrito, o que denota, de forma indelével, o interesse dos mesmos em demonstrar a legitimidade do trabalho realizado, o que juridicamente é inaceitável.

Urge destacar ainda, a situação alarmante que vem se instalando nas entrelinhas do Poder Judiciário, onde juízes estão sendo privados de decidir conforme seu livre convencimento motivado, uma vez que se sentem constrangidos, coagidos, ante a possibilidade de serem grampeados ilegalmente, deixando de assegurar os direitos fundamentais dos cidadãos, conforme declarações de um juiz à CPI dos Grampos, o qual foi vítima do uso inescrupuloso da medida de exceção.

É desolador pensar, quanto mais acreditar que na vigência do Estado Democrático de Direito, possa haver a utilização de um meio, originalmente concebido para a proteção dos interesses da sociedade, para constranger, amedrontar e desqualificar juízes não fincando incólume nem mesmo o guardião máximo dos direitos constitucionais o Supremo Tribunal Federal.

Como bem disse o deputado Simão Sessim (PP-RJ), “se um juiz de direito foi vítima de acusação ilegal e caluniosa, imagine os riscos que não corre o cidadão comum nesse País.”

A verdade é que o grampo tem sido usado, em não raros casos, como ferramenta opressiva e intimidatória, eclipsado pelo sofisma de buscar-se a “verdade”, refletindo uma faceta de regimes autoritários.

Nesse diapasão, vale lembrar que em nome de Deus cometeu-se atrocidades, sendo inadmissível prática tão vil, que conspurca a grande conquista do povo brasileiro no que se refere aos direitos e garantias individuais, materializada na Constituição da República Federativa do Brasil.

Bibliografia

FILHO, Vicente Greco. Interceptação telefônica — considerações sobre a Lei nº 9.296 de 24 de julho de 1996. Editora Saraiva, 2006.

FERNANDES, Antonio Scarance. A lei da interceptação telefônica, justiça penal: provas ilícitas e reforma pontual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. v. 4.

CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. São Paulo, Editora Saraiva, 2007.

FILHO, Antonio Magalhães Gomes. A violação do proncípio da proporcionalidade pela Lei nº 9.295/96. Bol. 1, IBCCRIM, Ed. Especial, nº 15. p. 14. Ago/2006.

ARANHA, José Q. T. Camargo. Da prova no processo penal, Editora Saraiva, 2006.

GARCIA, Luis M. M. La intervención de las comunicaciones telefónicas y otras telecomunicaciones em el codigo procesal penal de la nación: un cheque en blanco para espiar noestra vida privada: 2ª parte. Cuadernos de doctrina y jurisprudencia penal. Boenos Aires, V3, nº 6, p. 405-477, Ago/1997.

STRECK, Lenio Luiz. As interceptações telefônicas e os direitos fundamentais. Porto Alegre: Livro do Advogado Ed. 2001.

COELHO, Inocencio Martires. Interpretação constitucional, 3ºed. Editora Saraiva, 2007.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!