Hora da Justiça

Entrevista: Álvaro Ciarlini, secretário-geral do CNJ

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13 de julho de 2008, 0h00

Desde que foi criado, há três anos, o Conselho Nacional de Justiça enfrentou e venceu importantes batalhas. Fez a limpeza do nepotismo no Judiciário e enquadrou juízes e outros servidores no teto salarial, até então mera peça decorativa na legislação. Há duas semanas, colocou no ar o Sistema Justiça Aberta, que permite aos cidadãos acompanhar a produtividade dos juízes — um passo como jamais foi dado rumo à transparência deste poder.

O maior gargalo da Justiça, contudo, ainda não foi devidamente atacado: a lentidão, que faz com que todas as outras conquistas fiquem em segundo plano. Mas no que depender do novo secretário-geral do CNJ, juiz Álvaro Ciarlini, a hora de acertar os ponteiros com o relógio chegou.

“As administrações anteriores consolidaram o nome e a imagem do CNJ e afirmaram suas atribuições constitucionais. Agora, entramos na fase de identificar as deficiências para adotar políticas e resolver os problemas crônicos do Poder Judiciário”, afirmou o juiz em entrevista à Consultor Jurídico.

Entusiasmado com os desafios do novo cargo, o secretário, que tomou posse na última terça-feira (8/7), aponta avanços nas soluções já adotadas e implementadas pelo Conselho. Em alguns Juizados onde o CNJ instalou seu projeto de processo digital, o tempo de tramitação das causas foi reduzido em até 70%, comemora Ciarlini.

O papel do secretário-geral do CNJ na busca da eficiência na prestação da Justiça é o de coordenar as ações. Dele dependem em grande medida a velocidade da aplicação dos projetos e injeção de recursos decididos pelos conselheiros. Entusiasmo para a tarefa não falta a Ciarlini: “Nunca esteve tão perto a possibilidade de identificar as deficiências e atacá-las pontualmente, para fazer o Judiciário cumprir sua missão de distribuir justiça”.

Nascido no Rio de Janeiro, Ciarlini é mestre em Filosofia e doutor em Direito pela Universidade de Brasília. É juiz no Distrito Federal desde abril de 1994. Antes de assumir no CNJ, era o titular da 2ª Vara da Fazenda Pública do DF.

Leia a entrevista

ConJur — O CNJ deve dedicar mais tempo à tarefa de fixar políticas para o Judiciário ou à de fiscalizar e punir juízes por desvios éticos?

Álvaro Ciarlini — O Conselho tem as duas atribuições e tem de cuidar das duas com o mesmo zelo. Há a obrigação de fiscalizar condutas de magistrados, em todas as esferas, que é a função da Corregedoria Nacional de Justiça. E existe a estrutura para fazer a análise das necessidades, das demandas do Judiciário, para coordenar ações políticas que façam a Justiça atingir um alto grau de eficiência.

ConJur — O Conselho ainda enfrenta resistências de juízes de primeira instância e tribunais?

Ciarlini — O CNJ foi muito criticado e olhado com desconfiança no início, mas eu sinto que já há a compreensão da importância desse órgão, principalmente no sentido de zelar pela imagem do Poder Judiciário e de garantir que a Justiça cumpra seu dever. As administrações anteriores trataram de consolidar o nome, a imagem do CNJ e a firmar suas atribuições constitucionais. Agora estamos em uma nova fase, de percepção das deficiências e adoção de políticas para que o Judiciário faça valer princípios como o da razoável duração do processo, por exemplo. Isso significa trabalhar fortemente para encontrar soluções para problemas crônicos do Poder Judiciário.

ConJur — A lentidão é o mais crônico dos problemas da Justiça?

Ciarlini — A lentidão é um tema que está na pauta e há um princípio constitucional, da razoável duração do processo, que precisa ser cumprido. Mas o que é razoável fazer diante de tamanha demanda? A lentidão é um problema complexo. Está ligado a diversos fatores, que têm de ser examinados de forma sistêmica. A carga de trabalho de um juiz brasileiro, por exemplo, é absurda, talvez seja a carga de trabalho mais pesada do mundo. Quando deixei a 2ª Vara da Fazenda Pública do DF para assumir a secretaria do CNJ tinha 17 mil processos em curso.

ConJur — Quantos processos entram em uma Vara de Fazenda Pública do DF por mês?

Ciarlini — Entre 300 e 400 processos. Em períodos especiais, como no ajuizamento de lotes de execuções fiscais, pode ultrapassar mil casos por mês.

ConJur — Dá para julgar mil casos por mês?

Ciarlini — Não tem como administrar esse volume de processos. Mas eu dei o exemplo para mostrar que é preciso examinar com profundidade o problema. Porque não há juiz que dê conta de mil processos em um mês. A proposta da direção do CNJ é de estudar a origem dos problemas com mais seriedade. A partir do momento que identificarmos os gargalos, teremos meio caminho andado para obter as respostas. O CNJ trabalha hoje pela integração dos tribunais para que possamos dar uma resposta uniforme a determinados problemas.

ConJur — Integrar os tribunais significa investir em tecnologia?

Ciarlini — Há a idéia de investir fortemente nessa área, mas de forma conseqüente porque o CNJ deve dar o exemplo de austeridade e de legalidade.

ConJur — Em quanto tempo todos os atos processuais poderão ser feitos pela internet?

Ciarlini — Nas gestões passadas se falou que em cinco anos o Judiciário estaria completamente informatizado e automatizado. Fez-se a eleição de uma ferramenta de informatização que, acreditava-se, daria conta do recado. Mas depois se percebeu que a questão é mais complexa. Cada região do Brasil, cada órgão do Poder Judiciário tem suas próprias contingências e sua complexidade.

ConJur — Não é possível simplificar essas peculiaridades regionais, adaptá-las a padrões nacionais?

Ciarlini —Nós não podemos adotar soluções que tendam a simplificar os problemas. Os problemas existem por si. As soluções devem resolver os problemas. Não podemos tentar ajustar os problemas às soluções.

ConJur — O que já foi feito de concreto para atacar a lentidão judicial?

Ciarlini — O Projudi [sistema de informática do CNJ chamado Processo Judicial Digital], por exemplo, está sendo implantado em diversos lugares e tem gerado resultados bastante proveitosos. Pelo sistema, o andamento do processo é todo digital. Não há papel. Em alguns Juizados Especiais nos quais o sistema foi instalado junto com equipamentos, softwares e treinamento fornecidos pelo CNJ — e com as adaptações necessárias à realidade local — o tempo de tramitação do processo diminuiu em até 70%. Estamos também articulando ações com a Secretaria de Reforma do Judiciário para levantar as principais deficiências e atacá-las.

ConJur — O sistema Justiça Aberta inovou ao tornar transparente a produtividade dos juízes, mas sofreu muitas críticas até ser instalado. A que o senhor atribui essa resistência da magistratura de ter seu trabalho fiscalizado pela sociedade?

Ciarlini — O sistema tem como objetivo a coleta de dados das serventias judiciais e extra-judiciais. E revela um retrato imediato da situação das varas em cada local. Os juízes são preocupados com estatísticas porque ninguém deseja ficar com trabalho atrasado, em que pese o tamanho da carga e o volume de processos que tem para julgar. Os juízes temem que sejam feitos rankings e comparadas varas que tem melhor estrutura, informática, mais servidores, com outras que têm estrutura precária. Seria uma comparação injusta. Porque, neste caso, o que produziu menos pode ter trabalhado tanto quanto o que produziu mais.

ConJur — Mas sem essa comparação não é possível identificar onde estão as deficiências para corrigi-las.

Ciarlini — O sistema não tem o propósito de criar um ranking nacional de juízes. O objetivo é exatamente colher dados estratégicos para decidir as medidas que devem ser tomadas do ponto de vista de políticas para o Poder Judiciário. E para identificar as deficiências não é preciso fazer ranking. Com os dados em mãos, o CNJ então passa a agir proativamente no sentido de dar o atendimento adequado para as áreas com problemas. Os juízes devem se tranqüilizar porque isso não é uma inquisição.

ConJur — A correção das deficiências não passa pela redução das férias dos juízes de 60 para 30 dias, como é para os outros cidadãos?

Ciarlini — O período de férias para juízes não foi criado aleatoriamente, não é uma benesse. Os juízes estão sob constante tensão emocional. Um magistrado que trabalha na esfera penal passa o dia decidindo sobre homicídios, latrocínios, estupros… E depois ainda vai para casa de noite e, muitas vezes, trabalha nas sentenças. Não tem horário de trabalho. Isso faz com que o juiz entre em um processo de esgotamento mental e físico muito grande, que justifica um período maior para recompor sua saúde. Tenho quase 15 anos de magistratura e dou meu testemunho: é uma função das mais desgastantes. Do ponto de vista fisiológico, esse período é necessário.

ConJur — Há propostas no Congresso que reduzem as férias de juízes?

Ciarlini — Vamos discutir. Só desejo que a discussão seja embasada em parâmetros científicos. Se houver uma análise séria, a discussão é saudável. Não pode ser só um ataque aos juízes. O receio é que tenhamos um período diminuto de férias e que os juízes passem a adoecer e a entrar de licença médica. O que é, aliás, corrente já hoje.

ConJur — Falta só gerenciamento ou faltam recursos financeiros para o Judiciário?

Ciarlini — Um pouco de cada coisa. Nossa mentalidade sobre a Justiça tem que acompanhar os movimentos históricos. Os paradigmas sociais e políticos se alteraram e o Poder Judiciário ainda não conseguiu se adequar a essas mudanças. Temos de pensar em como a Justiça pode, efetivamente, andar na velocidade de seu tempo. Mas é preciso acolher as mudanças sem que elas afrontem liberdades constitucionais. É um desafio complexo.

ConJur — Esse embate entre os avanços e a garantia dos direitos se verifica claramente na discussão em torno da adoção do interrogatório por vídeo-conferência, não? Os defensores do sistema apontam para a economia e a tecnologia. Os que o atacam apontam para as garantias fundamentais…

Ciarlini — De fato, são esses os embates. Os paradigmas vão se alterando e nós começamos a aceitar novos conceitos em virtude da sofisticação, da rapidez, da velocidade da vida. Com o Judiciário acontece a mesma coisa. A vídeo-conferência e a tele-audiência merecem reflexão sobre o risco de se violar direitos constitucionais das pessoas envolvidas nos procedimentos penais. Hoje, há decisões que não admitem a vídeo-conferência por reputá-la como cerceadora de direitos. Mas está em tramitação no Congresso Nacional um projeto de lei que regulamenta essa matéria e traz nova estrutura normativa para garantir os direitos de presos e outras pessoas que respondem a processos criminais. Claro que é impossível ficar imune contra os abusos. O que nós temos que criar é uma estrutura de detecção desses abusos quando eles ocorrem. E aí ter respostas rápidas e enérgicas para coibi-los.

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