Uso das algemas

Prisões pela PF reabrem a discussão sobre a execração pública

Autor

  • Luiz Flávio Borges D'Urso

    é ex-presidente da OAB-SP (por três gestões 2004/2012) membro honorário vitalício da OAB-SP presidente de honra da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim) mestre e doutor pela Faculdade de Direito da USP.

11 de julho de 2008, 12h19

Toda operação policial ou militar deve se restringir aos ditames da lei — constitucional ou infraconstitucional —, evitando lesões aos direitos e às garantias dos cidadãos que estejam na condição de suspeitos ou acusados. Todos são amparados pelo princípio constitucional da presunção de inocência e devem ter sua dignidade preservada.

As recentes prisões pela Polícia Federal do banqueiro Daniel Dantas, do investidor Naji Nahas e do ex-prefeito Celso Pitta reabrem a discussão sobre a execração pública à qual os suspeitos são submetidos neste país. Não se contesta o papel que a Polícia Federal tem dentro da democracia, principalmente no combate à corrupção. O que se contesta são os excessos que permeiam os métodos empregados por agentes públicos.

O abusivo — e meramente espetaculoso — uso de algemas durante o cumprimento dos mandados de prisão tem se cristalizado como regra e, na maioria das vezes, se mostra desnecessário. Lamentavelmente, estamos assistindo também à banalização da decretação de prisões processuais. A comprovação disso é a costumeira revogação dessas prisões quando se recorre aos tribunais superiores. O artigo 1º da Constituição Cidadã de 1988, que está completando 20 anos, proclama que a República brasileira é um Estado democrático de Direito, e não um Estado policial.

Assim, a dignidade do cidadão deve ser inteiramente respeitada, como determina o artigo 5º, inciso III, da Constituição. Por isso, devemos estar sempre alertas diante das arbitrariedades perpetradas por policiais contra “a”, “b” ou “c”, impondo constrangimentos e humilhações desnecessários.São demagógicos e pífios quaisquer discursos em defesa da utilização indiscriminada de algemas, trazendo a questão para um contexto de luta de classes, na qual o pobre pode ser algemado, e o rico, jamais.

Não é nada disso. Nem o pobre, nem o rico, nem o negro, nem o branco, nem o amarelo, nem o homem, nem a mulher podem ser algemados exclusivamente para sua execração pública. O uso indiscriminado, e quase sempre vexatório, de algemas constitui um excesso, uma punição infundada que foge aos limites da lei brasileira e serve apenas para “espetacularizar” a diligência policial, conquistar visibilidade e humilhar o cidadão, que, embora detido, deve ter sua dignidade preservada.

Se já está detido, significa que foi alcançado pelos tentáculos policiais do Estado. Logo, este tem o dever de zelar pela sua integridade física e moral. O Código de Processo Penal, em seu artigo 284, estabelece que “não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”. E, no artigo 292, esclarece que somente no caso em que houver resistência à prisão em flagrante ou determinada por autoridade competente os executores da ordem de prisão podem sacar desse meio para vencer a resistência.

O código é muito claro, mas muitas vezes violado pela não-observância dos seus primados. Por sua vez, o Código de Processo Penal Militar se mostra ainda mais explícito. No artigo 234, parágrafo 1º, estabelece que o emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso.

Portanto, é preciso definir balizas para as condutas dos agentes policiais do Estado por esses dois códigos, uma vez que o artigo 199 da Lei de Execução Penal (lei 7.210/84) prevê que o emprego de algemas deverá ser disciplinado por decreto federal, fato que ainda não ocorreu passados 24 anos da promulgação da legislação. Ainda é preciso destacar que, quando o agente do Estado não cumpre o que estabelecem as normas jurídicas nacionais e os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, o abuso —inclusive na utilização de algemas — deve, em tese, constituir crime.

Está previsto na Lei de Abuso de Autoridade (Lei 4.898/65), artigo 4º, que submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei pode levar o seu autor às sanções administrativa, civis e penais. Ou seja, normas nós temos muitas. Agora, precisamos colocá-las em prática em nome do fortalecimento do Estado democrático de Direito.

[Artigo publicado na Folha de S.Paulo, desta sexta-feira, 11 de julho.]

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