Subsolo e aéreo

Uso do direito de superfície no Estatuto da Cidade e no Código Civil

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3 de julho de 2008, 1h00

O presente ensaio tem o condão de analisar aspectos específicos acerca do direito de superfície — direito real de regulamentação relativamente nova no ordenamento jurídico brasileiro — mormente no que tange à possibilidade da utilização do subsolo e do espaço aéreo da área sujeita aos efeitos desse direito.

O tema foi primeiramente abordado pelo Estatuto da Cidade, Lei 10.257/01, diploma este que o fez em seus artigos 21 a 24. Posteriormente o Código Civil também regulou a matéria nos artigos 1369 a 1377.

Especificamente no que toca à utilização do subsolo e do espaço aéreo, a regulamenta-ção trazida pelo Código Civil foi mais restrita, o que acabou por gerar polêmica na doutrina acerca de uma possível revogação dos dispositivos presentes no Estatuto da Cidade. Este não parece ser o melhor entendimento. É o que tentaremos demonstrar.

Direito de superfície

O direito de superfície, embora no plano doutrinário tenha sido em muitas passagens objeto de estudo sob o enfoque de um direito real, somente com a entrada em vigor do Código Civil de 2002 é que foi inscrito definitivamente no rol de tais direitos — artigo 1225, II, CC.

O mestre Caio Mário da Silva Pereira [1] assim o descreveu: “O ‘direito de superfície’ é um desses institutos que os sistemas jurídicos modernos retiram das cinzas do passado, quando não encontram fórmulas novas para disciplinar relações jurídicas impostas pelas necessidades econômicas ou sociais. […] O direito de superfície caracteriza-se como um instrumento real sobre coisa alheia, e se apresenta como um desdobramento da propriedade”.

Como bem salientou o autor, há um desdobramento da propriedade, de modo que o direito de superfície faz surgir um direito real autônomo, na medida que o superficiário detém a propriedade do edifício ou da plantação que constrói ou semeia, mantendo-se ao mesmo tempo, a propriedade do solo na esfera jurídica do cedente ou fundieiro.

Nesta toada, a IV Jornada de Direito Civil [2] promovida pelo Conselho da Justiça Fe-deral aprovou o seguinte enunciado: “321 — Art. 1.369. Os direitos e obrigações vincu-lados ao terreno e, bem assim, aqueles vinculados à construção ou à plantação formam patrimônios distintos e autônomos, respondendo cada um dos seus titulares exclusiva-mente por suas próprias dívidas e obrigações, ressalvadas as fiscais decorrentes do imó-vel”.

Neste espeque, é possível perceber que a partir de tal desdobramento o superficiário passa a ocupar o solo podendo dele fazer uso nos moldes do acordo firmado entre este e o cedente, sendo devida, acaso preveja o acordo, uma recompensa em razão de tal uso.

Direito de superfície no Estatuto da Cidade

O Estatuto da Cidade, diploma promulgado em razão dos ditames do artigo 182 e 183 da CR/88, visava a regulamentação da política urbana. A justificativa para sua elaboração assenta-se na necessidade de se organizar os centros urbanos, posto que, nas últimas décadas, um significativo número de pessoas migraram para estes.

A necessidade de organizar e estruturar o espaço urbano nos remete também à noção de meio ambiente, previsto nos artigo 225, CR/88, na medida em que se exige um meio ambiente equilibrado visando uma sadia qualidade de vida. O Estatuto da Cidade ao tratar de meio ambiente, o faz sob o enfoque do meio ambiente artificial, o qual mantém intrínseca relação com o Direito Ambiental, vez que a própria lei determina que seu fim é assegurar a sadia qualidade de vida dos moradores de uma cidade.

Dentre outros instrumentos voltados para o alcance da Função Social da Propriedade, o Estatuto da Cidade regulamentou pela primeira vez em nosso ordenamento jurídico o direito de superfície, visando acima de tudo o incentivo à utilização do solo urbano de forma a buscar a promoção da função social da propriedade, bem como a melhoria da qualidade de vida nos grandes centros.

Nesse diapasão a propriedade deixa de ser vista como uma prerrogativa de um direito subjetivo, para ser analisada como relação jurídica, ou seja, o proprietário passou a ter obrigações a cumprir para com a propriedade e os demais membros do corpo social, e o principal deles é exatamente o uso desta.

Da forma como foi traçado no Estatuto da Cidade, o direito de superfície permite de acordo com o artigo 21 o uso do solo, do subsolo e do espaço aéreo: “Artigo 21. O proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de superfície do seu terreno, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no cartório de registro de imóveis. § 1o O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato respectivo, atendida a legislação urbanística”.

Assim sendo, está, nos moldes acima traçados, presumidamente autorizado o uso do subsolo e do espaço aéreo. É, portanto, uma decorrência da lei.

Isso se explica facilmente em razão de o Estatuto ser voltado para a promoção de políticas urbanas, ou seja, edificar, fazer construções na área objeto do direito em comento. Ora, edificar é admitir, inegavelmente, tanto a utilização do subsolo, na medida em que é neste que se fixam as fundações, ou mesmo os andares subterrâneos; bem como, o uso do espaço aéreo, posto que o soerguimento de obras faz uso deste.

Direito de superfície no Código Civil

O Código Civil, na medida em que permite sua concessão também para imóveis rurais, teve maior amplitude quando cotejado ao Estatuto da Cidade. No entanto, de acordo com aquele, apenas o uso do solo estaria abarcado pela concessão de tal direito, devendo o uso do subsolo e do espaço aéreo estar previsto ou no instrumento de concessão ou ser uma decorrência da natureza desta. “Artigo 1.369. O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis. Parágrafo único. O direito de superfície não autoriza obra no subsolo, salvo se for ine-rente ao objeto da concessão”.

Código Civil: uma possível revogação?

Aqui está a grande polêmica. Sendo o código civil uma lei posterior, teria este o condão de revogar os dispositivos do Estatuto da Cidade, na medida em que regula a matéria de forma distinta? Seria um caso de aplicação do artigo 2°, §1º da LICC?

Parte da doutrina afirma que sim, haja vista o posicionamento de J. Miguel Lobato Gómez [3] que em texto científico assim afirmou: “lex posterior anterior derogat. Princípio este último que, uma vez promulgado o novo Código Civil, vai atuar no sentido inverso revogando as normas especiais anteriores do Estatuto da Cidade, que na mesma matéria, sejam incompatíveis com a lei posterior, ainda que geral. […] no caso de existir normas conflitantes entre ambos corpos legais, que tenham a finalidade de regulamentar rela-ções de Direito privado em cuja criação intervenha a livre e espontânea vontade das partes, será aplicável preferentemente o Código Civil, independentemente de sua utilização como direito supletivo caso de existir lagunas na legislação urbanística.

[…]

Portanto, aplicando a mais estrita lógica jurídica e a salvo o interes público, deve ser aceito que o Código Civil revoga as normas do EC que sejam contrarias a seus disposi-tivos”.

Maria Helena Diniz [4], por sua vez, admite a coexistência de ambos os diplomas e as-sim escreve sobre o tema: “O direito de superfície não autoriza que se faça obra em sub-solo, exceto se isso for inerente ao objeto da concessão feita (p. ex., abertura de poço artesiano e canalização de suas águas até o local das plantações) ou para atender a legis-lação urbanística (Lei 10.257/2001, arts. 21 a 24)”.

Em nossa opinião maior razão assiste a este último posicionamento, de sorte que ambos os diplomas normativos, Código Civil e Estatuto da Cidade, permanecem em vigor. No Estatuto da Cidade o uso do subsolo e do espaço aéreo tem conteúdo transcendental ao simples interesse do particular, posto que o mencionado diploma foi elaborado com olhos na promoção social e no desenvolvimento salutar do espaço urbano, e, em sendo necessário a utilização de áreas que vão além ou aquém da superfície, o uso não poderia ser impedido alegando-se que tal prerrogativa não havia sido estabelecida no ato de contratação.

Esta inclusive foi a orientação adotada no Enunciado 93 da I Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal [5]: “93 — Art. 1.369: As normas previstas no Código Civil sobre direito de superfície não revogam as relativas a direito de superfície constantes do Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001) por ser instrumento de política de desenvolvimento urbano”.

Conclusões

Em que pese o aparente conflito de regras no tempo, entendemos que ambos os diplo-mas gozam de vigência, sendo aplicados cada um destes para os objetivos por eles traçados. Ou seja, acaso se vislumbre que a concessão do direito de superfície tem por objetivo o desenvolvimento urbano, nos moldes traçados pelo estatuto da cidade, a concessão e a exploração da superfície deve pautar-se nos ditames da Lei 10.257, permitindo-se, ainda que silente o acordo de concessão, a exploração do subsolo e do espaço aéreo como a mais límpida forma de promoção da função social da propriedade.

Notas

[1] PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil, Direitos Reais, Vol. IV, Rio de Janeiro, Forense, 2005, p. 243;

[2] IV Jornada — Leia aqui — Acesso em 25.07.08.

[3] GÓMEZ, J. Miguel Lobato. Código Civil e Estatuto da Cidade . Jus Navigandi, Te-resina, ano 8, n. 247, 11 mar. 2004. Disponível em: Leia aqui. Acesso em 24.07.08.

[4] DINIZ, Maria Helena, Código Civil Anotado, 13 ed, Saraiva, São Paulo, 2008, p. 931.

[5] Leia aqui.

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