Judicialização da política

Ficha suja: partidos políticos não cumprem o seu papel

Autor

2 de julho de 2008, 10h37

Estamos acompanhando o debate sobre a possibilidade de cidadãos, que respondam a certos processos, poderem ou não registrar suas candidaturas. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) diz que, em tese, poderão porque a lei proíbe as candidaturas somente no caso de condenação transitada em julgado, mas os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) decidiram que os candidatos de “ficha suja” terão as candidaturas impugnadas.

Trata-se de um conflito interessante esse entre o TSE e os TREs. O que está em questão não é apenas a idoneidade do candidato, a qual, segundo alguns estaria comprometida em razão da existência de pendenga judicial, mas o cumprimento da lei pelos TREs, ou do entendimento, claramente político desses órgãos do Poder Judiciário.

A lei diz que em não havendo trânsito em julgado — ou seja, em não estando definitivamente julgado o processo que sofre o candidato — ele, mesmo que esteja respondendo a processo, poderia, e poderá candidatar-se, mas não é essa a interpretação defendida pelos TREs.

O conteúdo da norma, seu comando enfim, perde relevância diante do fenômeno denominado Judicialização da Política. Mas antes de falar sobre esse tema vale a pena, creio, escrever sobre o que dispõe o inciso LVII do artigo 5ª da Constituição Federal de 1988: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Mas qual o significado de tal enunciado normativo e, em que ele se aplica à questão das candidaturas daqueles que tem “a ficha suja”?

Trata-se de um princípio constitucional, um princípio que trata da presunção da inocência, agora positivado, muito embora já fosse arrolado pela doutrina pátria dentre os princípios gerais que regiam o direito processual penal. A forma como está enunciado na constituição, entretanto, ensejou por si mesma alguns debates a respeito do seu alcance, e é por ai que os TREs estão tratando o assunto. Isso porque não se repetiu a fórmula consagrada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembléia Nacional Francesa, em 26 de agosto de 1789, bem como pela Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 e pela Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969.

Não está dito no texto constitucional que todo o homem se presumirá inocente, até que seja condenado, mas sim que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Em vista disso, não se estaria consagrando propriamente o princípio da presunção da inocência, mas sim o da desconsideração prévia da culpabilidade, de aplicação mais restrita.

De fato, a Constituição Federal adotou a redação do artigo 27.2 da constituição italiana de 1948, a qual por sua vez resultou de um movimento protagonizado por parte da doutrina italiana que defendia a restrição do alcance do princípio da inocência, com vistas a garantir a eficácia do processo penal. Enrico Ferri sustentava que só se poderia admitir a presunção de inocência do delinqüente ocasional que houvesse negado a prática do crime, e mesmo assim somente imputado, e não sua inocência, enquanto não se reunisse prova indiciária contra ele.

Segundo Ferri a própria instauração do processo criminal autorizaria que se presumisse a culpa do acusado, trata-se de uma perspectiva bastante interessante, e que poderia ser aplicada se a lei eleitoral não fosse expressa.

O TSE já decidiu a questão, mas os presidentes dos Tribunais Regionais Eleitorais divulgaram a Carta do Rio de Janeiro, documento final do 41º Encontro do Colégio de Presidentes dos Tribunais Regionais Eleitorais do Brasil, que ocorreu no Rio de Janeiro. A tal Carta traz um resumo dos consensos entre os 26 magistrados que participaram do evento.

O documento reafirma a necessidade de a Justiça Eleitoral levar em conta a “ficha suja” dos candidatos no momento do registro da candidatura. Durante o encerramento do encontro, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Carlos Ayres Britto, afirmou que as propagandas institucionais do TSE devem alertar o eleitor a examinar a vida pregressa dos candidatos antes de decidir em quem votar. Ele comentou ainda a definição estabelecida no documento final do Encontro e chegou a declarar que diante de um caso escandaloso, de namoro aberto do candidato com a delituosidade e desvio de condutas, não se pode negar à Justiça Eleitoral condições de barrar o seu ingresso na vida pública.

Não há duvida da necessidade de a Justiça Eleitoral considerar a vida pregressa dos candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereador quando da apreciação do pedido de deferimento do registro da candidatura, para proteger e efetivar, previamente, a probidade administrativa e a moralidade pública no exercício do mandato eletivo, mas, s.m.j., não cabe à Justiça eleitoral alterar a lei naquilo que ela é clara, o Poder Judiciário não faz leis, salvo se estivermos diante de uma espécie nova de ditadura, a ditadura do judiciário.

Até porque a Constituição Federal de 1988 regula os direitos políticos, tratando das Inelegibilidades no artigo 14, parágrafos 4º a 9º, e por força do parágrafo 9, foi promulgada a Lei Complementar 64/90, de 18 de maio de 1990, que, aludindo ao dispositivo Constitucional, versa sobre casos de Inelegibilidade, prazos de cessação, e determina outras providências.

Os casos de Inelegibilidades dispostos no artigo 14 da Constituição Federal de 1988 e são: a) os menores de 18 anos e os analfabetos; b) o Presidente da República, os governadores de estado e do Distrito Federal, os prefeitos e quem os houver substituído ou sucedido no curso dos mandatos que não renunciarem os respectivos mandatos até seis meses antes do pleito, na hipótese de concorrerem a outros cargos; c) os cidadãos que mantenham vínculos pessoais com titulares de certos cargos; d) os demais casos de Inelegibilidades dispostos então, da Lei Complementar 64/90.

A fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade das eleições contra a influência do poder econômico ou abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta, foi instituída a lei Complementar 64/90 que traz os seguintes casos de Inelegibilidades:

a) Os membros do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas, da Câmara Legislativa e das Câmaras Municipais que hajam perdido os respectivos mandatos por infringência a dispositivo constitucional, são inelegíveis para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos oito anos subseqüentes ao término do mandato.

b) Os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, transitada em julgado, em processo de apuração de abuso de poder econômico ou político, serão inelegíveis para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as eleições que se realizarem nos três anos seguintes.

c) Os que forem condenados criminalmente, com sentença transitada em julgado, pela prática de crimes contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, pelo tráfico de entorpecentes e por crimes eleitorais, serão inelegíveis pelo prazo de três anos, após o cumprimento da pena.

d) Os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se a questão houver sido ou estiver sendo submetida à apreciação do Poder Judiciário, terá decretada sua inelegibilidade para as eleições que se realizarem nos cinco anos seguintes, contados a partir da data da decisão.

e) Os que forem declarados indignos do oficialato, ou com ele incompatíveis, serão inelegíveis pelo prazo de quatro anos. A indignidade para o oficialato deve decorrer de sentença transitada em julgado, emanada do órgão do Poder Judiciário, e não das notáveis comissões internas.

f) Os detentores de cargos na administração pública direta, indireta ou fundacional, que beneficiaram a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político apurado em processo, com sentença transitada em julgado, serão inelegíveis para as eleições que se realizarem nos três anos seguintes ao término do seu mandato ou do período de sua permanência no cargo.

g) Os que, em estabelecimento de crédito, financiamento ou seguro, que tenham sido ou estejam sendo objeto de processo de liquidação judicial ou extrajudicial, hajam exercido, nos doze meses anteriores à respectiva decretação, cargo ou função de direção, administração, ou representação, enquanto não forem exonerados de qualquer responsabilidade.

Ou seja, a Lei Complementar 64/90 prevê hipóteses claras de inelegibilidade, e dentre elas não está a hipótese de que seria inelegível quem está respondendo a processo, ainda não transitado em julgado.

Mas se a constituição e a lei complementar são tão claras por que o debate? Por que o embate entre o TSE e os TREs? Bem, na minha opinião porque os partidos políticos e o Poder Legislativo não cumprem o seu papel, eles não têm sido capazes de fazer o debate político no seu campo de competência institucional tem transferido para o Poder Judiciário, de forma crescente, um debate que não é a priori jurídico, mas político, e esse crescente protagonismo do Poder Judiciário constitui o que juristas e sociólogos chamam de “judicialização da política”.

O fenômeno não é novo e ficou conhecido na Itália, na década de 1990, quando os juízes passaram a autorizar a prisão de líderes políticos acusados de envolvimento com a máfia. A Operação Mãos Limpas foi um sucesso, mandando para a cadeia personalidades até então tidas como insuspeitas. O problema lá, como cá, foi que muitos magistrados italianos passaram a interferir excessivamente na vida política, administrativa e econômica do país, o que levou à chamada “politização da Justiça”, o que é no todo ruim.

Com sentenças ideologicamente enviesadas e justificadas em nome da “depuração da classe política”, os juízes na Itália passaram a exorbitar de suas prerrogativas, tomando iniciativas que não lhes cabia tomar sem serem provocados para isso, o que resultou em confusão institucional, isso pode estar acontecendo no Brasil.

O Brasil não está imune ao efeito colateral da “judicialização da política”, que é a “politização da justiça”, que o sociólogo Fábio Wanderley Reis chamou, em artigo publicado no jornal Valor, de “´Pretorianismo da Toga” — numa alusão à intervenção das Forças Armadas na vida política.

É claro que a democracia brasileira não está correndo riscos, mas, em vez de gerar certeza do direito, os TRE podem acabar aumentando a insegurança jurídica, especialmente se lembrarmos que o país tem um viés patrimonialista vivo.

Quando tribunais e juízes ultrapassam os limites que o sistema jurídico lhes impõe, politizando a aplicação do Direito, o que se tem é confusão institucional. É esse o risco que o Poder Judiciário tem de aprender a evitar quando chamado a fechar lacunas abertas pelo Congresso e cabe à sociedade ficar atenta.

Em minha opinião cabe aos partidos políticos fazerem a análise da ficha dos candidatos que apresentarão à sociedade e cabe àqueles que têm questões a serem resolvidas no judiciário que as resolvam antes de buscar espaço na vida pública pela via institucional. Mas essa é só a minha opinião.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!