Defeito na origem

Crise está no ensino fundamental e não nas faculdades

Autor

  • João Grandino Rodas

    é presidente do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul diretor da Faculdade de Direito da USP mestre pela Harvard Law School e desembargador federal aposentado.

31 de janeiro de 2008, 11h23

A impossibilidade de serem abertas a todos os postulantes as portas da universidade no modelo público e gratuito — tradicionalmente aceitável — fez com que a universidade privada e paga acabasse responsável pelo oferecimento da grande maioria da vagas no ensino superior brasileiro. Por serem mais antigas, é natural, que as universidades públicas atraiam os pretendentes mais bem preparados.

Governos, entidades de classe e as próprias instituições educacionais buscam fiscalizar e dirigir o ensino — mas no Brasil, infelizmente, ainda não vicejou a auto-regulamentação no setor educacional. No âmbito do ensino jurídico, ora tomado como exemplo, o Ministério da Educação e a Ordem dos Advogados do Brasil vêm, cada qual à sua maneira e com objetivos próprios, buscando controlá-lo, objetivando seu aperfeiçoamento.

Embora seja salutar que o MEC venha cumprindo sua finalidade, sua fiscalização deve seguir certos parâmetros, sob pena de ser inócua. Muito embora os governos se sucedam e, ainda mais amiúde, se substituam os ministros, é imperiosa uma política básica e permanente de controle das instituições de ensino superior — públicas e privadas —, pois somente assim haverá credibilidade e eficácia. O MEC não se tem eximido, nas últimas décadas, de seu papel de controlador. Não se tem assistido, contudo, a ação uniforme e contínua, mas sim a movimentos episódicos e abruptos. A serena permanência de medidas de Estado imprime mais respeito do que o estrondo passageiro de ações de governo, uma vez que as políticas educacionais somente produzem frutos a longo prazo.

Por outro lado, a OAB, há décadas ministradora do exame que tem o condão de transformar o bacharel em advogado, não cessa de exigir maior participação na autorização para abertura de novos cursos jurídicos, bem como no controle de seu funcionamento. O exame em questão tem sido benéfico, impedindo que bacharéis sem a menor condição exerçam a advocacia, em detrimento da Justiça e de seus clientes. Indiretamente, contribui para o progresso do ensino do Direito, por exigir das escolas uma melhor preparação. Há, entretanto, aspectos irresolvidos, como a variabilidade de nível de exigência de Exame de Ordem nos estados da Federação e a real adequação à sua finalidade de detectar condições mínimas para o exercício profissional. Seria propício que os pareceres da OAB tivessem maior força, sem, contudo, retirar o poder decisório final do MEC.

Para completar o tripé embasador de progresso real e constante do ensino jurídico falta a implementação da auto-regulamentação, a exemplo do já ocorrido em outros segmentos. Algumas faculdades de Direito, públicas e privadas, lançariam um convite às demais para a formação de um grupo inicial que, anualmente, determinaria práticas factíveis (best practices) a serem voluntariamente seguidas. Essas práticas, com o tempo, se tornariam normas de conduta, reunidas num código de auto-regulamentação. Toda e qualquer escola jurídica, independentemente do patamar em que se encontre, poderia ingressar nesse sistema e dele se beneficiar, por ser ele paulatino e começar pelo básico. O único requisito necessário seria genuína boa intenção. As escolas que aderissem se destacariam das demais, por ostentarem um selo de qualidade.

O aperfeiçoamento do ensino superior é tarefa complexa, mormente num país continental, com população próxima de 200 milhões, como o Brasil. O sucesso dessa tarefa hercúlea depende da conjugação de forças, por longo espaço de tempo, do governo, das entidades de classe e das próprias instituições de ensino.

O MEC vem de realizar ofensiva fiscalizatória, com a promessa de estendê-la aos demais cursos, começando pelos de Pedagogia. Punindo os cursos de Direito cujos alunos se houveram mal no Enade e no Exame de Ordem, obrigou-os (mesmo que sob a aparência de assinatura de protocolo) a diminuir as vagas oferecidas, bem como a tomar uma série de medidas no que tange à melhora de suas grades curriculares, de seu corpos docentes, de suas bibliotecas, etc.

Tais medidas, desde que com as características explicitadas acima, são positivas. Parando aí, fica a impressão de que toda a responsabilidade recai sobre as faculdades particulares, assim transformadas em bodes expiatórios. Em todo esse processo, nenhuma palavra se disse sobre a causa primeira e mais importante da lastimável situação da educação superior brasileira, qual seja o baixíssimo nível (se é que há nível) da educação fundamental, que macula a educação média e torna utópica a possibilidade de ensino superior, no sentido etimológico da palavra. O silêncio se dá justamente no item em que é meridiana a responsabilidade dos governos dos últimos 50 anos, que, ao tentarem oferecer o ensino fundamental a uma clientela mais ampla, acabaram por entregar uma miragem, positiva apenas para as estatísticas.

Se, hipoteticamente, as faculdades ora castigadas tivessem como discípulos os melhores pretendentes (hoje matriculados nas faculdades públicas e particulares de excelência), certamente o respectivo desempenho no Enade e no Exame de Ordem teria sido muitíssimo melhor.

Cabe, assim, ao governo, além das medidas paliativas tendentes à melhora do ensino superior já tomadas, priorizar segura e definitivamente um ensino fundamental público e gratuito digno, em nível nacional. Essa medida, ademais de contribuir para equacionar o problema do ensino no Brasil, fomentaria decisivamente a inclusão educacional e, por decorrência, a econômica e social.

[Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo desta quinta-feira (31/1)]

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    é presidente do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul, diretor da Faculdade de Direito da USP, mestre pela Harvard Law School e desembargador federal aposentado.

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