Bons antecedentes

Na Justiça Eleitoral o que vale é a idéia de limpeza ética

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27 de janeiro de 2008, 10h07

Carlos Ayres Britto, 65 anos, recebeu a reportagem do jornal O Globo em seu apartamento, em Brasília, com uma edição da Constituição debaixo do braço. O ministro do Supremo Tribunal Federal estudava a lei eleitoral para não fazer feio em sua primeira entrevista como virtual presidente do Tribunal Superior Eleitoral, cargo que, pela tradição sucessória da Corte, assumirá em maio.

O exemplar da Carta Magna chama a atenção por ter cada espaço em branco recheado por anotações de próprio punho. É assim que ele estuda cada vez que precisa decidir alguma questão importante. Tem mais de 150 exemplares da Constituição, todas rabiscadas. “É uma coisa louca, né?”, pergunta, brincando com a própria mania.

No início de cada resposta, Carlos Britto assume ser uma pessoa “difícil de se entrevistar”. Antes de entrar no tema perguntado, é capaz de juntar num preâmbulo conceitos de física quântica, filosofia, poesia, meditação e, é claro, direito. Mas não foge a nenhuma polêmica. Uma delas, promete repercussão: Ayres Britto defende que candidatos com ficha criminal tenham o registro negado, mesmo que não tenham sido condenados em última instância. “Mas cada caso é um caso”, pondera. Cita como exemplo Eurico Miranda, presidente do seu clube de coração, o Vasco.

Assistir a jogos de futebol, aliás, é um dos hobbies desse sergipano que parece fazer multiplicar as horas do dia. Além das 12 a 14 horas de trabalho, dedica 20 a 40 minutos por dia a sessões de meditação, e outros tantos ao violão. Ao arranhar algumas notas, lembra que compôs músicas para festivais de MPB em seu estado. Já publicou sete livros de poesia. “Só há uma coisa de que gosto mais que direito: arte”.

Leia a entrevista concedida para os jornalistas Carolina Brígido, Alan Gripp e Diana Fernandes, do jornal O Globo:

O Globo — O senhor considera a Justiça Eleitoral capacitada para coibir crimes cometidos pelos candidatos em campanha?

Carlos Britto — Sim. Mas o gênero humano é pródigo no arranjo de fórmulas espúrias. A criatividade no campo da ilicitude é infinita. A cada momento nos deparamos e nos surpreendemos com formas inéditas de burlar nossa fiscalização.

O Globo — O que o juiz pode fazer para melhorar a Justiça Eleitoral?

Carlos Britto — Interpretar a legislação cada vez mais à luz da Constituição. Uma das questões mais debatidas ano passado foi a fidelidade partidária. A Constituição, que quer e exige fidelidade, faz do partido protagonista do processo eleitoral. Não há candidatura autônoma. O partido investe no candidato, o seleciona em convenção, abona o nome dele e cede espaços de propaganda para ele. De repente o eleito dá as costas ao partido com o mandato embaixo do braço. Acabamos com essa farra.

O Globo — Como eliminar o caixa dois?

Carlos Britto — Uma das formas é instituir o financiamento público de campanhas. Seria fundamental. Mas é possível fazer isso no plano jurisdicional. O TSE tem que entender que caixa dois significa abuso de poder econômico e causa perda de mandato. O tribunal está começando a ver dessa forma.

O Globo — Apesar de a lei permitir, o senhor concorda que pessoas com problemas na Justiça possam se candidatar?

Carlos Britto — Não. A norma jurídica nem sempre se manifesta por explicitude. Também se manifesta por implicitude. Em 2006, o TRE do Rio negou registro a Eurico Miranda como candidato a deputado federal, dizendo que ele respondia a um número tão grande de processos que evidenciava vida pregressa incompatível com a pureza que se exige do candidato. Concordo. Fiz um voto longo. Acabei vencido, mas dois ministros me acompanharam. A decisão foi por 4 a 3 no TSE. Ele andou dizendo que eu devia ser flamenguista. Logo eu, que sou vascaíno antes dele!

O Globo — Isso não fere o princípio de que uma pessoa só é considerada culpada quando julgada em última instância?

Carlos Britto — Há um direito constitucionalmente assegurado, que é a presunção de não culpabilidade enquanto não haja sentença penal condenatória definitiva. Mas é em matéria penal. Em matéria eleitoral, vale é a idéia de limpeza ética. Quem não tem o passado limpo, quem não tem vida pregressa pautada na ética, não tem qualificação para representar o povo.

O Globo — A pessoa teria que ter condenação pelo menos em primeira instância, como Eurico?

Carlos Britto — Tem que ter. Mas isso tem que ser analisado caso a caso.

O Globo — São muitos os candidatos com problemas na Justiça…

Carlos Britto — Chamo isso, com todo o respeito, de interpretação leniente da Justiça, interpretação frouxa. Não está conforme o rigor da Constituição. A Justiça Eleitoral, quando recebe pedido de registro de candidatura, tem o dever de pedir informações sobre a vida pregressa da pessoa. Só pode ser político quem tem vocação para servir a coletividade, ou seja, espírito público.

O Globo — Não seria necessária uma lei para impedir isso?

Carlos Britto — O ideal seria uma nova lei. Mas a falta de lei não significa falta de direito.

O Globo — Não é temerário o Judiciário agir sem lei específica?

Carlos Britto — O legislador é incapaz de prever todas as possibilidades de tramóias. O direito padece dessa fragilidade estrutural. Não tem resposta normativa escrita detalhada para a infinitude das vias de obtenção de um mandato escusamente. Aí o Judiciário entra. Chega um ponto em que tem que partir para interpretações implícitas. Quando você usa os dois lados do cérebro equilibradamente, o da razão e o da emoção, faz um casamento por amor e tem um rebento chamado consciência. Acusam o Judiciário de substituir o legislador. Não é isso. Podemos, com sensibilidade, adquirir novo par de olhos.

O Globo — É possível que governos criem programas sociais em ano eleitoral?

Carlos Britto — Em tese, seria proibido, mas teria que analisar caso a caso. É possível que, a pretexto de implantar uma política social, se esteja desequilibrando a disputa eleitoral. O caso vai dizer.

O Globo — A lei eleitoral permite que políticos cassados há quatro anos sejam candidatos neste ano. Concorda com isso?

Carlos Britto — É uma falha de interpretação. Temos que evoluir na interpretação. O maior teórico do Direito, Hans Kelsen, dizia que o direito legislado é uma moldura aberta: cabe mais de uma interpretação, salvo raras exceções.

O Globo —Pela lei, a punição é de três anos, a contar da eleição em que o ilícito foi cometido.

Carlos Britto — Nunca recebi um processo desses. A primeira vez que receber acho que vou chegar a uma conclusão diferente. Os físicos quânticos observam que a matéria é feita de partículas e ondas que se interagem. O observador atento passa a desencadear reações no objeto investigado. Uma norma jurídica é o meu objeto. Vou conversar com ele, ler com cuidado e entrar num clima de empatia. De repente ele passa a se me dar por um ângulo insuspeitado. Ao nível da interpretação, o Judiciário pode contribuir para o aperfeiçoamento do sistema jurídico. Eu entro num clima dialogal com o texto.

O Globo — Todos os juízes deveriam proceder dessa forma?

Carlos Britto — Muitas vezes, o defeito não é da legislação. E é cômodo para o juiz dizer: “Vou lavar minhas mãos”. Dizem: “Não posso fazer nada”. Pode sim! Releia a lei. Não tenha pressa!

O Globo — O PT que o senhor ajudou a fundar é diferente do de hoje?

Carlos Britto — Sou muito de virar a página. Como toda pessoa que faz meditação oriental, um exercício de presentificação, você aprende a viver no presente. Virei essa página do meu vínculo com o PT.

O Globo — Mas renega esse passado?

Carlos Britto — De jeito nenhum. Foi muito importante para a minha formação, a minha visão de Brasil, o meu compromisso social.

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