Tratamento repressivo

Criminalização do aborto não impede que ele seja feito

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20 de janeiro de 2008, 10h19

Deixando de lado a visão tradicionalmente hipócrita sobre o tema, não é segredo para ninguém ser a gravidez indesejada freqüentemente interrompida em clínicas clandestinas pelas classes abastadas. Mais uma vez se pratica no Brasil uma brutal discriminação de poder aquisitivo: a mulher abastada tem condições de pagar pelo aborto, com segurança, higiene e cuidados, enquanto a mulher pobre e desesperada com a gravidez, em geral, entrega-se nas mãos dos chamados “carniceiros”, correndo enorme perigo de vida. No ano passado o Ministério da Saúde gastou mais de R$ 35 milhões com a internação dessas gestantes. E não foi ainda realizado estudo confiável visando determinar os verdadeiros custos para os cofres públicos gerados por essa prática incontrolada e insalubre.

Especialistas na matéria, no entanto estimam que as complicações do aborto clandestino costumem gerar custos 10 vezes maiores do que para o atendimento dos casos de aborto legal. É forçoso e lamentável se admitir que a interrupção voluntária da gravidez consista numa realidade cotidiana, clandestina e social nos países em que o aborto ainda não foi legalizado.

Afigura-se a criminalização do aborto, do ponto de vista jurídico e constitucional, um lamentável equívoco. Sua proibição expõe a mulher que decide abortar, repita-se, a severos riscos de vida e a seqüelas bem conhecidas pelo sistema de saúde brasileiro, já que a paciente recorre a expedientes duvidosos, especialmente se for pobre, sem assistência médica e sem os cuidados higiênicos básicos exigidos para a sua prática. Por esse motivo o aborto já é a terceira causa de morte materna no país.

Da forma como vem sendo tratada a matéria, ao contrário de tutelar a vida humana cria-se ameaças a outros bens jurídicos e constitucionais, como a saúde e a integridade pública das mulheres. Chega-se, assim, à seguinte conclusão: a criminalização do aborto não impede a sua realização. Proibir o aborto não acaba com ele. Assim como seria impossível proibir a existência de crianças de rua apenas baixando uma lei que isso determinasse. Por outro lado, o Brasil é recordista em abortos clandestinos (mais de um milhão por ano), além do elevado número de mortes e do comprometimento da saúde das mulheres em decorrência das péssimas condições em que são realizados entre nós.

Seria preciso que houvesse uma política do Estado de apoio, com médicos, psicólogos e assistentes sociais, voltada para o amparo da mulher carente a fim de que esta se sentisse mais segura e pudesse assim escolher pela realização ou não do aborto. Esta é uma decisão que cabe somente à própria mulher. Além disso, caso opte pela interrupção da gravidez deve ser assegurada a sua realização de forma digna e segura.

Descriminalizar a conduta penal a que está submetida à mulher e não discriminar o ser feminino, como vem ocorrendo na prática, é o caminho sensato, jurídica e sociologicamente correto. Buscar-se deslocar o tratamento jurídico tradicionalmente dado ao aborto do campo do Direito Penal, meramente repressivo, impondo à mulher o constrangimento de responder a uma ação penal e submetendo-a a pena criminal, para o campo da saúde, é dever do Estado (Constituição Federal, artigo 196).

O que aqui se advoga, assim, é a criação de condições de saúde e dignidade para os casos de abortamento inseguro provocado quando a mulher não se sinta em condições (sociais, econômicas, psicológicas ou médicas) de levar adiante uma gravidez indesejada. A opção e a decisão pela interrupção da gravidez indesejada devem, em última análise, recair sobre a própria mulher, seja no caso de estupro ou de risco de vida. Não cabe a ninguém ser contra ou a favor do aborto. O razoável é dizer que cabe à mulher e à medicina decidirem pela interrupção da gravidez indesejada.

Assim, a proposta é de descriminalização do aborto como legítima questão de Direitos Humanos segundo a qual devam ser respeitados os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade entre as mulheres de classes sociais diversas, buscando-se lembrar que a prática da interrupção da gravidez jamais deve ser imposta. O que aqui se defende, em última análise, é a opção para as mulheres que efetivamente não se sintam em condições de procriar, de forma salubre e responsável, o não exercício da maternidade e que isso não se constitua em crime, mas, ao contrário, que tal seja feito sob a égide e a correta orientação do Estado.

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