Polícia e cidadão

Algema para juiz revelou desigualdade dos iguais

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15 de fevereiro de 2008, 23h01

O Ministério Público Federal do Rio de Janeiro ofereceu nesta semana uma denúncia que, se tiver êxito e for aplicada para os casos que envolvem as pessoas do povo, pode exterminar batalhões inteiros das polícias do país. O MPF quer que os três policiais civis que algemaram e prenderam o juiz federal Roberto Dantas Schuman de Paula, no dia 4 de fevereiro, enquanto ele caminhava, respondam criminalmente por desacato e abuso de autoridade e sejam afastados de suas funções.

A denúncia se refere ao caso do juiz federal que, numa noite de carnaval, foi preso, algemado e conduzido a uma delegacia do Rio de Janeiro. Mesmo depois de se identificar, o juiz continuou sendo tratado com violência e prepotência.

Por se tratar de um juiz federal, o episódio desencadeou, além da denúncia do MP, uma reação em massa de repúdio ao comportamento dos três policiais.

Da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), passando pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) e pela OAB, até o corregedor nacional de Justiça, ministro Cesar Asfor Rocha, todos foram unânimes em repudiar a violência policial e o mau uso de algemas e da prisão. “A sociedade precisa reagir contra arbitrariedades desse tipo, inadmissíveis num Estado Democrático de Direito como é o Brasil”, afirmou Asfor Rocha. Como os demais, o ministro espera que os fatos sejam apurados com rigor e os responsáveis punidos.

Legislação

O ato da prisão é regulado pelo Código de Processo Penal, que não diferencia prisão de juiz ou pedreiro. Diz que a prisão em flagrante dispensa mandado judicial. Fora isso, um juiz tem de autorizar a reclusão do acusado. Não é permitido emprego de força, exceto quando há tentativa de fuga.

A Lei Orgânica da Magistratura Nacional, no artigo 33, inciso II, afirma que juiz não pode ser preso senão por ordem escrita do tribunal ou do órgão especial competente para o julgamento, salvo em caso de flagrante de crime inafiançável. Ou seja, a mesma regra do CPP.

O uso das algemas é disciplinado pelo Código de Processo Penal Militar. A lei prevê o uso da algema só para quem oferecer resistência à prisão ou significar algum risco a segurança pública. O CPPM só autoriza emprego de força quando entender indispensável.

A Lei 4.898/65 é a que regula o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal nos casos de abuso de autoridade. A legislação enumera 19 possibilidades de abuso de poder por parte dos militares. Entre elas está talvez as mais vistas por quem acompanha o trabalho dos policiais: ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder e submeter a pessoa presa a constrangimento não autorizado em lei.

No caso da denúncia oferecida contra os três policiais, o MPF diz que eles cometeram os crimes previstos no artigo 4º, alíneas “a” e “b”, da Lei 4.898/65 (não observar as formalidades para a prisão e submeter a pessoa a situação constrangedora). O crime estaria caracterizado porque os policiais não observaram a prerrogativa do juiz (também não observam a dos cidadãos comuns); trataram o preso de forma vexatória por ter lhe colocado algemas e incorreram em omissão, por não informar ao preso seus direitos constitucionais. Direitos comuns a um juiz e a um não-juiz.

Praticaram ainda os crimes previstos no artigo 322 do Código Penal (violência no exercício da função); artigo 331 do Código Penal (desacato), por humilhar o juiz federal quando disseram que seu chapéu o tornava indigno da magistratura federal e artigo 138 do CP (calúnia), por imputar falsamente ao juiz crime de dano ao patrimônio.

Foi pedido também o afastamento imediato dos policiais de suas funções externas enquanto durar o processo. O MPF do Rio afirmou por meio de sua assessoria de imprensa que não falará sobre o caso com jornalistas, para preservar o procurador que assinou a denúncia — o nome dele também não foi revelado.

Interesses

Há quem veja na pronta reação do MP uma oportunidade para conquista de território. “O que está em jogo é a eterna disputa de poder entre Polícia e Ministério Público”, disse um respeitado advogado criminalista à reportagem da revista Consultor Jurídico, que preferiu não se identificar.

A procuradora regional da República Janice Ascari, diz que só se pode falar de cumprimento do dever funcional. “O MPF do Rio instaurou um procedimento, ouviu pessoas, inclusive o juiz ofendido. Trata-se de cumprimento rápido do dever. Se fosse instaurado inquérito pela própria polícia, seguramente a denúncia não seria oferecida antes de um ano”, ressalta a procuradora.

Segundo Janice, o MPF do Rio tem recebido apoio de todas as instâncias do parquet, o que confirma a credibilidade e bom trabalho do órgão. As manifestações das associações de classe também servem para confirmar que os procuradores do Rio estão no caminho certo, acredita a procuradora. “Este é um caso gravíssimo e nos leva a pensar que se fizeram isso com um juiz federal, que se identificou como tal, o que não fazem com pessoas do povo”, diz a procuradora. As pessoas do povo estão fazendo uma pergunta semelhante: “Por que o MP não age com igual presteza quando a vítima não é um juiz federal mas uma pessoa do povo?”


Leia a denuncia

EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ FEDERAL DA ª VARA FEDERAL DA SEDE DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Ref.: Proc. nº 1.30.011.000537/2008-11

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelos Procuradores da República que se subscrevem, vem, com fundamento nas informações em anexo, oferecer

D E N Ú N C I A

contra

CRISTIANO CARVALHO VEIGA DA MOUTA, policial civil, matrícula 889.162-4, lotado na Coordenadoria de Operações e Recursos Especiais da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro;

MARCELO COSTA DE JESUS, policial civil, matrícula 888.1705-1, lotado na Coordenadoria de Operações e Recursos Especiais da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, e

BERNADILSON FERREIRA DE CASTRO, policial civil, matrícula 889.131-9, lotado na Coordenadoria de Operações e Recursos Especiais da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro;

pelos fatos que passa a expor:

No dia 4 de fevereiro de 2008, por volta das 22h30m, na Avenida República do Paraguai, Lapa, nesta cidade, os denunciados, agindo com vontade e consciência, em unidade de desígnios e pluralidade de condutas, prenderam o Juiz Federal Roberto Dantes Schuman de Paula sem que ele estivesse em flagrante delito de crime inafiançável e sem respaldo em mandado judicial.

Os denunciados trafegavam na viatura VTR 67/8966, uma GM/Blazer preta, com faróis apagados, por uma agulha de acesso entre vias, quando se depararam com o Juiz Federal, que cruzava a pé a pista de rolamento da agulha. Como o Juiz Federal tardou em perceber a aproximação da viatura, o denunciado MARCELO DE COSTA JESUS, que a conduzia, dirigiu-lhe brado impróprio de alerta: “ô, maluco!”, a que ele não respondeu.

Os denunciados passaram a seguir, em baixa velocidade, no encalço do Juiz Federal, havendo o denunciado CRISTIANO CARVALHO VEIGA DA MOUTA o chamado e advertido, de dentro da viatura, por suposta falta de atenção. A linguagem de ambas as intervenções foi desabrida; o chamado foi vertido como “ô, bêbado! ô, malandro!”, e a advertência como “ô, bêbado, ô, malandro, toma cuidado, porra!”. O Juiz Federal voltou-se para a viatura e, em tom de indignação, mas sem excessos lingüísticos, refutou as ofensas, indicando que a linguagem dos denunciados não era adequada e observando que, salvo se estivessem executando operação, eles não tinham autorização para trafegar com as lanternas apagadas, o que ocasionava risco de atropelamento.

Os denunciados desembarcaram, então, da viatura e – porque o Juiz Federal fizera menção de pegar seu telefone celular – sacaram pistolas e lhe ordenaram que tirasse a mão do bolso, ou atirariam. O denunciado CRISTIANO CARVALHO VEIGA DA MOUTA deu, em seguida, com respaldo e cobertura dos outros dois denunciados, voz de prisão ao Juiz Federal, sem informá-lo do crime que estaria praticando nem de seus direitos constitucionais, e o algemou, embora não houvesse encontrado resistência em executar a captura. O Juiz Federal indagou sobre o crime em que teria incorrido, havendo o denunciado CRISTIANO CARVALHO VEIGA DA MOUTA respondido que ele estava preso por desacato. O Juiz Federal perguntou o que em sua conduta haviam entendido como desacato, e o denunciado CRISTIANO CARVALHO VEIGA DA MOUTA respondeu com a insinuação de que ele não cometera crime e poderia ser conduzido a outro lugar que não uma repartição policial: “ô, malandro, se a gente te levar até a DP, até lá a gente inventa”.

O Juiz Federal revelou, diante disso, com propósito de defesa de sua integridade pessoal e suas prerrogativas, sua condição de autoridade judiciária, indicando que seu cartão de identidade funcional se encontrava dentro de sua carteira de dinheiro e solicitando aos denunciados que a examinassem. O denunciado CRISTIANO CARVALHO VIEGA DA MOUTA pegou a carteira de dinheiro do Juiz Federal e, sem abri-la, guardou-a consigo, escarnecendo da informação: “juiz federal é o caralho!”; estrangulou, então, com violência aviltante e arbitrária, a algema aplicada ao pulso esquerdo da autoridade judiciária. Os outros dois denunciados não apenas deram cobertura logística a essas condutas, como delas riam copiosamente, instigando sua prática.

Esgotada a interlocução, os denunciados BERNADILSON FERREIRA DE CASTRO e MARCELO COSTA DE JESUS usaram de violência arbitrária para pôr o Juiz Federal no habitáculo de custódia da viatura, havendo o primeiro aberto a porta e o segundo o empurrado de modo repentino e truculento para dentro, sem antes dar-lhe ordem de que o fizesse por sua própria iniciativa. O Juiz Federal caiu, em conseqüência, deitado de lado no assoalho do habitáculo. Observa-se que a Lei nº 4.898/65 não revogou o art. 322 do Código Penal, conforme a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (HC 63.62/GO; Segunda Turma; Min. Francisco Rezek; DJ 25-04-1986; RE 73.914/SP; Primeira Turma; Min. Oswaldo Trigueiro; DJ 11-08-1972).


Com a viatura já em movimento, o Juiz Federal alertou os denunciados de que estavam cometendo crime. Em resposta, o denunciado CRISTIANO CARVALHO VEIGA DA MOUTA, tratando-o pela primeira vez como autoridade judiciária, proferiu as seguintes palavras: “se tu for mesmo juiz, a gente vai te foder, a gente vai chamar a imprensa, porque juiz federal não pode andar por aí com esse chapéu de palha, igual a um malandro!”. Os outros dois denunciados, que riam à guisa de concordância com seu colega, não impugnaram o uso do plural. Ao se arrogarem a condição de polícia de costumes das autoridades judiciárias federais e declararem, em linguagem ofensiva e desabrida, que o Juiz Federal estaria trajado de modo incondizente com a judicatura federal, os denunciados o humilharam – e, pois, desacataram – em razão de sua função pública, com finalidade específica de fazê-lo.

Os denunciados acabaram por conduzir o Juiz Federal à 5ª Delegacia de Polícia Civil, onde ele, ainda algemado, no intuito de identificar-se à autoridade policial de plantão, caminhou até uma pequena passagem para a área reservada da repartição, levantou a corrente que guardava, cruzou a passagem e repôs a corrente em seu lugar. Diante da iniciativa do Juiz Federal, o denunciado CRISTIANO CARVALHO VEIGA DA MOUTA passou, em voz alta, diante de ao menos três ou quatro pessoas presentes no saguão da delegacia, a imputar-lhe falsamente, com dolo de ofendê-lo, crime de dano ao patrimônio público e/ou exercício arbitrário das próprias razões, que classificou oralmente como abuso de autoridade. Ele irrogou a imputação nos seguintes termos: “olha lá, olha lá, o juiz tá quebrando a corrente e tá invadindo a delegacia, o juiz tá cometendo abuso de autoridade”.

Ainda na Delegacia de Polícia, ao perceber a determinação do Juiz Federal de não deixar impunes os crimes de que fora sujeito passivo direto ou indireto, o denunciado MARCELO COSTA DE JESUS dele se aproximou, no interior da delegacia, e, tratando-o por “excelência”, pediu desculpas. Perguntou, então, à guisa de súplica, se tudo não poderia “ficar por isso mesmo”, sugerindo que o Juiz Federal prestasse declaração falsa à autoridade policial de plantão, a fim de alterar a verdade sobre fatos penalmente relevante, ou determinasse a omissão de lavratura de registro ou termo de ocorrência, a fim de satisfazer interesse pessoal. O Juiz Federal repudiou as desculpas e a súplica.

Ante o ocorrido, foi lavrado na 5ª Delegacia de Polícia Civil desta Cidade termo circunstanciado de ocorrência nº 005-01175/2008, em que o Juiz Federal figura como autor do fato tipificado no art. 331 do Código Penal.

A descrição que precede não aprofunda aspectos factuais da conduta dos denunciados que denotam, ainda que sem relevância penal típica, acentuado desvalor moral, tais como o ar permanente de chacota e intimidação que os três ostentaram todo o tempo e as iniciativas do denunciado CRISTIANO CARVALHO VEIGA DA MOUTA de chamar a imprensa a pretexto de noticiar prisão de juiz supostamente embriagado e de se referir à mãe do Juiz Federal, a qual se dirigira à delegacia, em voz alta e na presença dela, como a “mãe do malandrinho”.

Os denunciados praticaram os crimes previstos no art. 4º, “a” e “b”, da Lei nº 4.898/65 pela prisão em suposto flagrante do Juiz Federal, que foi ilegal nos seguintes aspectos:

(i) omissão, no ato da captura, de indicação espontânea do crime motivador, de identificação dos responsáveis e de informação ao preso sobre seus direitos;

(ii) negativa sumária de fé, sem esforço de verificação, à condição funcional argüida pelo preso, que o eximiria, na hipótese, da prisão em flagrante;

(iii) tratamento vexatório a que foi submetido o preso na captura e na condução à repartição policial, incluído o uso excessivo de algemas;

(iv) uma vez admitida a condição funcional do preso, o que se deu ainda na viatura, prosseguimento na privação de sua liberdade, em ofensa a prerrogativa legal da magistratura federal.

Praticaram, ainda, em concurso os crimes previstos no art. 322 do Código Penal, pelo estrangulamento da algema no pulso esquerdo do Juiz Federal e pelo empurrão que lhe aplicaram para dentro do habitáculo de custódia da viatura; e no art. 331 do Código Penal, por humilharem o Juiz Federal em sua dignidade funcional com a declaração de que seu traje o tornava indigno da magistratura federal.

O denunciado CRISTIANO CARVALHO VEIGADA MOUTA praticou, ademais, o crime previsto no art. 138 c/c o art. 141, II, do Código Penal, por imputar falsamente ao Juiz Federal, diante de múltiplas pessoas, crime de dano ao patrimônio público e/ou exercício arbitrário das próprias razões, que classificou oralmente como abuso de autoridade, a propósito de ele haver adentrado pacificamente e sem oposição a área reservada da 5ª Delegacia de Polícia Civil.

Os crimes foram praticados em concurso material, tendo em vista que a seqüência delituosa não foi produto das circunstâncias, mas de opção independente dos denunciados a cada desdobramento.

Ante o exposto, o Ministério Público Federal requer a citação dos denunciados, para que respondam aos termos da ação penal ora proposta; e pleiteia, conforme o resultado da instrução criminal, o acolhimento da pretensão punitiva ora deduzida, com a condenação dos denunciados às penas recomendadas por sua culpabilidade.

Rio de Janeiro, 11 de fevereiro de 2008.

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