A morosidade continua

Decisões são delegadas da primeira instância para o STF

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

12 de fevereiro de 2008, 11h00

Acúmulo de processos

O acúmulo de processos no Poder Judiciário é fato incontroverso, independe de prova e é do conhecimento geral. Portanto, dispensa comentários. Todavia, não é tão público e notório que o Poder Judiciário tornou-se sobrecarregado após a Constituição da República de 1988 e que o excesso de processos tem efeitos que vão além do simples atraso nos julgamentos. Se isto representa um problema com reflexos no Estado e na sociedade, é preciso que ele seja conhecido e debatido.

No passado, até os anos setenta, o Judiciário julgava conflitos individuais. As instâncias, excluída a Justiça Militar e a Eleitoral, resumiam-se em Juízos e Tribunais de Justiça nos estados, poucos juízes federais e o Tribunal Federal de Recursos, com sede em Brasília, Juntas de Conciliação e Julgamento e Tribunais Regionais do Trabalho e Tribunal Superior do Trabalho, na área trabalhista. No ápice, o Supremo Tribunal Federal, que recebia um número restrito de recursos, permitindo-se, inclusive, aceitá-los ou não em razão da relevância (CR de 1967, art. 119, § 3º, “c” e Reg. Interno).

Nos Tribunais de Justiça, a rotina dos desembargadores consistia em receber um determinado número de processos por semana, elaborar seus votos em casa e levá-los a julgamento. Os juízes de Direito decidiam de forma mais simples do que atualmente, muitas vezes à mão na própria petição da parte, outras valendo-se de suas máquinas de escrever. Os cartórios auxiliavam colocando despachos de rotina, como “Especifiquem provas, em 5 dias”.

No início dos anos oitenta surgiram ações coletivas, fruto de um mundo em mudança. Apesar de o Código de Processo Civil dar solução para conflitos individuais e não coletivos, com a Lei 7.437, de 1985, que trata das Ações Civis Públicas, tentou-se dar um passo à frente. Seu artigo 16 estabeleceu que a sentença fará coisa julgada erga omnes, permitindo a cada ofendido individualmente executá-la sem ter que intentar nova ação de conhecimento. O mesmo foi feito no artigo 4º da Lei 7.853, de 1989, que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência.

Mas foi a Constituição de 1988 que alterou sobremaneira a situação, dando nova dimensão ao Poder Judiciário que, além de ter se tornado bem maior (p.ex., com a criação do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais), assumiu uma competência mais ampla, inclusive com intervenção nas políticas públicas do Poder Executivo. Tudo isto, aliado à facilidade de levar os recursos até às instâncias superiores, inclusive o Supremo Tribunal Federal, fez com que a Justiça se tornasse, pouco a pouco, abarrotada de processos e exposta a críticas.

A partir dos anos noventa, várias tentativas de controlar a explosão de processos e a conseqüente morosidade foram feitas. Entre outras, a criação de varas, aumento de tribunais, fusão de Tribunais de Justiça e de Alçada, criação de Juizados Especiais, inclusive Federais, convocações de juízes para atuar em segunda instância, mutirões, reformas do Código de Processo Civil, reforma do Poder Judiciário pela Emenda Constitucional 45/2004. Sem sucesso. A morosidade continua.

Delegação de jurisdição

O acúmulo de processos teve um resultado pouco conhecido e, menos ainda, comentado, qual seja, a delegação da função jurisdicional. Pouco a pouco, imperceptivelmente, o que se resumia a simples despachos de expediente, sem conteúdo decisório, passou a adquirir espaços mais próprios e específicos da atividade jurisdicional. Despacho saneador, liminares ou antecipação de tutela, projeto mesmo de sentença (nos juízos de primeiro grau) ou de voto (nos tribunais). Tudo com o objetivo de agilizar os julgamentos. Os hábitos foram mudando.

Os juízes de primeiro grau, principalmente na Justiça Federal, passaram a contar com a assessoria de servidores mais destacados. Menos na Justiça Estadual onde, regra geral, a infra-estrutura é mais carente. Os tribunais de segundo grau tiveram que optar entre distribuir aos gabinetes dos desembargadores os milhares de processos recebidos ou de retê-los na distribuição.

Para evitar a segunda hipótese, a Emenda Constitucional 45/2004 introduziu o inciso XV no artigo 93 da Carta Política, determinando distribuição imediata dos processos em todos os graus de jurisdição. Milhares de processos passaram do andar térreo (distribuição) para outro do prédio (gabinete do desembargador), sem solução ao problema real.

Nos Tribunais Superiores, o número de assessores aumentou. Multiplicaram-se os julgamentos com dados estatísticos impressionantes (vide: www.cnj.gov.br, Publicações, Justiça em números). E mesmo assim o atraso persiste. Recursos aguardam, por anos, julgamento. As questões de urgência são suficientes para tomar o tempo dos ministros.

A prática foi adotada pelo Ministério Público, através da criação de assessorias, principalmente na área de atuação junto aos tribunais. Com certeza é ou será adotada pelas demais áreas de atuação dos órgãos da advocacia pública ou da defensoria. Enormes estruturas vão sendo criadas. Estagiários vão suprindo lacunas onde elas não existem ou se revelam insuficientes. E assim vai o trabalho sendo “terceirizado”, na busca de uma agilização que nunca chega.

Os resultados práticos

Os resultados desse sistema é que as decisões são cada vez mais delegadas, da primeira instância ao Supremo Tribunal Federal. E ao fazer esta afirmação não se está fazendo crítica aos magistrados, mas sim ao sistema. É que os juízes, pressionados por uma carga de trabalho cada vez maior, vêem-se obrigados a produzir. Para isso são cobrados pelas partes nos processos, pelo Ministério Público, pelas Corregedorias e pelo Conselho Nacional de Justiça. E o serão, ainda, pelas Ouvidorias, previstas na Emenda 45/2004, conforme redação dada no artigo 103B, parágrtafo 7º, da Carta Magna. Todas estas formas de controle não solucionaram o problema. Quanto a adequar-se o número de magistrados ao da demanda judicial e respectiva população, também inovação constitucional do artigo 93, XIII, ainda não se cuidou.

Na atual situação, ao magistrado abrem-se quatro opções: a) não delega, trabalha sozinho e com enorme sacrifício pessoal, consegue manter o rendimento dentro do razoável; b) não delega, trabalha sozinho e, porque não se sacrifica pessoalmente ou não tem a virtude da agilidade, acumula grande quantidade de processos e sujeita-se a permanentes representações na Corregedoria ou no CNJ; c) delega, lê todos os projetos de decisões, sentenças ou votos feitos pelo pessoal de apoio, e consegue manter um nível razoável de rendimento; d) delega e, sem tempo ou disposição de ler tudo o que lhe é preparado, encaminha o julgamento, sem que seja, de fato, o autor da decisão ou voto.

Fácil é ver que nenhuma destas situações representa o ideal de Justiça. A primeira (a) e a terceira (c) aproximam-se do ideal, adequado à situação do sistema judicial brasileiro. A segunda (b) resulta prejuízo às partes (morosidade) e ao magistrado, premido por constantes representações. A última delas (d) é reprovável, pois importa atribuir a terceiros, que podem ir de um bem capacitado assessor até um estagiário, a tarefa de julgar. Nesta hipótese, a decisão judicial costuma ser genérica, com muita jurisprudência copiada da internet e sem menção explícita às provas dos autos.

O sistema tornou-se despedido de razoabilidade. Tornou-se difícil, até, ter uma avaliação adequada dos magistrados. Alguém que, com sacrifício pessoal, examina um a um os processos, poderá ser considerado lento. E outro, que examina ligeiramente um projeto de decisão e assina, poderá estar bem situado nas estatísticas. Disto tudo, decorrerão situações que vão desde o conceito do magistrado junto à comunidade jurídica até a sua indicação, ou não, para uma promoção por merecimento.

Mas não é só isso. O sistema judicial traz outros problemas. O primeiro deles é que o juiz se distancia cada vez mais das pessoas e das provas. Passa a decidir rapidamente, firme no uso da informática, preocupado com as estatísticas, mas sem ater-se ao drama humano, à pessoa que se acha atrás das folhas dos autos. Este fato, quase nunca discutido, foi lembrado pelo juiz e professor Romolo Russo Júnior, ao observar que “A realização concreta da Justiça, ordinária e necessariamente, tem um campo imutável: sempre passa pelo homem togado, imparcial e em condições de dar a sentença justa. Por isso, o ato de julgar o semelhante é sublime demais para ser reduzido à mera conformação (a qual é imprescindível e inevitável) que a era digital está a exigir. É necessário que não se fique nela submerso (Justiça a qualquer preço: não. Sítio: www.ibrajus.org.br, Revista On Line, em 4.9.2007).

Além disto, a própria segurança das partes quanto a um julgador insuspeito e sem impedimento, fica parcialmente prejudicada. Se a decisão é preparada por uma equipe de apoio, que pode envolver até mais de dez pessoas, como saber se aquele que prepara o projeto de voto é amigo ou inimigo de uma das partes?

Ainda. Se um ministro ou desembargador tem em seu gabinete 1.000, 2.000 ou 10.000 processos para relatar, ainda terá tempo de examinar todos aqueles em que figura como revisor? Reterá os autos, prejudicando a celeridade do julgamento e criando um problema ao relator? Examinará perfunctoriamente, sem analisar as provas? Delegará a revisão à assessoria? Em determinadas Câmaras ou Turmas, cuja matéria costumeiramente depende do exame da prova, ter 5.000 processos para relatar poderá significar ter 10.000 para julgar, uma vez que o magistrado ainda será revisor.

Em conclusão

O estado do sistema judicial adotado em nosso país, abrindo o Judiciário a toda e qualquer espécie de discussão (é vedado restringir o acesso, CR, art. 5º, inc. XXXV), excluindo a figura conciliadora do juiz de Paz (hoje apenas realizando casamentos), a amplitude dada à ampla defesa e ao próprio direito de recorrer (p. ex., o Judiciário, ao criar o Agravo Regimental), a facilidade de levar os processos aos Tribunais Superiores, tudo isso conduziu o sistema ao colapso. E a busca permanente de prestar a jurisdição fez com que a delegação deixasse de ser apenas para atos de expediente, avançando em atos típicos de jurisdição. O permanente crescimento dessa prática recomenda análise e discussão dos operadores do Direito, visto que ela afeta diretamente a distribuição da Justiça e as partes.

Partindo-se do pressuposto de que há um limite para delegar atividades judiciais, é possível concluir que merecem ser tomadas, ou pelos discutidas, as seguintes medidas: a) criação de mais Súmulas Vinculantes pelo STF, (até o presente momento, apenas três foram editadas), principalmente no sentido de vincular a administração; b) estudo da criação do contencioso administrativo, pois não tem razoabilidade a existência de enormes estruturas administrativas e judiciais para decidir duas vezes o mesmo problema (p.ex., INSS e Juizados Especiais Federais); c) estudos sobre o número necessário de magistrados em cada ramo do Judiciário, atentando-se para as peculiaridades locais (vide pesquisa em www.ibrajus.org.br); d) criação de núcleos de conciliação comunitários, com a presença de voluntários e a supervisão dos Tribunais de Justiça; e) limitação de recursos aos Tribunais de Apelação, reservados os recursos aos Tribunais Superiores para hipóteses de interesse nacional.

Mas, será que queremos mesmo solucionar o problema?

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