Contratação direta

Governo deveria licitar administradora de cartões corporativos

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11 de fevereiro de 2008, 13h52

A empresa administradora dos cartões corporativos do governo não poderia ser contratada sem licitação. Não só porque assim exige a legislação, mas também porque a falta de concorrência para contratar a administradora é a base dos problemas constatados no uso dos cartões.

A opinião é do advogado e professor de Direito Administrativo da UniDF Jonas Lima, autor de diversos livros sobre licitações no setor público. “O sistema brasileiro de emissão e administração dos cartões foi instituído e contratado sem licitação, o que não poderia se enquadrar sequer nas exceções da lei”, afirma.

Em entrevista à revista Consultor Jurídico, o especialista esclarece como deveria funcionar o sistema de cartões corporativos, seja de pagamento, seja de crédito.

Leia a entrevista

ConJur — Existe relação entre a falta de licitação da administração dos cartões corporativos e a permissividade que foi constatada no seu uso?

Jonas Lima — Sim. Se tivessem sido feitas licitações para a administração dos cartões para os três contratos firmados desde 1998 e prorrogados várias vezes, as regras da disputa e do futuro contrato teriam sido amplamente divulgadas. Nesse cenário, que seria o ideal, os editais licitatórios poderiam ter sidos impugnados previamente pelos licitantes e por qualquer cidadão. Poderiam, também, ter sido fiscalizados previamente pelo Tribunal de Contas da União. Finalmente as regras de controle rígido do uso e fiscalização desses cartões seriam de conhecimento e debate muito mais amplo. Por essas razões, além de ser obrigação legal licitar a administração dos cartões, a prática demonstrou que a ausência de licitação foi prejudicial para a própria Administração Pública, que agora conta os seus prejuízos.

ConJur — De onde veio a idéia de implantar os cartões corporativos governamentais no Brasil?

Jonas Lima — A inspiração para a utilização desses cartões surgiu de exemplos internacionais do final dos anos 80 e começo da década de 1990. Pode-se citar o caso dos Estados Unidos, onde se instituiu limite de uso para compras de até US$ 2,5 mil, e da Austrália, onde o limite foi estabelecido em AU$ 5 mil.

ConJur — Como foi a criação legal do sistema de cartões corporativos?

Jonas Lima — Os cartões corporativos começaram a ser usados para facilitar a compra de passagens aéreas. Para revogar as regras do Decreto 79.391/77, que disciplinava a requisição, a compra e a utilização de passagens aéreas na Administração Federal, foi editado o Decreto 2.809/98, que passou a regular a matéria, com a inovação em seus artigos 5º e 6º da figura do cartão de crédito, observe-se, para passagens aéreas. Esse é o verdadeiro nascedouro do sistema de cartões, que foi objeto do Contrato Administrativo 28/98 com a BB Administradora de Cartões de Crédito e cujas instruções complementares vieram com a Portaria Interministerial MARE 3.534, de 1998.

ConJur — E como o uso dos cartões foi estendido às outras áreas e demandas da Administração Federal?

Jonas Lima — Isso ocorreu quando o decreto de 1998 foi revogado pelo Decreto 3.892, de 2001, que passou a dispor sobre a aquisição de bilhetes de passagem aérea, mas também sobre compras de materiais e serviços com o cartão de crédito corporativo. Com isso, foi firmado o Contrato 060/2001, com a BB Administradora de Cartões de Crédito, e editadas instruções complementares com a Portaria 265/2001 do Ministério do Planejamento e com a Portaria 95/ 2002 do Ministério da Fazenda. Essa última atinente à movimentação de suprimento de fundos por meio do cartão.

ConJur — Por que houve a mudança da terminologia Cartão de Crédito Corporativo para Cartão de Pagamento do Governo Federal?

Jonas Lima — Foi alertado que o artigo 65 da Lei 4.320, de 1964, que institui normas de Direito Financeiro, estabelece que somente é admissível o adiantamento de valores a servidor público em casos excepcionais. O artigo 68 da mesma lei determina sempre o empenho prévio em dotação orçamentária própria. Isso demonstrava a incompatibilidade dos cartões de crédito. Por isso, foi editado o Decreto 5.355, de 2005, que revogou todas aquelas normas anteriores e instituiu o chamado cartão de pagamento, registrando pela primeira vez a figura do saque a ser “justificado na correspondente prestação de contas”. A idéia, naquele momento, diante de problemas verificados pelo Tribunal de Contas da União, era que as medidas dariam mais transparência nos gastos com os cartões.

ConJur — Mas os problemas com os cartões continuaram?

Jonas Lima — Sim, porque na prática o cenário não mudou. Os servidores continuaram viajando dentro e fora do Brasil e realizando saques (apesar de informado que seriam vinculados à Conta Única do Tesouro) e despesas em lojas e outros estabelecimentos credenciados pelo sistema de crédito. Ou seja, para somente depois chegarem faturas a serem pagas pelos respectivos órgãos públicos e, aliás, se atrasadas, com os respectivos encargos. Por essa razão, o cartão continuou com as feições de crédito e não de pagamento, porque a operação continuou com características de verdadeiro adiantamento.

ConJur — As medidas recentes do governo resolvem os problemas?

Jonas Lima — Não, porque o Decreto 6.370, de 2008, que limita os saques a situações excepcionais e determina o encerramento de contas de suprimentos de fundos, cujas despesas devem ser realizadas por meio do cartão, não tratou de um problema originário: a administração do próprio sistema mediante contrato que decorra de licitação.

ConJur — E porque o contrato de emissão e administração desses cartões deveria passar por licitação?

Jonas Lima — Um contrato para a emissão e administração de cartões, sejam de crédito ou de débito (pagamento), é um contrato administrativo como qualquer outro, razão pela qual não poderia ser firmado sem licitação. Especialmente porque o artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal prevê a licitação como regra, ressalvadas as exceções da lei. O contrato mais recente foi firmado com uso da figura da inexigibilidade de licitação, prevista no inciso II do artigo 25 da Lei 8.666, de 1993. Mas o texto da lei só prevê a dispensa de licitação para o caso de ser inviável a competição e para contratações de serviços técnicos “de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização”. Ora, é notório que existem no mercado brasileiro dezenas de administradoras de cartões de crédito e de débito, que operam muitas vezes com as mesmas bandeiras. Então porque não fazer licitação para contratar a administração do sistema se existe viabilidade de competição? Aliás, porque não comparar, por meio de licitação, qual empresa cobraria encargos menores sobre as faturas em atraso ou ofereceria outras compensações? Esse procedimento almejaria a finalidade da licitação, de selecionar a proposta mais vantajosa (artigo 3º da Lei 8.666/93) e resguardar o princípio da economicidade, previsto no artigo 70 da Constituição Federal, do qual o Tribunal de Contas é o guardião.

ConJur — Que exemplos existem de contratos de emissão e administração de cartões corporativos governamentais?

Jonas Lima — Pode-se lembrar o caso da licitação da Nossa Caixa, do estado de São Paulo, que licitou a administração dos seus cartões de crédito e múltiplos, incluindo os serviços de emissão e entrega dos cartões, processamento de transações, envio de faturas e outros correlatos. Também o caso da ECT, cuja licitação foi realizada para a contratação de instituição para administrar a operação do Banco Postal, incluindo cartões de crédito nacionais e internacionais. E, ainda, os casos das licitações de cartão-combustível da Assembléia Legislativa de São Paulo e da Câmara Legislativa do Distrito Federal. Enfim, existem no Brasil várias licitações tanto para a contratação da administração de cartões de crédito como de cartões de pagamentos.

ConJur — Mas o que dizer da necessidade de vinculação, especialmente quanto a saques, do cartão do Governo Federal, à Conta Única do Tesouro Nacional e ao Siafi?

Jonas Lima — Licitar é uma obrigação e isso não pode ser desconsiderado. Como os sistemas vão interagir com a empresa vencedora de um certame licitatório, que não administre ou tenha acesso à Conta Única do Tesouro, ou como as operações e os dados serão gerenciados pelo Siafi, essas duas são questões de customização, ou seja, de adaptação, que já deveriam estar sendo objeto de reflexão e discussões técnicas. Observe-se, por exemplo, que hoje em dia se licita até folha de pagamento de servidores públicos sem que isso seja considerado ilegal.

ConJur — E quanto à proibição de adiantamentos prevista na Lei 4.320?

Jonas Lima — Quanto aos artigos 65 e 68 da Lei 4.320, de 1964, é preciso reconhecer que já é hora de incluir a matéria dos cartões corporativos em texto de lei e não apenas em decretos, portarias e instruções normativas. A legislação brasileira não pode ficar tão defasada em relação à dos outros países. Isso, aliás, merecia medida provisória ou regime de urgência em projeto de lei. De todo modo, a atual restrição dos adiantamentos somente prejudicaria o cartão de crédito, não o de pagamento.

ConJur — No que diz respeito à proibição de cobrança de taxa de administração em contratos governamentais, como isso seria resolvido para viabilizar a operação dos cartões em decorrência de contrato licitado?

Jonas Lima — A proibição da cobrança de taxa de administração em contratos administrativos não é absoluta, tanto que existem vários em vigor atualmente, além do que, não seria esse o único fator a decidir uma licitação, ou seja, podem ser estabelecidos outros critérios de julgamento da disputa. Efetivamente, nesses aspectos, a questão é apenas de uma boa preparação do edital.

ConJur — Como ficariam os estados, os municípios e outros entes em relação aos cartões corporativos?

Jonas Lima — Hoje já existem diversos casos de carteiras de cartões corporativos governamentais sendo administradas em todo o Brasil, mas o certo é que cada ente público deve criar ou adaptar suas normas legais e proceder às suas próprias licitações. Então, não é caso de pensar em aderir ao Cartão de Pagamento do Governo Federal, até porque não existe respaldo legal para tanto e essa adesão seria considerada uma burla ao dever de contratar mediante licitação.

ConJur — Mas os cartões corporativos governamentais podem representar um estágio de evolução da Administração Pública?

Jonas Lima — Sim, não apenas por questão de respeito ao princípio da eficiência nas atividades diárias da Administração, mas, especialmente, em busca de controle e de fiscalização, sendo certo que, para isso, as normas legais precisam evoluir e as licitações serem aperfeiçoadas.

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