Nova ordem mundial

Entrevista: Oscar Vilhena Vieira, professor da Direito GV

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27 de dezembro de 2008, 23h00

Oscar Vilhena - por SpaccaSpacca" data-GUID="oscar_vilhena.jpeg">O advogado é a peça-chave para o desenvolvimento do país. Programas sociais do governo federal, contratos de fusão entre empresas, regulação do mercado de ações, em todos os setores da economia e do cotidiano, o olhar criterioso e detalhista de um advogado tem peso na hora de definir os rumos do país. Os profissionais do Direito que entenderem também de economia e administração estarão na vanguarda.

A relação entre o Direito e o desenvolvimento econômico foi tema de estudos que culminaram na criação de um programa de Mestrado na escola Direito GV, sob coordenação do advogado e professor Oscar Vilhena Vieira. Em entrevista à Consultor Jurídico, o professor discute a posição da advocacia nos grandes debates, a importância de instituições sólidas para um país e do Judiciário no Brasil de hoje.

O desenvolvimento que defende, diferente daquele que é sinônimo pura e simplesmente de crescimento econômico, é aquele que está ligado ao nível de educação da população, do índice de mortalidade infantil, do acesso ao saneamento básico e do respeito aos cidadãos. Ou seja, desenvolvimento não significa apenas aumento na produção de riqueza, mas principalmente melhoria na qualidade de vida. O ideólogo desse modo de ver o progresso da humanidade, o indiano Amartya Sen, ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1998, é o guru de Vilhena.

Sen é o criador do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), que mudou o conceito de desenvolvimento no mundo, a partir da década de 90. O novo paradigma foi endossado por instituições internacionais como FMI, Banco Mundial e ONU e é usado como critério para financiar projetos sociais e medir o crescimento dos países.

Para Vilhena, essa é uma virada importante, porque é a partir dela que começam a pensar o desenvolvimento como sinônimo de ampliação da autonomia das pessoas. É nesse contexto, diz, que as instituições devem ganhar força para manter a ordem e a liberdade de cada um. O Judiciário e os advogados ganham papel de destaque nessa nova ordem mundial, antes mesmo da crise financeira mundial que veio a colocar em cheque o antigo modelo de desenvolvimento.

Se antes o debate era técnico e girava em torno da quantidade de quilowatts necessários para a criação de um parque industrial, hoje, a questão é saber como financiar o parque industrial, segundo Vilhena. Se a bolsa de valores é uma fonte confiável de captação de recursos, exemplifica, são os advogados que vão analisar. Em caso de conflitos, a Justiça é que deve resolver.

Um fator que ainda deixa o Brasil distante dos países desenvolvidos, segundo o professor, é justamente o Judiciário. “O acesso a direitos fundamentais, por meio do Judiciário, é para quem tem dinheiro para movimentá-lo”, afirmou. Isto é, não tem sido o Judiciário capaz de assegurar o direito dos pobres. “É muito grande a desproporção entre os recursos da advocacia privada e da assistência judiciária, prestada pela OAB”, diz, indicando um dos fatores da desigualdade.

Oscar Vilhena acha interessante o poder nas mãos do Supremo Tribunal Federal, como forma de uniformizar as decisões e acabar com os casos de vizinhos que entram com processos iguais, sobre o mesmo problema, sob os mesmos argumentos, mas que obtém respostas contrárias. Mas vê com ressalvas a criação da Súmula Vinculante. Para ele, é preciso cautela.

O professor formou-se pela PUC-SP e desde então não saiu da vida acadêmica. Em 2007, concluiu o pós-doutorado na Saint Antony’s College, unidade da tradicional Universidade de Oxford, da Inglaterra, especializada em Relações Internacionais, política, economia e história. O doutorado foi na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, USP, em Ciência Política.

Os jornalistas Alessandro Cristo e Maurício Cardoso também participaram da entrevista.

Leia a entrevista

ConJur — Qual o papel do advogado para o desenvolvimento da sociedade atual?

Oscar Vilhena — Hoje, as instituições são fundamentais para os processos de desenvolvimento. Todos pensam assim. Tanto os que enxergam o desenvolvimento apenas enquanto crescimento econômico, quanto os mais progressistas, que entendem o desenvolvimento como ampliação de autonomia. Nesse contexto, o papel do advogado é mais agressivo no debate sobre os destinos do país. Ele perdeu o papel de protagonista da tecnoburocracia. Somos nós que constituímos os grandes contratos de fusão entre empresas, nós entendemos de regulação de mercado. O Programa Universidade para Todos (Pro Uni) é uma engenharia jurídica, feita pelo ministro Fernando Haddad, que é advogado, e pela Paula Dallari, secretária de Educação Superior e especialista em política pública. É um projeto que beneficia 480 mil pessoas pobres e vai mudar em grande medida o perfil do universitário brasileiro.


ConJur — O advogado está em posição de destaque nos grandes debates?

Oscar Vilhena — Com pouca modéstia, os advogados retomam no cenário do desenvolvimento um papel muito mais importante que há 40 anos, quando o debate era técnico: quantos quilowatts são necessários para montar um parque industrial?. Hoje, a questão é saber como financiar o parque industrial. A bolsa de valores é confiável para captar recursos? Os critérios de governança corporativa e de transparência para empresas poderem entrar na Bolsa de Valores de São Paulo, por exemplo, foram todos criados por advogados. O mercado de ações no país foi reformulado por eles. Com isso, o Direito Comercial brasileiro foi redesenhado. Nós sabemos o que cria um detalhe ou cria uma disfunção. Hoje, o advogado tem de entender de economia e precisa ser interlocutor do administrador.

ConJur — Como um consultor?

Oscar Vilhena —Sim. Ele não pode ser chamado no último minuto só para redigir o contrato. Um advogado especialista em Direito Empresarial, por exemplo, tem que olhar o balanço da empresa e enxergar os possíveis problemas.

ConJur — Por que as instituições são fundamentais para o desenvolvimento?

Oscar Vilhena —As instituições são importantes porque criam confiança. Não temos medo de comprar roupas, porque o Código de Defesa do Consumidor nos deu a segurança de que se a peça não servir ou vier com defeito, poderemos trocar. Você sabe qual é o risco que está correndo. Para que haja investimentos sustentáveis no país, é preciso que as instituições funcionem. Estoura a crise nos Estados Unidos, os investidores tiram dinheiro de países como o Brasil para comprar papéis do tesouro americano. Qual é a lógica disso? Ele sabe que a democracia nos Estados Unidos não sofre ameaça. Se o [Barack] Obama foi eleito, ele vai tomar posse, independentemente do tamanho da crise.

ConJur — O Judiciário tem o papel de garantir que as regras sejam cumpridas.

Oscar Vilhena —Em todas as sociedades modernas, ele tem o importante papel de fazer com que as expectativas criadas pela lei se realizem. Nos demos conta de que há uma grande diferença entre a letra da lei e, depois, o modo como ela repercute na vida real. Isso chamou a atenção para o Judiciário. Se eu desrespeito a lei e não sou punido, percebo que desrespeitá-la pode ser interessante. Isso cria uma sociedade de oportunismos. Ou seja, a minha escolha entre a conduta “a”, “b” ou “c”, não leva em consideração qual é o direito, mas em qual delas vou ganhar mais e onde correrei menos riscos.

ConJur — O Supremo Tribunal Federal contribuiu para colocar o Judiciário em um papel que ele nunca teve na República?

Oscar Vilhena —O Judiciário continua burocratizado, com padrões pré-modernos de gerenciamento e o sistema recursal privilegiando o devedor. Quem cometeu o erro costuma ser o beneficiário do sistema. A teoria mundial de Justiça é o duplo grau de jurisdição. Aqui temos quatro graus, com todas as intercorrências que o processo permite. O Judiciário tardou a se dar conta de que estava desatualizado e hoje vemos movimentos no caminho da modernização. Já o Supremo, durante a primeira república, teve momentos de grande relevância. Com Getúlio Vargas quase sucumbe, mas em 1946 volta a ter um papel importante. A instituição resiste até que são aposentados os ministros resistentes e nomeados outros que se alinham ao governo.

ConJur — A partir de 88, o Supremo passa por uma mudança radical?

Oscar Vilhena —Sim. Quando a Constituição é pequena, ele guarda poucas coisas. Quando a Constituição é enorme, o seu papel acompanha a proporção dos direitos e garantias assegurados. O Supremo virou o rei da cocada. Hoje não há movimento do sistema político, por exemplo, que não tenha conteúdo constitucional. A Constituição é ambiciosa e então o tribunal passa a ser convocado para resolver muitos tipos de problemas: decide se a reforma tributária é válida, se está correta a reforma previdenciária, se o amianto pode ser usado no país, como a prefeitura deve regular os seus funcionários.

ConJur — Até então o acesso ao Supremo era mais difícil?

Oscar Vilhena — A configuração do STF era parecida com a da corte americana: a última instância. Ainda que não fosse geral, o Supremo tinha discricionariedade temerária na análise do que chegava, que aplicava por meio da chamada argüição de relevância. A Constituição de 88 é reativa ao regime militar e abriu as portas para que o Recurso Extraordinário fosse proposto em qualquer tema que tenha relação direta com a Constituição. É um requisito objetivo: é preciso demonstrar onde a CF foi violada para ter o direito subjetivo de acesso ao Supremo. Em 1990, foram distribuídos 16 mil processos. Em 2007, foram 112 mil.


ConJur — O número de autoridades com competência para propor uma Ação Direta de Inconstitucionalidade também aumentou com a nova Constituição.

Oscar Vilhena —Até 1988, só o procurador-geral da República, que era cargo de confiança do presidente da República, podia chegar ao Supremo. O artigo 103 abre uma porta muito importante, ainda que meio Getulista. Hoje, o presidente da Câmara, do Senado, das Assembléias Legislativas, os partidos políticos, a OAB, sindicatos e confederações de âmbito nacional também podem. Os governadores são os principais clientes das ADIs. Eles esgrimam contra os antecessores, as assembléias legislativas, o governo federal, contra o governador de outro estado que está criando guerra fiscal. Antes isso não existia, porque era o procurador-geral que tinha de propor a ação.

ConJur — Os partidos políticos também gostam desse instrumento?

Oscar Vilhena —Até 2001, o PT era o partido que mais usava ADI, seguido pelo PSDB. Se sofro uma derrota no campo democrático, corro para o Supremo, que se torna quase uma casa de suplicação. Com isso, vira uma corte constitucional altamente politizada, porque recebe ações de atores políticos relevantes da sociedade brasileira. Há a possibilidade de o Supremo se tornar o que eu chamaria de Tribunal de Pequenas Causas Político. Ou seja, o presidente da República demite para o bem do serviço público um funcionário de última categoria. Ele entra com Mandado de Segurança contra o presidente no Supremo. A Mesa do Senado diz que a sessão de apuração do caso Renan Calheiros é secreta. O Fernando Gabeira entra com Mandado de Segurança contra o Senado. O Supremo recebe o pedido às 11h e dá a liminar às 11h45.

ConJur — Tem ainda a análise de Habeas Corpus.

Oscar Vilhena —Temos três tribunais funcionando em um só. Os ministros acumulam função do Judiciário em geral e de mais dois tribunais. A Emenda 45 reforça os seus poderes de maneira razoavelmente sensata. A argüição de repercussão geral é um remédio muito bom para conter a demanda. Alguns juízes não entenderam ainda, mas esse é um mecanismo de fortalecimento das instâncias inferiores do Judiciário. Depois de analisar várias vezes a questão, o Supremo rejeita o recurso. Ou seja, o Tribunal de Justiça é quem vai decidir aquela questão por último. Se os ministros usarem a sua autoridade corretamente, podem transferir poderes para as instâncias inferiores, o que é muito saudável para o país. Acaba com essa gincana que só favorece quem tem dinheiro para permanecer no processo.

ConJur — A Súmula Vinculante também ajuda nesse trabalho de conter a demanda?

Oscar Vilhena —É a primeira vez na história do país que a corte tem supremacia sobre o Judiciário. Até então o juiz podia decidir diferente do Supremo em qualquer caso. A súmula vinculante veio para regular essa distorção. Mas não acho que seja o melhor caminho. Os enunciados chegam como um torniquete para esse problema. A questão é que o STF decide em relação a todos os outros. Não é o Tribunal de Justiça de São Paulo em relação à Justiça paulista. Então, se o STF está errado, harmoniza de forma errada para todo mundo.

ConJur — Um juiz pode deixar de aplicar uma súmula?

Oscar Vilhena —Se ele entender que naquele caso concreto aplicar a súmula pode prejudicar um direito e a pessoa ficará desamparada sem a liminar, o juiz pode conceder. No Plano Collor, o Supremo declarou constitucional o bloqueio dos cruzados e disse que cabia entrar com ações ou liminares. O ministro Sepúlveda Pertence [hoje aposentado] observou que também é constitucional a obrigação do juiz assegurar o direito do jurisdicionado. Por casos como esse, o Supremo vai ter que editar com muita modéstia as súmulas, porque pode sofrer resistência.

ConJur — Qual é o impacto dessas mudanças no Judiciário no desenvolvimento brasileiro?

Oscar Vilhena —O desenvolvimento deve ser pensado em sentido mais amplo que o mero crescimento econômico. Temos que pensar também em distribuição de renda, respeito aos direitos humanos, acesso aos recursos públicos pela população mais pobre, liberdade de expressão. A China cresce, mas o Estado de Direito não é lá grande coisa. No Brasil, podemos dividir essa situação em duas partes. O acesso a direitos fundamentais, por meio do Judiciário, é para quem tem dinheiro para movimentá-lo. Não estou falando de corrupção. Um criminalista de alta qualidade sabe usar a Justiça, honestamente, para exigir todos os direitos e garantias do seu cliente. Isso é muito bom. Mas o jovem que foi para a Febem não tem acesso. O Judiciário não tem sido capaz de assegurar os direitos em igual medida a todos que têm seus direitos violados.

ConJur — A Constituição não ajudou a mudar essa situação?

Oscar Vilhena —A generosidade da Constituição, em muitas circunstâncias, só reforça a condição daqueles que já são privilegiados. É muito grande a desproporção entre os recursos da advocacia privada e da assistência judiciária, prestada pela OAB. A Constituição é pouco eficiente para aqueles que estão no andar de baixo. Mas ela tem mais qualidades que defeitos. O seu texto é desenvolvimentista no melhor e mais contemporâneo dos sentidos. Nós temos uma Constituição liberal do ponto de vista econômico. E há um projeto de desenvolvimento social muito forte, inovador, no sentido de tratar especificamente de grupos vulneráveis, como os índios, os negros. Ela não trata todo mundo igual, porque sabe que a vida das pessoas é diferente e muitas precisam de proteção específica.

ConJur — E quais são os resultados da atuação do Judiciário para o desenvolvimento econômico do país?

Oscar Vilhena —Muitos insistem em dizer que a Justiça brasileira é feita para pobres. Na verdade, as leis são criadas para fortalecer os hipossuficientes. O juiz do trabalho não julga em favor do pobre, é o Direito trabalhista que cria circunstâncias onde presume-se o direito do trabalhador. A mesma coisa acontece com o consumidor. O CDC inverte o ônus da prova, porque a empresa é muita mais poderosa. Não é relevante discutirmos se a justiça brasileira é mais de esquerda ou mais de direita. O Judiciário tem gente de todo jeito. O livro Corpo e Alma da Magistratura Brasileira traça um perfil dos juízes e mostra que não há uma elite, não há aristocratas. A justiça é feita de brasileiros que estudam muito e passam em um concurso. O grande problema do Judiciário é a falta de harmonia nas decisões.

ConJur — A falta de segurança jurídica?

Oscar Vilhena —Pois é. A minha empregada fica confusa: “a minha vizinha entrou com a mesma ação que eu na vara de Previdência. Ela ganhou, eu perdi”. Esse é um problema central no Estado de Direito, porque a lei se aplica de maneira desigual. A fragmentação do Poder Judiciário brasileiro permite que os tribunais inferiores sejam pouco permeáveis pela autoridade dos tribunais superiores. Cada tribunal decide de um jeito, o que gera dificuldade para entender qual é a lei n Brasil. Não adianta ler o Código Penal ou o Código Civil, é preciso prestar atenção às diversas jurisdições.

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