Nova Justiça

Supremo abre mão de liturgia e quebra protocolos

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10 de dezembro de 2008, 20h03

O julgamento sobre a demarcação das terras da Raposa Serra do Sol fez mais do que fixar diretrizes para a criação de reservas indígenas. Jogou luzes sobre o fato de que a nova formação do Supremo Tribunal Federal vem abrindo mão da liturgia dos atos e permitindo a quebra de protocolos em ritmo acelerado.

O caso, por si só, já seria prova lapidar de que certos ritos foram abandonados pela corte. Afinal, até há pouco tempo, seria impensável permitir que índios com trajes típicos e agricultores de calças jeans entrassem no Plenário para acompanhar julgamento. Tampouco se imaginaria que três juízes pudessem entrar em um helicóptero para sobrevoar o local objeto do conflito.

Mas o pedido de vista antecipado do ministro Marco Aurélio reforçou o fato de que o tribunal está menos apegado à forma. Não só o pedido de vista, mas também a decisão de seus colegas de continuar a julgar o caso apesar disso. “Importante ressaltar que não há o rompimento de leis ou do processo, mas o Supremo tem ultrapassado costumes enraizados na corte”, afirma o advogado Saul Tourinho Leal, professor de Direito Constitucional.

De acordo com a advogada Damares Medina, também especialista na área constitucional, a antecipação do pedido de vista quebra a liturgia porque altera a ordem de votação. “Uma vez suspenso, o julgamento seria retomado a partir da prolação do voto-vista que, no caso, seria o do segundo ministro mais antigo da corte (Marco Aurélio), em detrimento de outros seis ministros menos antigos.”

Com isso, possível divergência trazida por Marco Aurélio poderia repercutir no voto dos outros ministros que ainda não votaram. “De modo inverso, negada a antecipação, o pedido de vista poderia vir a exercer pouca influência no resultado do julgamento, uma vez que oito ministros já teriam votado, consolidando a maioria do entendimento do STF”, afirma Damares.

A advogada acredita que um pedido de vista pode definir um julgamento. “Muitos advogados apostam no pedido de vista dos julgadores como estratégia de adiamento do julgamento no qual a maioria está se configurando em sentido contrário à tese defendida, seja como forma de diminuir a força de uma argumentação consistente no voto já proferido no convencimento dos demais julgadores do colégio, seja no afã de coligir argumentos suficientes para, em memoriais, desconstituir premissas então lançadas.”

Em tese, os ministros podem mudar o voto diante de novos argumentos colocados pelo ministro Marco Aurélio quando ele apresentar seu voto em nova sessão de julgamento. Mas, na prática, é pouco provável que isso aconteça.

Atropelo

O descontentamento do ministro Marco Aurélio com a decisão dos colegas de continuar a votação do caso transpareceu no final do julgamento, quando o ministro Carlos Britto propôs que o Plenário declarasse a cassação da liminar que impede a retirada dos arrozeiros da área, ignorando o pedido de vista do colega.

“Presidente, eu pergunto a Vossa Excelência se este ainda é um julgamento colegiado”, questionou Marco Aurélio. Em seguida, se dirigindo ao ministro Britto, completou: “Seria o caso de cassar a vista que eu pedi do processo? Vossa Excelência chegaria a esse ponto? A essa teratologia?”.

Britto respondeu: “Não cabe pedido de vista neste caso, com a maioria formada”. Marco Aurélio, irônico, replicou: “Não cabe? Após 30 anos de magistratura estou aprendendo com Vossa Excelência”.

Voto antecipado

Não é a primeira vez que ministros decidem seguir com o julgamento de um caso, independentemente do pedido de vista de um colega. Em abril de 2007, no julgamento do Mandado de Injunção que discutiu o direito de greve no serviço público, depois de pedido de vista de Joaquim Barbosa, cinco ministros adiantaram seus votos: Celso de Mello, Sepúlveda Pertence, Carlos Britto, Cármen Lúcia e Cezar Peluso.

Na ocasião, o ministro Marco Aurélio anotou que o ato revelava desrespeito ao pedido do colega. Na sessão desta quarta-feira, contudo, o ministro Joaquim Barbosa parece não ter se lembrado do fato.

O próprio Joaquim Barbosa já antecipou pedido de vista, no caso que julga a constitucionalidade do sistema de reserva de bolsas de estudo para negros, indígenas, pessoas com deficiência e alunos da rede pública implementado pelo Programa Universidade para Todos (Prouni) do governo federal. Depois de o ministro Carlos Britto, relator, votar pela constitucionalidade do programa, JB interrompeu o julgamento. Os ministros respeitaram o pedido de vista.

Outra ocasião na qual se ignorou um pedido de vista foi em uma das sessões do julgamento no qual o STF legitimou as pesquisas com células-tronco embrionárias. Em março de 2008, depois do voto do relator Carlos Britto, o ministro Menezes Direito pediu vista do processo. A ministra Ellen Gracie, então presidente da corte, criticou o pedido de vista e adiantou seu voto, pela legitimidade das pesquisas. A próximo a votar, ministra Cármen Lúcia, decidiu esperar por Direito — que trouxe seu voto três meses depois.

No julgamento desta quarta-feira, Gilmar Mendes e Celso de Mello foram os únicos ministros que não adiantaram o voto. Os outros oito ministros votaram pela demarcação contínua das terras.

Rito ignorado

Há outros casos que demonstram como o STF vem deixando de lado a liturgia e certos protocolos. Para o advogado Saul Tourinho Leal, o procedimento adotado para a aprovação de súmulas vinculantes é um exemplo disso.

Pela regra, os casos de repercussão geral que podem se transformar em Súmulas Vinculantes devem passar pela Comissão de Jurisprudência do Supremo para que o enunciado seja aprovado.

Na prática, o caminho tem sido mais curto. Como os ministros da comissão têm assento no Plenário e se pronunciam sobre o tema em discussão, os enunciados têm sido aprovados sem passar pela comissão. “A prática encontra resistência justamente do ministro Marco Aurélio”, afirma Saul Tourinho.

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