Terceira geração

Raposa Serra do Sol e a Declaração dos Direitos Humanos

Autor

  • César Augusto Baldi

    é mestre em Direito pela ULBRA-RS doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha) e servidor do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Porto Alegre) desde 1989.

10 de dezembro de 2008, 19h56

Naquela que se tornou a leitura “canônica”, os direitos humanos vão-se sucedendo em três gerações ou dimensões: a primeira, relativa a direitos civis e políticos, iniciada com a Revolução Francesa e instauradora do processo de constitucionalização; a segunda, constante de direitos sociais, econômicos e culturais, e fruto, em boa parte, da Revolução Russa, da Revolução mexicana e da Constituição de Weimar; a terceira, constante de direitos transindividuais, associados a questões que não dizem respeito somente a indivíduos, mas à globalidade da comunidade humana e, inclusive, transgeracional. Tal “modelo”, que ganhou fama a partir da década de 1980, era uma releitura “retrospectiva” do passado dos direitos humanos.

Esta leitura, ainda quando criticada no campo temporal (afinal, não seriam gerações sucessivas, mas processos complexos de instauração e de lutas de direitos humanos, simultânea e cumulativamente e, desta forma, o correto seria tratar de “dimensões”), tem um substrato ocidental — e mais ainda, eurocêntrico- por demais evidente: ela é a própria decorrência dos lemas da Revolução Francesa, em sua exata ordem de enunciação- liberdade, igualdade e fraternidade (ou solidariedade).

Esta hipervisibilidade do momento instaurador no processo revolucionário burguês do século XVIII somente é construída à base de várias outras invisibilidades.

Primeira: porque, privilegiando o século XVIII, deduz do processo capitalista francês e inglês (as potências hegemônicas da época) o desenvolvimento dos direitos humanos, olvidando toda a discussão, já posta no século XV, tanto por Portugal e Espanha (então potências centrais), tematizadas, na época, a partir de uma pergunta central: seriam os índios nada mais que bárbaros sujeitos à escravidão ou poderiam ser considerados seres humanos dotados de alma e, portanto, passíveis de serem cristianizados?

Segunda: porque concentrada na visão histórica firmada a partir do Iluminismo, e, mais adiante, ressaltando a internacionalização com a Carta das Nações Unidas de 1948, obscurece, no mesmo tempo, o próprio processo de colonização. Aliás, dois processos de colonização: o primeiro, baseado na escravidão de índios e negros, oculto (mas existente) tanto na discussão ibérica, quanto na discussão posterior anglo-francesa; e o segundo, da própria Declaração Universal, porque as nações que protagonizaram a luta “contra a barbárie do nazismo” mantinham, intactas, suas colônias na Ásia e na África. Em realidade, a discussão a respeito da existência de “alma” indígena (e, pois, de sua evangelização) ocorre simultaneamente à “expulsão” dos mouros (e, pois, de sua não-inclusão na Europa) e à possibilidade de escravidão para os negros vindos da África.

Terceira: porque este movimento de “gerações” não é somente temporal, mas também espacial. Supõe o deslocamento dos direitos humanos com ponto de origem na Europa e daí para o resto do mundo. No exato momento em que a Europa “inventava” os direitos humanos, os “propulsores da globalização dos direitos humanos estavam nas Américas, lutando contra a opressão colonial européia”, o mesmo ocorrendo, mais tarde, com os povos africanos e asiáticos: “aí se encontravam os agentes da expansão do repertório dos direitos humanos, ao passo que na Europa estavam os poderes coloniais que oprimiam e difundiam o ódio entre povos e etnias.”[1] Vale dizer: o próprio ato de afirmação da “modernidade” é a negação do fato da “colonialidade”. Nesta visão histórica, a Revolução do Haiti, proclamando a independência de uma nação negra, não pode ser entendida, paralelamente, às declarações de direitos dos Estados Unidos e da França. Terá que ser considerada um “acidente histórico”.[2]

Quarta: porque está implícita a progressiva expansão da civilização com a redução da barbárie, e a passagem da tradição em direção à modernidade. Nesta medida, o mundo extra-europeu somente poderia ser entendido como atrasado, imutável, tradicional, conservador, arcaico. As visões homogêneas e ahistóricas que se tem a respeito do Islã não são nada mais do que decorrência deste padrão. Neste contexto, sequer é possível pensar em “modernidades alternativas”.

Quinta: porque esta explicação ignora qualquer componente de raça, etnia ou de gênero, como se racismo, colonialismo e patriarcalismo/sexismo não estivessem amalgamados e obscurecidos nas próprias formulações. Bastaria recordar que a concepção de cosmopolitismo de Kant conviveu, “tranqüilamente”, com sua antropologia, em que não cabiam os povos não-ocidentais, o que fica evidente em sua taxinomia das raças branca (europeus), amarela (asiáticos), vermelha (índios americanos) e negra (africanos), em que somente a primeira “possui, em si mesma, toda as forças motivadoras e talentos”. [3]


Do que se trata, pois, mais que criticar o “eurocentramento” dos direitos humanos é, no momento em que se passam sessenta anos da “Declaração Universal”, salientar que o aparente consenso em relação a eles esconde, em realidade, o fato de que se constituem um campo de lutas e de contestações – também discursivas- onde “competem pressupostos e visões de mundo distintos sobre gênero, diferença, cultura e subjetividade”[4]

Neste momento, portanto, a discussão a respeito da conceituação, aceitação, exeqüibilidade, fundamentação, efetividade dos direitos humanos encontra-se envolvida em determinadas tensões. Salientem-se algumas.[5]

Primeira: a discrepância entre a proclamação de princípios e direitos e a violação destes na prática. Esta tensão tem várias faces: defesa da democracia para implantação de golpes de Estado, invasão de um país a pretexto de autodeterminação, bloqueios econômicos (e, pois, violação de direitos sociais) para implementação de direitos civis (fins de regimes despóticos), a hipervisibilidade de algumas violações (exemplo: Ruanda) e hiper-invisibilidade de outras (exemplo: Timor Leste durante mais de 20 anos ou Myanmar), a violação de direitos civis para combate ao terrorismo. É o campo propício para verificar, também, o que é visto como “sofrimento necessário” e “sofrimento desnecessário” e, portanto, quais são as invisibilizações de sofrimento. O que conta como tratamento cruel, desumano e degradante? A pena de morte em qualquer de suas modalidades? Os projetos de mega-irrigação e degradação ambiental? Os planos de ajuste estrutural? Práticas sexuais não-consensuais dentro da relação matrimonial? Formas de assédio sexual? Quando a discriminação baseado em gênero, classe, casta ou raça/etnia assume a forma de tortura descrita pelos parâmetros internacionais de direitos humanos? Significa, pois, como sustenta Upendra Baxi, que “tomar os direitos realmente a sério requer tomar o sofrimento a sério”[6], dar vozes ao sofrimento, torná-lo visível e reduzi-lo.

Segunda: a dissonância entre princípios rivais, cosmologias, formas de racionalidade e, portanto, a luta por justiça cognitiva. Quais as concepções de dignidade não-eurocentradas que foram silenciadas, reprimidas, ocultadas e tidas como não-existentes? Trata-se, pois, de “desprovincializar” os direitos humanos, reconhecendo que as lutas por dignidade, igualdade, justiça, liberdade e solidariedade podem ser expressas por formas distintas e com fundamentos diferentes das versões clássicas de direitos humanos. Assim, islâmicos podem fundamentar lutas por igualdade ou reconhecimento em termos de “gender jihad”, concepções de “umma” (comunidade) ou tensões entre “ismah” (inviolabilidade) e “âdammyyah” (humanidade); “dalits” questionarem as noções de “dharma”; indígenas fundarem suas lutas em “pachakuti” ou africanos em “ubuntu” (interdependência). E as lutas pelos direitos à terra ou água encontrarem formas distintas de tratamento, em fundamentos gandhianos de defesa de autodeterminação, soberania alimentar e “democracia da água”.

Terceira: a discussão da “dialética cultura- universalidade”, que, como salienta Balakrishnan Rajagopal, é, no fundo, também uma “discussão da dialética tradição-modernidade, que reside no coração do discurso do desenvolvimento”, uma similitude entre os discursos dos direitos humanos e do desenvolvimento na relação com a cultura que é ”perdida quando somente se vê a universalidade e a relatividade como o oposto um do outro.”[7] É produção da incapacidade de futuros alternativos da modernidade dos direitos humanos (ou seja, o monopólio da visão de “futuro”) e, pois, a dificuldade de convivência de temporalidades e espacialidades distintas, com o aumento da distância entre “civilizados” e “não-civilizados” e o incremento de enclaves de “fascismos societais” (Boaventura Santos).

Quarta: a discrepância entre uma concepção estadocêntrica e a emergência do processo de globalização econômica e cultural. Não se trata apenas de verificar as polarizações entre multilateralismo e unilateralismo no direito internacional ou o crescimento das assimetrias globais, mas também de constatar que a concepção de direitos humanos necessita ser irradiada para agências financeiras internacionais (FMI, Banco Mundial), blocos econômicos regionais e setor privado. Muitas violações de direitos humanos são perpetradas não por Estados nacionais, mas sim por empresas transnacionais (das 100 maiores economias mundiais, 51 são empresas “multinacionais”), de que são exemplos contaminações ao meio ambiente e danos a comunidades indígenas causados por empresas petrolíferas.


Quinta: a discrepância entre secular e profano. A transferência do “religioso” para o plano privado, a separação do poder da Igreja e do Estado e a “secularização” dos direitos humanos são processos contingentes, incompletos e não necessariamente transplantáveis para todo o mundo extra-europeu com o mesmo grau, intensidade e formas. Mas são processos que acabam por ocultar: a) a estabilização das opressões e dos medos no espaço privado (ex. mulheres islâmicas ou não, filhos diante do poder patriarcal, gays, lésbicas); b) as distintas formas de “secular” e “profano” como processos abertos, negociáveis histórica e culturalmente (vide a discussão do laicismo nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra ou mesmo na Turquia); c) a importância da religião como fator político e social (por ex. no contexto asiático), bem como do papel da espiritualidade nas lutas por um mundo melhor (relembre-se que fascismo e nazismo tinham pressupostos seculares). Como pergunta Boaventura Santos, “e se Deus fosse ativista de direitos humanos?”[8]. Dois movimentos recentes realçam estas limitações: o movimento pacífico dos monges budistas em Myanmar, em que a luta por dignidade humana se fez em virtude dos preceitos budistas (e não apesar destes), e as diversas formas de “feminismo islâmico”, que, ao questionarem as leituras patriarcais do Corão e o privilégio epistemológico da ciência como única forma de saber, acabam por repensar o próprio “feminismo” eurocentrado e os modelos de lutas contra o patriarcado, o sexismo e o machismo.

Sexta: as tensões entre o que se convencionou chamar “humano” e “pós-humano”[9], a partir da engenharia genética, da robótica e das profundas transformações do “corpo humano”. Não é somente a discussão de células-tronco, da inteligência artificial, da medicalização da vida humana, de transgêneros, da bioética e do biodireito, mas também do quanto de antropocêntrica tem sido a discussão sobre direitos humanos ou como a própria noção de “natureza” é “cultural”, colapsando a dicotomia clássica.

E isto fica evidente com as representações de indígenas que foram sendo reproduzidas desde o período colonial: embora sejam humanos e possuam língua e cultura, o seu enquadramento é sempre muito próximo do “mundo natural”, de tal forma que os seus aspectos de humanidade e cultura são sempre focalizados para demonstrar a simplicidade ou realçar o exotismo.[10]

O julgamento da demarcação do terra indígena Raposa Serra do Sol justamente no mesmo dia em que se comemoram os sessenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos repõe as discussões acima mencionadas e coloca alguns desafios ao Supremo Tribunal Federal.

Primeiro: porque coloca a necessidade de pensar a discussão dentro de uma marco de pluriculturalidade e plurietnicidade, recompondo estatutos de igualdade e de diferença, de reconhecimento e de distribuição, justiça social e histórica e, pois, a discussão “tradição-modernidade”, direitos humanos e desenvolvimento, “civilização” e “barbárie”. E talvez demonstrar que a noção de “tolerância” era muito mais “imperial” e “colonial” do que se pensara.

Segundo: porque a simultaneidade de tradições culturais no mesmo espaço geográfico demonstra a reatualização da discussão não só do pluralismo jurídico em termos clássicos, mas também da própria construção do discurso nacional como “discurso colonial” (a colonialidade como a outra face da modernidade) e desconstrução da “memória cultural” (o esquecimento dos saberes indígenas e o privilégio epistemológico da cultura européia como campo de batalha por justiça cognitiva).

Terceiro: porque implica repensar soluções institucionais uniformes, repensando juridicidades. É, portanto, o reconhecimento da sociodiversidade e da cosmodiversidade como formas de repensar os direitos humanos (formas ampliadas de dignidade humana), e a recordação de que indígenas, negros e descendentes de europeus não vivem em tempos distintos, como se houvesse progresso e evolução nítidos, mas sim são “contemporâneos” e “simultâneos”, ainda que distintas as temporalidades.

Quarto: porque o conceito de territorialidade envolvido não se resume apenas a luta por terras, no sentido liberal e civilista, mas sim um reconhecimento de territórios simbólicos de reprodução social, física e cultural (uma discussão, portanto, que se verifica também com as comunidades quilombolas e tradicionais, aumentando a responsabilidade deste julgamento). Um “princípio da proporcionalidade extensivo”, na feliz acepção do voto do ministro relator Carlos Ayres Britto.


Quinto: porque o processo de internacionalização de direitos humanos por meio de tratados não pode ser posto em segundo plano. Não se trata apenas da discussão do “status constitucional” dos tratados internacionais (artigo 5º, §§ 2º e 3º), mas da “recordação” de que eles também protegem indígenas e comunidades tradicionais. Não é possível que o STF, ao analisar a questão de “células-tronco”, teça inúmeras considerações sobre convenções e mecanismos de proteção internacional da “dignidade humana” e faça tábua rasa das leituras harmônicas da Convenção 169-OIT, da convenção para eliminação da discriminação racial e da própria Declaração dos Povos Indígenas, entendendo-as como irrelevantes, inexistentes ou não recepcionadas pela Constituição Federal.

Espera-se que o STF esteja à altura do momento de interculturalidade em que vivemos e não se ponha a imaginar que os indígenas, apesar de já terem "alma", não tenham, contudo, seus direitos constitucionais respeitados, não mais em virtude da defesa da civilização ou da fé cristã, mas agora em nome do desenvolvimento nacional, da ‘cultura’ e dos interesses econômicos. A aposta não é de pequena monta.


[1] COSTA, Sérgio. Direitos humanos e anti-racismo no mundo pós-nacional. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 68, p. 28, março de 2004.

[2] Vide a este respeito: TROUILLOT, Michel-Rolph. Silencing the past: power and the production of history. Boston: Beacon, 1995.

[3] A respeito desta discussão vide: EZE, Emmanuel Chukwudi. El color de la razón: la idea de “raza” en la antropología de Kant. In: MIGNOLO, Walter (comp). Capitalismo y geopolítica del conocimiento. Buenos Aires: Signo, 2001, p. 223, 225-7, 250-1.

[4] KAPUR, Ratna. Revisioning the role of law in women’s human rights. IN: MECKLED-GARCÍA & ÇALI, Basak. The legalization of human right: multidisciplinary perspectives on human rights and human rights law. London- New York: Routledge, 2006, p. 102.

[5] Segue-se, aqui, no geral, a caracterização constante em : SANTOS, Boaventura de Sousa. Os direitos humanos na zona de contato entre as globalizações rivais. Revista Brasileira de Ciências Criminais, (64): janeiro-fevereiro 2007, p. 319 e seguintes.

[6] BAXI, Upendra. Fostering human rights cultures. IN: BAXI, Upendra & MANN, Kenny (ed). Human rights learning: a people’s report. New York: People’s Movement for Human Rights Learning, 2006, p. 19. Disponível em: http://www.pdhre.org/pdhre-report-2006.pdf

[7] RAJAGOPAL, Balakrishnan. International law from below – development social movements and Third World Resistance. New York: Cambridge University, 2003, p. 212.

[8] Vide a discussão sobre uma concepção pós-secularista de direitos humanos, presente em : SANTOS, Boaventura de Sousa. If God were a human rights activist: human rights and the challenge of political theologies. A ser publicado em “Law Social Justice and Global Development”, Upen Baxi- a celebration! (Volume 2, 2008).

[9] BAXI, Upendra. Human rights in a posthuman world; critical essays. New Delhi: Oxford University, 2007.

[10] OLIVEIRA, João Pacheco de. Cidadania, racismo e pluralismo: a presença das sociedades indígenas na organização do Estado-nacional brasileiro. IN: Ensaios de antropologia histórica. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999, p. 196-197.

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