60 anos

Cármen Lúcia destaca direito à vida, liberdade e segurança

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9 de dezembro de 2008, 23h00

Este texto faz parte da série especial sobre os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos preparada pela Secretaria de Comunicação Social do Supremo Tribunal Federal. A declaração foi aprovada pela 3ª Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas no dia 10 de dezembro de 1948.

Em comentário feito ao artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz: “Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”, assim se pronunciou a ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha

Artigo 3º

Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal

Contou, certa vez, um poeta que ficara toda uma noite a buscar palavras para dizer a vida. No final da madrugada insone, na qual não lhe tinha vindo à pena o dito mais perfeito, uma pequena formiga atravessou a sua página em branco. Com o seu olhar indormido, o poeta observou a passagem livre do inseto até que ele sumisse nas bordas da folha de papel. Então, ele largou a caneta e buscou o sono: a vida tinha se mostrado em movimento melhor que qualquer palavra sua pudera jamais descrever.

O direito é como o poeta que observa e age sobre a realidade, como se fora a sua folha de papel. Mas o direito não apenas observa e cuida da vida, mas faz-se debruçar sobre a dor do viver. Se a vida não tivesse dores, se a indignidade não lhe tocasse a face, o ventre, se não lhe atingisse a alma, nem seria preciso o direito. Se viver não machucasse algumas vidas (quem sabe todas de uma ou de outra forma…), se a história do homem pudesse sempre atravessar sem percalços o caminhar do homem, o direito não se teria institucionalizado. Não se constroem diques ou barragens para as águas que correm segundo o destino natural das águas servindo às suas margens e aos que delas se servem. Mas o destino dos homens em sua experiência com os outros não se faz sempre (ou quase nunca) como aquela travessia breve e calma sobre a qual pousou o poeta seu olhar noturno. Antes, ele se faz com paixões sobre as quais se litigam, com interesses que se entrechocam, com buscas que têm o mesmo objeto e não comportam senão o toque de uma mão ou de mãos entrecruzadas. Por isso, a vida é o objeto do direito maior do homem: aquele do qual e para o qual todos os outros direitos se constroem, se somam e em torno do qual todos os cuidados jurídicos se somam.

A gente nasce, cresce, envelhece e morre. Às vezes nem chega a envelhecer. A mão de parca toca a face do destino antes da chegada das rugas. O direito é o instrumento criado pelo homem para que o curso dessa jornada seja tão natural que a caminhada não pese como um gravoso encargo, mas se cumpra como um benfazejo milagre.

Por isso se declara, no direito dos direitos, que todo homem tem direito à vida. Mas não a qualquer existência, não a mera sobrevivência, definitivamente não a qualquer sobreexistência.

O direito à vida não é só a garantia da “batida de um coração” ou uma “doce ilusão”. É o direito a realizar o eterno projeto humano de ser dignamente feliz. É a entrega a si mesmo no espaço de todos e o encontro mais profundo de cada um com todos os outros convertidos em fraternos elos da experiência transcendente e transposta no movimento entrecruzado de mãos que se conjugam para a superação de si mesmo e para a construção permanente do viver mais justo com o outro.

O direito à vida guarda e resguarda a oportunidade justa de o homem tornar-se inteiro em sua individualidade pela certeza da solidariedade de todos. Nele se contém a segurança da dignidade, posta a florescer na experiência plural. O direito à vida concede ao homem não a certeza da vida, que a vida é sempre uma incerteza, mas a certeza de que a solidão do seu ser pode converter-se na solidariedade do permanente tornar-se.

A vida é da natureza; a vida digna, transformada pela construção de cada dia, é da razão essencial do homem. A vida põe-se pela natureza e impõe-se pela mão do homem. Por isso o direito à vida é obra construída com todos; é a arte de fazer brotar na realidade o que é próprio e inato ao homem, mas que jaz apenas semente no reconhecimento da palavra-norma declarada.

Direito à vida não é retórica ou sugestão, senão que contingência do que se dá a ser para que convivam dignamente todas as pessoas. Esse direito está na base e na essência de todos os direitos, pois o próprio sistema de normas jurídicas mais não é que uma criação do homem para tornar facilitada, aperfeiçoada, fraternizada a convivência em praça pública. O direito é isto e só isto: um instrumento político criado pelo homem para assegurar-se uma vida digna e melhor com todos. Não fossem as indignidades que se têm nos limites humanos naturais e naqueles que se põem pelo passo entrecruzado no caminho, desnecessários seriam os traçados normativos para limitar andanças que machucam e coartam o mais breve atalho para o bem viver. O sistema de direito é, assim, tão-somente um desdobramento do direito à vida; uma construção que se elabora para que o homem se projete no momento breve de uma existência e realize a sua vocação para a eternidade.

Nenhum direito é mais proximamente marcado pela temática da justiça concretamente realizável que o da vida. Até porque o direito é uma manifestação da vida. Não há direito para a morte, nem ou um “direito dos mortos”. O que se protege quando se fala em morte ou na segurança do corpo para depois da morte é uma projeção do direito à vida, a proteção da dignidade e da integridade, mesmo quando não há mais a resposta material do viver.

A vida com justiça é que é o objeto do direito. E a vida é justa quando garantida a dignidade da experiência humana. Vida com fome não é justa nem digna. Vida com dor também não, seja qualquer a espécie de dor que acometa o homem. A vida tocada pelo medo e pela angústia é experiência malsã, mais ainda se o desequilíbrio vem de fora.

O direito à vida calça o homem com a esperança de que a experiência política (na pólis) é segura, mesmo que o incerto se traduza em sua certeza maior, quando não única, que perpassa todo o incrível ensaio humano. Essa esperança põe-se quanto à própria condição da existência e traduz-se em segurança formal quando o conteúdo e o continente desse direito se positivam e dão ao homem o saber possível de como prosseguir em sua jornada humana. Se a insegurança assinala o turbilhão que a cada qual é dado viver, a certeza da e na convivência torna-o mais generoso quando o direito se oferece como esteio garantidor da presença respeitosa, digna e solidária do outro.

A vida é um fazer eterno do homem, o qual não se dá à eternidade. Neste não ser eterno o homem busca, apesar de todos os limites, não se entregar e não se dar a morrer. O direito à vida é uma construção permanente para a perpetuação do homem que busca a sua não-morte. Por isso, a vida não é um dado cultural que se converte em direito, Mas o conteúdo do direito à vida é fruto de cada cultura e de cada povo em cada momento histórico. Daí porque a Constituição deixa em aberto a dimensão desse direito fundamental e do qual e para o qual todos os outros se voltam. O conteúdo desse direito é, pois, dinamizado segundo o conceito de justiça havido em cada sociedade. E os conceitos mudam, como a vida muda.

A valorização do direito à vida digna preserva as duas faces do homem: a do indivíduo e a do ser político; a do ser em si e a do ser com o outro. O homem é inteiro em sua dimensão plural e faz-se único em sua condição social. Igual em sua humanidade, o homem desiguala-se, singulariza-se em sua individualidade. E o direito à vida contempla a unidade e a pluralidade do homem, feito persona em todas as suas presenças e até mesmo em suas ausências. Assim, a preservação jurídica da intimidade é uma projeção do direito à vida, contido seu universo singular em sua alma não partilhável com os outros; o homem preserva-se em sua individualidade para garantir-se em sua socialidade. A persona política apresenta o homem em sua qualidade fraterna do que convive para viver, do que se une para se desenvolver, do que se funde ao outro para se preservar íntegro. E certo que a praça revela tanto o abraço quanto o açoite, tanto o alento quanto o desamparo daquele que se vê só junto com os outros. O homem não é só o amigo; pior, é também o inimigo, o que falseia e trai a sua própria imagem oferecida ao outro. O direito é o instrumento da fraternização racional e rigorosa.

O direito à vida é a substância em torno da qual todos os direitos se conjugam, se desdobram, se somam para que o sistema fique mais e mais próximo da idéia concretizável de justiça social.

Mais valeria que a vida atravessasse as páginas da Lei Maior a traduzir-se em palavras que fossem apenas a revelação da justiça. Mas quando os descaminhos não conduzirem a isso, compete ao homem transformar a lei na vida mais digna para que a convivência política seja mais fecunda e humana.

Afinal, se a vida não atravessa a página da lei, seja possível a lei atravessar a vida política com o condão de concretizar os ideais que fazem da eternização do sonho de cada homem o seu projeto mais certo, mesmo em todas as suas incertezas.

Artigo publicado na obra 50 anos da Declaração dos Direitos Humanos: conquistas e desafios da Ordem dos Advogados do Brasil (p. 47-51, 1998).

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