Dilema da Polícia

Súmula das algemas ofende princípio da separação dos poderes

Autor

  • Pedro de Jesus Juliotti

    é promotor de Justiça de São Paulo e secretário da Promotoria das Execuções Criminais da capital mestre em Processo Penal pela USP e professor de Direito Processual Penal pela UMC.

2 de dezembro de 2008, 23h00

Quando a polícia pode fazer uso de algemas? Na verdade, não há uma legislação específica disciplinando ou impondo regras para a sua utilização. A Lei 7.210, de 11 de julho de 1984, denominada Lei de Execução Penal (LEP), em seu artigo 199, reza que o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal. Infelizmente, até hoje o citado decreto não foi editado.

Na ausência de legislação específica e considerando recentes episódios envolvendo a prisão de algumas personalidades, o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária do dia 13 de agosto de 2008, editou a Súmula Vinculante11, publicada no Diário Oficial em 21 de agosto de 2008, segundo a qual:

“Só é licito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.”

A decisão de editar a súmula foi tomada pela Corte no último dia 7, durante o julgamento do Habeas Corpus 91.952. Na ocasião, o Plenário anulou a condenação do pedreiro Antonio Sérgio da Silva pelo Tribunal do Júri de Laranjal Paulista (SP), pelo fato de ter ele sido mantido algemado durante todo o seu julgamento, sem que a juíza-presidente daquele tribunal apresentasse uma justificativa convincente para o caso.

No mesmo julgamento, a Corte decidiu, também, deixar mais explicitado o seu entendimento sobre o uso generalizado de algemas, diante do que considerou uso abusivo, nos últimos tempos, em que pessoas detidas vêm sendo expostas, algemadas, aos flashes da mídia (“Notícias” STF).

Não há dúvidas sobre a necessidade de regulamentação do uso de algemas, pois o uso desnecessário e abusivo fere a Constituição Federal, que impõe a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral do preso. Louva-se a boa intenção do STF, mas, a citada Súmula é manifestamente inconstitucional por ofensa ao princípio da separação dos poderes.

A Constituição Federal previu a existência dos Poderes do Estado (Legislativo, Executivo e o Judiciário), independentes e harmônicos entre si, repartindo entre eles as funções estatais, bem como criando mecanismos de controles recíprocos, sempre como garantia do Estado democrático de Direito.

A função típica do Poder Judiciário é a jurisdicional, ou seja, julgar, aplicando a lei a um caso concreto. O Poder Executivo constitui órgão constitucional cuja função precípua é a prática dos atos de chefia de estado, de governo e de administração. Por sua vez as funções típicas do Poder Legislativo são legislar e fiscalizar.

Ao estabelecer regras para o uso de algemas, exigir a comunicação do uso por escrito e estipular sanção civil, penal e administrativa, o Supremo Tribunal Federal simplesmente legislou, assim invadiu a competência constitucional do Poder Legislativo.

Além de legislar, o Supremo Tribunal Federal não observou um dos requisitos necessários para a edição de uma Súmula Vinculante, previsto no artigo 103-A, parágrafo 1º, da Constituição Federal, ou seja, que tenha por objeto a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas e, como vimos, desde 1984 não há uma norma determinada que discipline o uso de algemas ou que determine a justificação de sua utilização por escrito.

Não se pode ignorar também, que a própria Constituição estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (artigo 5ª,inciso II). Portanto, somente a lei pode compelir o policial a fazer, a deixar de fazer ou a tolerar que se faça alguma coisa, somente a lei pode criar regras de vinculação para toda a polícia, para toda a administração pública.

Se não há legislação específica e sendo a Súmula Vinculante inconstitucional, voltamos a pergunta inicial: Quando a polícia está legitimada a fazer uso de algemas?

As regras para utilização de algemas devem ser extraídas de outros princípios previstos na legislação em vigor. O Código de Processo Penal, em seu artigo 284, estabelece que “não será permitido o uso de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”. Por sua vez, o artigo 292 do CPP, ao tratar da prisão em flagrante, permite o emprego dos meios necessários, em caso de resistência a prisão.

Dessa forma, excepcionalmente, somente quando justificada a utilização de força, nas hipóteses de resistência e tentativa de fuga do preso, estará legitimado o policial a utilizar a algema.

Conclui-se que incumbirá ao próprio policial, no momento da ação, avaliar se as condições justificam ou não o emprego de algemas como meio necessário para impedir a fuga do preso ou conter a sua violência. Nesse processo, como bem salientou Fernando Capez (“A questão da legitimidade do uso de algemas”), a razoabilidade, consagrada no artigo 111 da Constituição Estadual, constitui o grande vetor policial contra os abusos, as arbitrariedades, na utilização da algema.

Sobre o princípio da razoabilidade, vale dizer, “pretende-se colocar em claro que não serão apenas inconvenientes, mas também ilegítimas – e, portanto, jurisdicionalmente invalidáveis — as condutas desarrazoadas e bizarras, incoerentes ou praticadas com desconsideração às situações e circunstâncias que seriam atendidas por quem tivesse atributos normais de prudência, sensatez e disposição de acatamento às finalidades da lei atributiva da discrição manejada” (Celso Antônio Bandeira de Mello “Curso de Direito Administrativo”).

Assim, o emprego de algemas que não respeitar tais parâmetros e se mostrar abusivo, implicará na prática de crime de abuso de autoridade, por constituir contra o preso atentado à incolumidade física, bem como vexame ou constrangimento não autorizado em lei (artigos.3, i, e 4º,b, da Lei 4.898, de 09/12/1965).

Pedro de Jesus Juliotti, é mestre em Processo Penal pela USP e Professor de Processo Penal da Academia de Policia Militar do Barro Branco, é promotor de Justiça do Estado de São Paulo e secretário da Promotoria das Execuções Criminais da capital.

Autores

  • Brave

    é promotor de Justiça de São Paulo e secretário da Promotoria das Execuções Criminais da capital, mestre em Processo Penal pela USP e professor de Direito Processual Penal pela UMC

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!