Política efetiva

É preciso inclusão das mulheres no processo democrático

Autor

  • Renata Schmidt Cardoso

    É presidente da Associação Brasileira de Mulheres da Carreira Jurídica - Comissão Rio de Janeiro - e sócia do escritório Antonelli & Associados Advogados.

3 de dezembro de 2008, 12h46

O conceito de cidadania, segundo o dicionário Aurélio, é “a qualidade ou estado do cidadão”. Mas afinal, o que caracteriza ser cidadão? O historiador Jaime Pinsky define que “ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei: é, em resumo, ter direitos civis. É também participar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos. Os direitos civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais – o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, a uma velhice digna”. Então, exercer a cidadania plena é ter direitos civis, políticos e sociais.

Feitas essas premissas, abordo o conceito de cidadania dentro do universo feminino. É notória a existência de um descompasso entre as conquistas alcançadas por homens e mulheres, conseqüência da adoção de modelos de comportamento amplamente difundidos ao longo da história. A orientação é secular e ainda hoje se perpetua, por meio da cultura que educa a menina para reproduzir papéis tradicionais de “cuidadora”: esposa, mãe, dona de casa, educadora.

A limitação imposta à condição feminina é histórica, e restringiu sobremaneira a participação das mulheres no mundo do pensamento e do conhecimento. Basta simplesmente retroceder no tempo para rememorar que, à época da civilização grega, as principais funções femininas já se limitavam à reprodução, à criação dos filhos e aos afazeres domésticos. Escravos, mulheres e artesãos estavam excluídos do processo de democracia na Grécia. No período romano, repetiu-se o modelo, consagrando-se a sistemática que impunha às mulheres jamais terem qualquer poder de decisão.

Foi na Idade Média, sob o impacto das Cruzadas e em decorrência da morte de muitos homens nas batalhas, que as mulheres passaram a assumir os negócios da família, bem como a exercer o governo de feudos e a deter o poder cultural, mediante o acesso às artes, ciência e literatura, mas tão-somente até muitas delas serem covardemente assassinadas pela Inquisição deflagrada pela Igreja Católica.

O movimento de caça às bruxas foi, na verdade, uma velada repressão ao apoderamento das mulheres, as quais contabilizavam 85% do total dos condenados sentenciados à execução na fogueira. Essa terrível contenção ao progresso feminino fez com que, mais uma vez, as mulheres se tornassem reclusas no seu universo de gestora do lar, sem ousarem questionar o sistema.

No Renascimento, algumas mulheres destacaram-se na cena política, obviamente no espaço dos bastidores, urdindo tramas em que a sedução era a grande arma possível. Lucrécia Bórgia é um dos protótipos deste modelo. Outras assumem o protagonismo nas obras de ficção, como Beatriz, de Dante.

Com a revolução industrial, a mulher ingressou no mercado de trabalho, embora a sua contraprestação fosse infimamente menor do que aquela percebida pelos homens, para exercer a mesma função, uma distorção que ainda se verifica nos tempos atuais, embora em menor proporção.

No cenário político, a sub-representação das mulheres é sentida na maioria dos países, mesmo com a introdução do sistema de cotas de participação. Isso porque essa garantia perde sua força na medida em que não é imposta nenhuma pena ao seu descumprimento, tampouco em projetos de capacitação política para as mulheres, como no caso do Brasil. A Inter-Parliamentary Union realiza um interessante trabalho de acompanhamento e estatística em relação à representação das mulheres no Poder Legislativo, compilando dados de todo o mundo, no qual o Brasil ocupa a 107ª posição, dentre 156 países, atrás de lugares como o Iraque, o Sudão, Serra Leoa e a China.

Certamente isso deve estar relacionado ao fato de que a inclusão da participação das mulheres no processo eleitoral no Brasil data de pouco tempo, embora hoje já sejamos responsáveis por 51,7% do universo de mais de 130 milhões de eleitores. Em contrapartida a esses números há a triste constatação de que representamos somente 8,77% do total de 513 deputados federais, e no Senado, apenas 12,34% das 81 cadeiras da Casa. É um absurdo o fato de que até os dias atuais jamais tenhamos ocupado um cargo na Mesa Diretora, seja da Câmara, seja do Senado.

Faz apenas 76 anos que as mulheres brasileiras adquiriram o direito ao voto, no entanto, poucas são as eleitoras que possuem conhecimento da grandiosidade que essa conquista representa, porque nem sempre foi assim. Como na primeira Constituição do Brasil – de 1824 – foi estabelecido um piso de renda, fundado em alqueires de farinha de mandioca, para que o cidadão pudesse participar do processo eleitoral, obviamente, as mulheres estavam excluídas desse processo.

Somente a partir da Constituição de 1891 o critério da renda deixou de ser tão explícito, uma vez que restou estabelecida apenas a necessidade do cidadão ser alfabetizado. Na contramão dessa imposição, porém, reinava o fato de que a maioria da população era formada por grande parte de estrangeiros (portugueses, espanhóis, alemães e italianos), e de mulheres – excluídas desse direito – o que tornava ínfimo o rol de eleitores.

Os artigos 69 e 70 da Constituição de 1891 e o disposto no Código Eleitoral de 1904 não excluíam as mulheres de seus textos, no que concerne ao conceito de cidadania e condições de elegibilidade – pois restava assegurado a todos a igualdade de direitos – mas o Estado, através de seus representantes, não reconhecia a extensão dessa igualdade ao universo feminino.

Tanto é assim que a advogada paulistana Adalgiza Bittencourt ingressou na Justiça em 1927, para requerer a inclusão de seu nome na lista de eleitores, e teve o seu pedido indeferido pelo juiz, sob a justificativa de que o “termo cidadão” compreendia apenas os cidadãos do sexo masculino. Também Myrthes de Campos (primeira advogada a ingressar nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil) e a professora Leolinda Daltro (fundadora do Partido Republicano Feminino) reclamaram o exercício desse direito e não obtiveram êxito.

As reivindicações feministas surtiram efeitos no Estado do Rio Grande do Norte, no qual passou a vigorar em 25/10/1927, a Lei Estadual 660, cujo artigo 77 das Disposições Gerais estabelecia que “no Rio Grande do Norte poderão votar e ser votados, sem distinção de sexos, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas por esta lei”. No mês seguinte, a professora Júlia Alves Barbosa, da cidade de Natal, assim como a professora Celina Guimarães Viana, da cidade de Mossoró, encaminharam seus pedidos de alistamento eleitoral. Embora o requerimento da professora Júlia fosse anterior, dada a sua condição de solteira, o pedido de Celina Viana foi analisado e deferido com antecedência, e ela se tornou a primeira mulher habilitada a votar não somente no Brasil, mas também na América do Sul.

Mas, a comemoração durou pouco. As eleitoras compareceram as eleições de 5/04/1928, mas tiveram seus votos anulados pela Comissão de Poderes do Senado. O exercício do direito ao voto feminino se tornou possível através do Código Eleitoral Provisório de 24/2/1932, instituído na “Era Vargas” mediante o Decreto 21.076. Todavia, restavam contempladas restrições: somente era permitido votar, mulheres casadas com autorização do marido, sujeitas a uma capacidade civil relativa, e viúvas e solteiras com renda própria, o que limitava sobremodo esta conquista, vez que eram raras as mulheres solteiras economicamente emancipadas.

Somente com a Constituição de 1934, a mais breve que tivemos, é que as restrições ao pleno exercício do voto feminino foram enfim eliminadas, em que pese o mesmo não ser obrigatório, o que só veio a ocorrer em 1946.

Desse período em diante, ocorreram muitas mudanças. Tanto que, atualmente, a Constituição Cidadã de 1988 assegura a soberania popular, a qual nada mais é do que exercício da vontade geral, com o sufrágio universal e pelo voto direto, com valor igual para todos, facultado, inclusive, para os analfabetos e maiores de 16 anos. Desde a promulgação da Constituição de 1988, transcorreram-se 20 anos, e nesse período foram implementadas as mais significativas mudanças, mediante a instituição do Estado Democrático de Direito, voltado para os ideais de justiça, liberdade e igualdade.

Especificamente no tocante ao universo feminino, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher juntamente com os movimentos feministas e organizações de mulheres foram responsáveis pela introdução de importantes avanços no texto constitucional, no que diz respeito à ampliação da cidadania das mulheres. Nas inovações mais importantes, estabeleceu garantias aos direitos reprodutivos; a igualdade de direitos e responsabilidades na família; assegurou condições às presidiárias para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação; definiu como princípio básico do Estado brasileiro, a não discriminação por motivo de sexo, raça ou etnia e proibiu a discriminação da mulher no trabalho. Foi também assegurada a participação da mulher no processo de reforma agrária, bem como também a possibilidade de a mulher obter título de usucapião.

Com o passar dos anos e os esforços demandados, foram alcançados inúmeros avanços, bem como reconhecidas importantes conquistas em relação aos direitos femininos, mas a tarefa está longe de ser concluída. Os nossos pleitos, assim como a representação, são numerosos, mas, sub-representadas, perdemos força e encontramos entraves na aprovação de propostas como a descriminalização do aborto e de ampliação do espaço da mulher nas estruturas de poder. É necessário ir além do sistema de cotas previsto na Legislação Eleitoral, que estabeleceu a inscrição de, no mínimo, 30% de mulheres nas chapas proporcionais, é preciso estabelecer políticas de inclusão das mulheres no processo democrático.

Persistem fatores negativos que influenciam o entrave do desenvolvimento pleno das ações propostas na Conferência de Beijin, tais como a violência contra a mulher, a falta de oportunidade econômica e a injusta representação dos gêneros na tomada de decisões. Esses fatores foram denunciados por Kyung-wha Kang, à época do seu exercício na presidência da Comissão da Condição Jurídica e Social da Mulher da Organização das Nações Unidas (ONU). Nessa oportunidade, também foi destacado pelo então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, o surgimento de novos desafios no campo feminino, os quais demandam um sério planejamento para que possam ser enfrentados de forma efetiva: o crescimento da incidência de contaminação do HIV-AIDS entre mulheres e o alarmante aumento de casos de tráfico de mulheres e crianças, cuja atividade criminosa já alcança quatro milhões de vítimas ao ano, movimentando cerca de US$ 10 bilhões.

Infelizmente, a discriminação contra a mulher ainda é institucionalizada em vários países, dentre os quais muitos consideram legítima a sua execução por crimes de honra. No Brasil, em especial nas regiões Norte e Nordeste, cresce a exploração sexual de mulheres e crianças, reforçada através do apelo erótico divulgado pela mídia, que alimenta a imagem do turismo sexual.

São inúmeras, e de conhecimento geral, as situações de opressão contra a mulher. Mas parece que, quando esses acontecimentos não atingem diretamente o nosso cotidiano, é como se toda essa barbárie pertencesse a um mundo à parte, do qual estamos protegidos por quilômetros de distância.

Com tanta informação no mundo globalizado em que vivemos, é necessário disseminar estatísticas, realizar o acompanhamento de casos, para que possamos cobrar com afinco resultados das autoridades. O descaso caracteriza a omissão, e, mediante a omissão nos tornamos cúmplices no silêncio.

A divulgação e a denúncia são ferramentas importantes nesse processo e devem ser estimuladas. A humanidade deve se sentir realmente incomodada, de forma que seja compelida a voltar os olhos para a realidade, seja por questão de sobrevivência da espécie, seja por dignidade e respeito ao próximo. Mas, mesmo diante de tantas conquistas, as mulheres não devem esmorecer, porque o exercício da cidadania deve ser uma constante, e vai se transmudando de acordo com as necessidades temporais. É através da participação ativa da mulher na elaboração das leis e no cenário de políticas públicas que serão revertidos os resquícios da discriminação que ainda existe contra ela e assegurada a ampliação da garantia e da efetividade de seus direitos.

Ocupar com competência os espaços de poder é igualmente importante, para consolidar uma cultura de igualdade em que a identidade de gênero não seja fator para filtrar o acesso às oportunidades. Antes de sermos homens ou mulheres, somos pessoas e, como tal, dotadas de direitos à vida plena e, para tanto, temos de exercer com vigilância os atributos da cidadania, com a finalidade de construirmos uma sociedade justa, fraterna e solidária, na qual a condição feminina será não só respeitada, como também exaltada.

Existe uma máxima de que “por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher”. Mas, sabemos que essa premissa é falsa! Homens e mulheres seguem lado a lado, ao mesmo tempo. E é essa sintonia que nos permite a certeza de que somos capazes de abreviar o percurso e alcançar a tão desejada igualdade.

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