Índios em pauta

STF começa a julgar na quarta demarcação da Raposa Serra do Sol

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26 de agosto de 2008, 17h46

O Supremo Tribunal Federal começa, às 9h desta quarta-feira (28/8), a julgar a constitucionalidade da demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. A previsão é de que o julgamento dure dois dias. O ministro Carlos Britto, relator da Petição 3.388, definiu o caso como um dos mais complexos já relatados por ele. Seu voto tem 108 páginas.

Segundo o ministro, é a primeira vez que o Supremo se debruça detalhadamente sobre a questão indígena. A decisão não envolve apenas os 19 mil índios da Raposa Serra do Sol. Ela deverá servir de base para outros processos sobre as terras indígenas. Levantamento de O Estado de S.Paulo mostra que há 144 ações no Supremo envolvendo a demarcação de terras indígenas na Bahia, Pará, Paraíba, Distrito Federal e Rio Grande do Sul.

“Vamos decidir sobre Raposa Serra do Sol. Mas se decidirmos a partir de coordenadas constitucionais e objetivas, servirá de parâmetro para todo e qualquer processo de demarcação”, afirmou Britto. Uma das ações está há 26 anos no Supremo. Nela, a Fundação Nacional do Índio (Funai) pede a anulação de títulos de posse concedidos pelo governo da Bahia em áreas da reserva indígena Caramuru-Catarina Paraguaçu. A ação deve ser julgada na próxima semana.

A Raposa Serra do Sol é ocupada por indígenas e arrozeiros. A ação que deve ser analisada pede a anulação da portaria que fixou os limites da reserva. Outras 32 ações que questionam a demarcação da reserva também devem ser analisadas pelo STF.

Na segunda-feira (25/8), Britto já afirmava que o seu voto estava praticamente pronto. Apesar disso, ele recebeu em seu gabinete a visita dos dois grupos diretamente interessados: produtores rurais (principalmente rizicultores) e índios.

O ministro Marco Aurélio Mello afirmou também na segunda que, se a demarcação contínua da Raposa Serra do Sol for anulada, se abrirá precedentes para questionamentos sobre outras áreas. “Sem dúvida alguma, se o Supremo fixar que a demarcação deve ser setorizada por ilhas, evidentemente, isso se estenderá a todo o território nacional”, afirmou o ministro, durante o Encontro Nacional do Judiciário, em entrevista coletiva.

Para o ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo, todas as possibilidades estão abertas no julgamento sobre a reserva. “Tenho a impressão de que, independentemente do resultado, esse julgamento vai balizar critérios para a demarcação de terras de fronteira e a participação dos estados nesse processo. O julgamento vai ser rico nesse tipo de orientação”, afirmou em coletiva.

Tendência de Britto

Pelos posicionamentos anteriores, a tendência jurídica do relator, Carlos Britto, é manter a demarcação. No entanto, como o conflito foi agravado pela tensão política e social, ele pode mudar de posicionamento.

Nesta petição, o Supremo não decidirá se a demarcação da terra deve ser contínua ou em ilhas. Na questão de demarcação de terras indígenas, o Judiciário só pode se manifestar, segundo a Constituição, sobre a legalidade dos atos do Executivo. Se o decreto for declarado ilegal, o processo volta às mãos do Executivo e a Funai terá que apresentar novo estudo antropológico.

No começo de abril, o STF entendeu apenas que a operação da PF para retirar os seis arrozeiros da área só pode acontecer quando ficar entendido que o decreto presidencial é legítimo.

A posição de Carlos Britto sobre o decreto pode estar já desenhada no Mandado de Segurança 25.483, julgado pelo Plenário do STF no dia 4 de junho de 2007. Na oportunidade, os arrozeiros questionavam o processo de demarcação. O mérito da questão não foi debatido porque o Mandado de Segurança não é o instrumento jurídico correto para esse tipo de questão.

Em sua decisão, o ministro lembrou, porém, que cabe à União demarcar as terras ocupadas pelos índios conforme dispõe o artigo 231 da Constituição. “Donde competir ao presidente da República homologar tal demarcação administrativa”, anotou Britto.

Para o ministro, não é preciso a manifestação do Conselho de Defesa Nacional (CDN) para a demarcação de terras indígenas em áreas de fronteira. A necessidade de opinião do CDN é inclusive um dos argumentos da última ação ajuizada pelo governo de Roraima em maio. O CDN é o órgão de consulta da Presidência da República para assuntos de soberania nacional.

Fazendeiros, governo estadual e parlamentares do Estado também reclamam de erros legais do decreto, que não garantiu, por exemplo, o direito ao contraditório e da ampla defesa. Carlos Britto nega essa situação ao citar como fundamento o artigo 9º do Decreto 1.775/96, que regula o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas.

A norma concede um prazo de 90 dias desde o início do processo demarcatório para que estados, municípios e interessados manifestem-se à Funai sobre qualquer problema sobre a área ou para pedir indenizações.

Apesar da jurisprudência, não há certeza sobre a posição do ministro. “A gente não tem como prever como o Supremo irá decidir. Mas, sabemos que a demarcação aconteceu completamente dentro da legalidade. Discutiram-se todas as etapas administrativas”, afirma a advogada Ana Valéria Araújo, da ONG Fundo Brasil de Direitos Humanos.

Ana Valéria lembra que o caso ganhou grande proporção com uma série de atores dando opiniões. Por isso, o Supremo pode cair na tentação de fazer um julgamento político. Em uma das decisões sobre o caso, Carlos Britto chegou a comentar que “a própria história do país está em jogo. Não se trata de simples maniqueísmo. O Bem de um lado e o Mal de outro. Aqui, não é fácil separar o joio do trigo”.

Em outra oportunidade, o ministro disse que “diante de um quadro tão complexo, que envolve tantos interesses — particulares e públicos; tantas verdades e meias-verdades; tantas escaramuças e negaças; tanto emocionalismo, enfim, fica extremamente difícil extrair, neste primeiro exame, os requisitos autorizadores da liminar, aí incluída a aparência do bom direito”.

Tensão social

Qualquer que seja o resultado do Supremo, a expectativa é de que cresça a tensão social entre os índios e fazendeiros. O fazendeiro João Paulo Quartiero, que liderou a resistência à presença da Polícia Federal na região, em abril, disse que uma decisão favorável à reserva o deixará duplamente desempregado. “Vou perder a fazenda de arroz e o cargo de prefeito de Pacaraima”, explicou o arrozeiro.

A maior parte da população local defende a exclusão do território de Pacaraima da área da reserva. Na oportunidade, dez índios das etnias macuxi e ingarikó foram feridos a balas após tentativa de ocupação da fazenda Depósito, de Quartiero, que logo depois foi preso pela PF.

O macuxi Dionito José de Souza, coordenador do Conselho Indigenista de Roraima (CIR), teme também uma onda revanchista contra os índios da região caso o STF autorize as ilhas territoriais não indígenas. Ele disse que as famílias que já foram retiradas da área ameaçam voltar para os lugares que ocupavam anteriormente. “Pode acontecer um massacre por aqui”, afirma.

O governo começou a retirar as famílias não indígenas da área no ano passado. Segundo levantamento do Incra, na zona rural existiam 180 famílias — das quais 130 requeriam lotes de 100 a 500 hectares e as outras 50 reivindicavam parcelas de até 100 hectares. No total, seriam 33 mil hectares, distribuídos entre os municípios de Boa Vista, Bonfim e Amajari.

Em abril deste ano quase todas as famílias já tinham sido retiradas. Restava, porém, um foco de resistência: um grupo de seis grandes produtores de arroz, sob a liderança de Quartiero. Tropas da Força Nacional de Segurança e da Polícia Federal foram então despachadas para a região, mas acabaram enfrentando resistência. No processo de formação da reserva, povoados foram esvaziados — e logo em seguida ocupados por famílias indígenas.

Processo histórico

As terras indígenas ocupam 42% do estado. O terreno da Raposa Serra do Sol equivale a 7,7% de Roraima. O processo de demarcação da Raposa remonta aos anos 1970. A Funai somente deu seu parecer antropológico sobre a extensão do território em 1993.

O conceito de terra indígena é baseado em quatro elementos — área da aldeia, áreas usadas para atividades de subsistência, áreas para preservação do meio ambiente e área para reprodução física e cultural. Por isso, o conceito de terra indígena deve prever o crescimento da comunidade. O espaço deve ser suficiente para que a tribo sempre se mantenha como um grupo diferenciado.

Argumenta-se que a Raposa Terra do Sol é uma área grande demais para os 19 mil índios que moram lá. Roraima tem 224.299 km² e 391.317 habitantes, o que equivale a 0,57 km²/hab. Na terra indígena, a proporção é de 1,17 km²/hab, duas vezes mais que a média do Estado.

A questão entrou na pauta da Justiça em 1998, quando a área foi demarcada pelo presidente FHC. Na época, já estavam estabelecidos na reserva cerca de 60 fazendeiros.

Agricultores, pecuaristas e políticos do estado ajuizaram na Justiça Federal de Roraima uma série de ações judiciais para impedir o processo do Executivo para efetivar a reserva. A posição dos mandatários do estado fica bem demonstrada quando o então governador Ottomar Pinto, morto o ano passado, decretou luto oficial de sete dias em todo o estado em protesto ao reconhecimento da reserva.

Com o tempo, muitos fazendeiros foram desistindo e deixaram a reserva depois de receberem indenizações da Funai. Sobraram apenas seis rizicultores, que ocupam a área sul da reserva em um espaço que representa cerca de 1% do total das terras.

O assunto chegou ao Supremo em 2004. Na oportunidade, a ministra Ellen Gracie entendeu que a homologação contínua causaria graves conseqüências de ordem econômica, social, cultural e lesão à ordem jurídico-constitucional. Por isso, ela negou o pedido do Ministério Público Federal, que queria suspender a decisão da Justiça Federal no estado permitindo a permanência dos arrozeiros.

Com a homologação da reserva m 2005, pelo presidente Lula, o assunto passou para a competência do Supremo. A partir de 29 de junho de 2006, o Plenário do STF reconheceu que a questão é de sua alçada. As contestações dos agricultores vêm sendo liminarmente negadas pelos ministros desde então.

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