Palavras indigestas

Joaquim Barbosa causa mal-estar no STF com entrevista

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25 de agosto de 2008, 14h52

A fórmula do ministro Joaquim Barbosa em usar a condição de negro para justificar desentendimentos com colegas do Supremo Tribunal Federal fez lembrar a história de um judeu gago. Esse judeu foi fazer uma prova para ser radialista e, depois de ser reprovado, atribuiu a negativa ao anti-semitismo. A analogia foi feita pelo secretário do Conselho Federal da OAB, Alberto Zacharias Toron, ao comentar a entrevista concedida pelo ministro Joaquim Barbosa à Folha de S.Paulo, nesta segunda-feira (25/8).

Para Toron, o ministro misturou vários assuntos de maneira oportunista. Joaquim Barbosa disse ao jornalista Frederico Vasconcellos que se enganaram os que pensavam que o Supremo iria ter um negro submisso e subserviente, quando questionado sobre as brigas com os colegas Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Eros Grau.

A entrevista causou incômodo no Supremo. Um ministro conta que os episódios narrados por JB não se deram como ele descreveu. Por isso, a entrevista aumentou o fosso entre ele e os colegas que, em geral, consideraram as declarações populistas e demagógicas.

Joaquim Barbosa atacou com vigor seus colegas e se disse incomodado com “certas elites”, ou seja, alguns advogados, que monopolizariam a agenda do Supremo com pedidos como o de preferência no julgamento de seus processos.

“Nós temos na Justiça brasileira o sistema de preferência, tido como a coisa mais natural do mundo. O advogado pede audiência, chega aqui e pede uma preferência para julgar o caso dele. O que é essa preferência? Na maioria dos casos, é passar o caso dele na frente de outros que deram entrada no tribunal há mais tempo. Se o juiz não estiver atento a isso, só julgará casos de interesse de certas elites, sim. Quem é recebido nos tribunais pelos juízes são os representantes das classes mais bem situadas”, disse Joaquim Barbosa ao jornal. Na verdade, o pedido de prioridade só é feito quando se demonstra prejuízo real na demora, como no caso de uma criança que morreu antes que o STF julgasse o caso.

O advogado Ives Gandra Martins disse à revista ConJur que as palavras do ministro transparecem mais desejo do que crítica. Para ele, Joaquim Barbosa gostaria que a Justiça fosse mais célere e que todos os advogados, não só aqueles que têm condições, pudessem ter uma atuação mais freqüente no STF. “A entrevista foi de um homem autêntico e que assume uma postura de intelectual que é”, considerou Ives Gandra.

Fama de encrenqueiro

Joaquim Barbosa afirmou que todos os seus desentendimentos com colegas foram por causa da defesa que faz dos princípios caros à sociedade como o combate à corrupção no Judiciário. Essa afirmação espantou seus colegas, pelo antagonismo sugerido pelo ministro. JB afirmou ainda que sem a briga que teve com o ministro Marco Aurélio, o caso Anaconda não teria condenação e cumprimento de penas pelos réus. Na verdade, o motivo do desentendimento foi outro.

No conflito com Marco Aurélio, o caso envolvia um pedido de Habeas Corpus (caso Anaconda), distribuído no início da noite de uma sexta-feira. Joaquim Barbosa era o relator e Sepúlveda Pertence o decano. Os dois gabinetes informaram que seus titulares haviam viajado. Ao receber o recurso, Marco Aurélio pediu à Secretaria do Supremo que certificasse a ausência dos colegas a quem caberia a distribuição, por preferência. Os funcionários dos respectivos gabinetes atestaram, por escrito, que os ministros não estavam em Brasília.

Na semana seguinte, Joaquim Barbosa atacou o colega afirmando que estava sim em Brasília. Ele acusou Marco Aurélio de fraude na distribuição de processos ao agir desta forma. Marco Aurélio representou contra JB à Presidência da Corte. Os servidores do tribunal deram razão a Marco Aurélio. Mas Nelson Jobim, então na direção da Casa, decidiu colocar panos quentes no caso, declarando apenas que não houvera irregularidade na distribuição.

Já com Eros Grau, a troca de ofensas aconteceu recentemente. Os ministros se estranharam depois de Eros Grau libertar Humberto Braz, braço direito do banqueiro Daniel Dantas. “Como é que você solta um cidadão que apareceu no Jornal Nacional oferecendo suborno?”, perguntou JB.

Eros Grau respondeu que não havia julgado a ação penal, mas se havia fundamento para manter prisão preventiva. Joaquim Barbosa retrucou dizendo que “a decisão foi contra o povo brasileiro”. Em outro round, depois que Joaquim Barbosa deu Habeas Corpus para garantir a Daniel Dantas o direito de não se auto-incriminar em uma Comissão Parlamentar de Inquérito, Eros Grau, em tom de gozação, comentou que esse HC repercutira mais que o dele. JB enfureceu-se e chamou o colega de velho caquético.

Com Gilmar Mendes, a discussão aconteceu num julgamento de uma lei mineira, considerada inconstitucional pelo Supremo. O pleno declarara inconstitucional a lei de aposentadoria mineira que existia há quase 20 anos. Como muitos beneficiados haviam morrido ou já estavam aposentados, Gilmar propôs a modulação dos efeitos da inconstitucionalidade. JB não entendeu e partiu para o confronto.


Ele reclamou que não foi consultado sobre a questão de ordem e afirmou que não concordava com a proposta feita por Gilmar Mendes. “Ministro Gilmar, me perdoe a palavra, mas isso é jeitinho. Nós temos que acabar com isso”, disse Joaquim Barbosa. Gilmar Mendes retrucou: “Eu não vou responder a vossa excelência. Vossa excelência não pode pensar que pode dar lição de moral aqui”.

Durante a entrevista à Folha, Joaquim Barbosa também falou do processo do mensalão (no qual foi relator), foro privilegiado, crimes de colarinho branco e negou que seja encrenqueiro.

Leia a entrevista publicada pela Folha de S.Paulo

A mídia o aponta como o ministro que mais se desentende com os colegas. O senhor é uma pessoa de temperamento difícil?

Joaquim Barbosa — Engano pensar que sou uma pessoa que tem dificuldade de relacionamento, uma pessoa difícil. Eu sou uma pessoa altiva, independente e que diz tudo que quer. Se enganaram os que pensavam que, com a minha chegada ao Supremo Tribunal Federal, a Corte iria ter um negro submisso. Isso eu não sou e nunca fui desde a mais tenra idade. E tenho certeza de que é isso que desagrada a tanta gente. No Brasil, o que as pessoas esperam de um negro é exatamente esse comportamento subserviente, submisso. Isso eu combato com todas as armas.

Gilmar Mendes chegou a dizer que o senhor “tem complexo”. A ministra Carmen Lúcia insinuou que haveria um “salto social”, com sua evidência no caso do mensalão. Como o senhor recebe esses comentários?

JB — A imprensa se esquece de dizer quais foram as razões pelas quais eu tive certos desentendimentos. Quase sempre foram desentendimentos nos quais eu estava defendendo princípios caros à sociedade brasileira, como o combate à corrupção no próprio Poder Judiciário. Sem aquela briga com o ministro Marco Aurélio, o caso Anaconda não teria condenação e cumprimento de penas pelos réus.

No julgamento de uma ação da Anaconda houve o comentário de que o senhor teria “complexo”…

JB — Achei apropriado naquele momento dar uma resposta dura. Falaram que eu sou encrenqueiro. Eu tenho amigos espalhados pelo Brasil e pelo mundo inteiro. São pessoas decentes. E eu não costumo silenciar quando presencio algo de errado, ainda que no âmbito do tribunal ao qual eu pertenço.

O senhor se sente isolado no Supremo?

JB — Nem um pouco. Eu tenho meu leque de amizades, que são pessoas que têm afinidades comigo, com aquilo que eu gosto, que não necessariamente coincide com o gosto da maioria do tribunal. Mas tenho boa relação com ministros.

Uma crítica recorrente é que o Supremo favorece as elites. Como o senhor vê essa observação?

JB — Eu ainda não amadureci a minha reflexão sobre isso. Mas há uma coisa que me perturba, que me deixa desconfortável aqui no tribunal e na Justiça brasileira como um todo. É o fato de que certas elites, certas categorias monopolizam, sim, a agenda dos tribunais. Isso não quer dizer que eu esteja de acordo com a frase de que o tribunal favorece as elites. Monopolizam a agenda.

Como isso ocorre?

JB — Nós temos na Justiça brasileira o sistema de preferência, tido como a coisa mais natural do mundo. O advogado pede audiência, chega aqui e pede uma preferência para julgar o caso dele. O que é essa preferência? Na maioria dos casos, é passar o caso dele na frente de outros que deram entrada no tribunal há mais tempo. Se o juiz não estiver atento a isso, só julgará casos de interesse de certas elites, sim. Quem é recebido nos tribunais pelos juízes são os representantes das classes mais bem situadas.

Eu não posso avalizar inteiramente essa frase [de que o Supremo favorece as elites], mas acho que um país em que a Justiça está completamente abarrotada tem que ter atenção muito grande para esse perigo de que a agenda dos tribunais seja monopolizada por certos segmentos sociais. Basta prestar a atenção, durante cada ano, no tempo que o STF gasta julgando questões de interesse corporativo. É enorme.

O senhor costuma receber advogados em seu gabinete?

JB — Recebo, mas nenhum advogado, por mais importante que ele seja, monopoliza o meu gabinete [o ministro informa que concedeu 244 audiências, em 2006 e 2007].

Sua decisão de quebrar o sigilo do inquérito do mensalão contribuiu para a abertura do Supremo à sociedade. Quais os aspectos positivos e negativos dessa exposição?

JB — Eu acho que o lado bom é o pedagógico. Aproxima o tribunal da sociedade. Quebra com uma tradição tipicamente brasileira, ainda forte, de o juiz estar distante do cidadão. O tribunal entra nos lares dos brasileiros. As questões importantes da cidadania são debatidas, são absorvidas pelo cidadão. Acho isso muito positivo. O lado negativo disso é que essa superexposição traz uma carga de pressão muito grande em cima do tribunal. Essa hiper-exposição atrai cada vez mais demandas para o Supremo. Uma tendência natural de outros poderes e de segmentos da sociedade é pensar que tudo pode ser resolvido no Supremo. Não é tão fácil assim vir até o Supremo, e é extremamente caro.


Diante das decisões recentes do tribunal, alguns juízes dizem que o Supremo está se distanciando da sociedade, do mundo real.

JB — Teoricamente, acho que isso possa existir. Não quero falar sobre decisões. Em tese, o juiz não pode se desgrudar da sociedade. Ele não pode desprezar os valores mais caros da sociedade na qual opera. Seria suprema arrogância -e isso eu noto em alguns juízes brasileiros- achar que não interessa o que a sociedade pensa sobre determinadas decisões. O juiz é fruto do seu meio. Seria o supra-sumo da arrogância entender que o juiz poderia ter uma escala de valores que não leve em conta o sentimento da sociedade sobre questões que lhe são trazidas para decidir. Em um sistema judiciário que não leva em consideração o sentimento da sociedade sobre determinadas questões, a tendência é ele perder credibilidade e se transformar em monstrengo inútil, do ponto de vista institucional, a médio ou longo prazo.

O Supremo carece de especialistas em Direito Penal?

JB — Eu discordo. O Supremo não precisa de especialistas em Direito Penal. É verdade que na atual composição não há especialistas em Direito Penal. Mas uma pessoa com uma boa formação em Direito Público, com uma boa formação humanística, uma boa visão de mundo, que não seja paroquial, é isso que se espera do membro de uma Corte Suprema e não uma especialização exacerbada nesta ou naquela matéria. O que se espera é, sobretudo, prudência. Uma clara visão da sociedade.

Quantos membros do Supremo já interrogaram réus?

JB — Isso é irrelevante. Eu presido quatro grandes processos criminais, jamais vistos na história do tribunal. Eu não vou interrogar ninguém. Eu delego. Eu não preciso interrogar. A lei me dá esse poder. Não é uma corte para resolver questões pontuais. É um tribunal que julga casos com profunda repercussão na sociedade. Aqui não se cuida do varejo. Já interroguei réus. Fui procurador da República por 19 anos. Minha especialização é Direito Público, mas isso é bobagem, não tem a menor relevância.

Em que medida o foro privilegiado dificulta uma avaliação mais precisa do Supremo?

JB — Eu acho o foro privilegiado nefasto. O foro privilegiado e outras medidas são processos de racionalização da impunidade. Já disse e repito.

O Supremo é mais rigoroso para receber denúncias de crimes de colarinho branco?

JB — O Supremo é bem mais rigoroso em matéria penal em geral. O tribunal tem a tradição de mais rigor, nesses últimos anos. Vejamos o caso do mensalão. Com a importância do STF, com o número de causas e problemas seríssimos que tem para resolver, é racional que o tribunal gaste cinco dias inteiros só para julgar o recebimento de uma denúncia? Com todas as dificuldades que o Brasil inteiro assistiu ao vivo? O recebimento de uma denúncia como aquela, no primeiro grau, seria um despacho de duas páginas.

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