Bravura histórica

Invasão da PUC: estudantes foram heróis, e não ingênuos

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30 de setembro de 2007, 10h27

O ano de 1977 foi marcado por episódios determinantes para a restauração da democracia no país. Em 8 de agosto, foi lida no pátio da faculdade de Direito da USP a célebre “Carta aos Brasileiros”, de autoria do professor Goffredo da Silva Telles Júnior. Na noite de 22 de setembro, soldados da Polícia Militar do estado de São Paulo, comandados pelo então secretário de Segurança Pública, coronel Erasmo Dias, invadiram a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, situada na rua Monte Alegre, bairro de Perdizes, e prenderam os alunos que ali estavam reunidos, provenientes de várias faculdades. O motivo alegado era a desobediência dos estudantes, que teimavam em recriar sua entidade nacional, a UNE, que fora banida por determinação da ditadura militar que imperava no país.

A invasão foi um ato de selvageria, de truculência, de arbitrariedade que só poderia ter sido concebido pela mente obscura e doentia dos opressores de plantão. Os soldados entraram batendo e gritando ofensas de todo calão, lançando bombas sabe-se lá de que efeitos, mas o fato é que muitas pessoas passaram mal, desmaiaram e pelo menos duas alunas da universidade foram gravemente queimadas.

É evidente que os estudantes estavam desarmados. É evidente, também, que a manifestação de insubordinação diante da proibição de se reunir era perfeitamente justificada.

É próprio da juventude desafiar certas normas. É natural e saudável que assim o seja, ou o mundo continuaria sempre igual, não progredindo jamais. É papel da mocidade promover a renovação, e os estudantes da época queriam se livrar da ditadura tenebrosa que engessava o ensino, punia a participação política e queria limitar o saber .

A reunião estudantil da noite de 22 de setembro de 30 anos atrás tinha como objetivo recuperar os ideais de melhores condições de vida para a população, propondo a restauração das liberdades democráticas e a instauração do estado de direito. Nada mais legítimo.

No entanto, a ação policial de invadir uma escola por razões políticas(!), desrespeitando qualquer parâmetro de civilidade, não pode ser esquecida, para que não mais se repita.

Em declarações para a imprensa, no último dia 22, o coronel Erasmo Dias, ao se defender, declarou que “tinha muita mulher lá e mulher não tem jeito para correr, tem perna presa”. Com essa frase, o coronel demonstra, mais uma vez, sua visão distorcida sobre os fatos da vida. Primeiramente, porque evidencia um preconceito inadmissível contra a população feminina. Segundo, porque ele estranhou a presença de mulheres no local, fato corriqueiro nas universidades já naquela época; só ele desconhecia essa circunstância. Terceiro, porque mulher não tem “perna presa” coisa nenhuma e qualquer pessoa, mulher ou homem, que for atingida por bomba atirada pela polícia vai se queimar, correndo ou parada.

Passados tantos anos, a única conclusão sensata a que o coronel deveria ter chegado é que a operação foi um desastre. Sacrificou pessoas inocentes que estavam pacificamente reunidas, causando-lhes seqüelas indeléveis tanto físicas quanto psicológicas, e colaborou para enfraquecer a ditadura. É certo que o coronel Erasmo não foi o único responsável pela ação repressora. Foi do governador do estado à época, Paulo Egydio Martins, que partiu a ordem.

E que não se minta sobre o comportamento dos estudantes. Eles não deram causa à brutalidade. Não tentaram agredir os policiais com atos ou palavras. Ao perceberem a entrada da tropa de choque no campus, os grupos estudantis não reagiram. Correram para dentro do prédio, subindo escadas e rampas, procurando abrigo nas salas de aula até alcançarem o último andar, onde foram encurralados e presos. Não sem antes sofrerem espancamento indiscriminado com cassetetes e serem intoxicados com quantidades absurdas de gás lacrimogêneo. Posso descrever muito bem o que aconteceu porque eu lá estava, com meu irmão e minha irmã. Éramos, os três, alunos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco e havia outros colegas conosco, que hoje são juízes, advogados, promotores de Justiça. Fomos todos levados a um estacionamento próximo, onde se fez uma triagem. Os alunos da PUC foram liberados e os da USP seguiram, de ônibus, para o quartel da polícia militar. Alguns professores também foram presos.

Meus pais ficaram em desespero, sem notícias dos filhos, durante toda a madrugada em que os estudantes, mesmo confinados, continuavam a ser submetidos a emanações de gás lacrimogêneo. Nunca fui omissa, nunca me senti diminuída por ser mulher. Ainda que consciente dos riscos que corria, achei que me arrependeria se não comparecesse àquele ato de repúdio à ditadura. Hoje me orgulho da decisão que tomei.

Além disso, lembro-me bem de que poucos de nós acreditavam que a polícia invadiria as dependências da universidade. Algum tempo antes, houve um episódio semelhante na faculdade do Largo São Francisco. Os alunos reviveram a “tomada” das Arcadas em protesto contra a ditadura e a polícia correu ao local para reprimir o ato. Só que não conseguiu entrar. Quebraram os vidros e atiraram bombas de gás lacrimogêneo para dentro, mas o diretor Pinto Antunes não permitiu que arrombassem as portas do prédio. No entanto, na invasão da PUC, a repressão não respeitou ninguém.

Depois do fato, o que resta dele é a sua versão. Da avaliação do ocorrido, ficou claro que os estudantes não sofreram essa violência em vão. A invasão da PUC abalou irremediavelmente os alicerces, já desgastados, do regime de opressão política. Os estudantes não foram ingênuos, foram heróis.

Que não se perca a dimensão histórica desse ato de bravura coletiva.

Autores

  • Brave

    é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer — o caso Euclides da Cunha”, ambos da editora Saraiva. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no governo FHC.

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