Ação transdisciplinar

O Direito é o permanente movimento em busca da Justiça

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29 de setembro de 2007, 0h00

O conhecimento adquirido pelo homem na segunda metade do Século XX é maior do que a soma do conhecimento ao longo da sua história, desde o momento em que iniciou o processo de comunicação, através da linguagem articulada. É a partir da segunda metade do Século XX que o homem ousa transpor os limites da esfera da Terra: desembarca na Lua e traz, no retorno, amostras do solo e pequenas pedras para análise; envia naves exploratórias à Marte, mapeia a superfície daquele planeta, analisa o solo, as rochas, os vulcões, busca evidências de água e de vida orgânica; faz artefatos extremamente sofisticados e os laça ao espaço sideral: alguns deixam a força de atração do Sistema Solar e buscam outros sistemas e sinais de vida inteligente.

O homem, diante do novo, desafia limites; em constante feedback, percebe que limite significa abertura para o novo, para o conhecimento, o conhecimento da complexidade, da unidade — a parte que se integra ao todo; Complexidade que revela o existente — o revelado, o em trânsito e o em repouso; conhecimento que leva ao caminhar construtivo, que só se consegue pela ação transdisciplinar na sociedade humana.

A mentalidade estruturada até o medievo

A Filosofia Grega possibilitou o impulso inicial do conhecimento racional, da reflexão construtiva e adaptou-se, em parte, ao Cristianismo assumido pelo Império Romano. Com a queda do Império Romano, após longo período de trevas — quase de quatro séculos —, a filosofia retorna no Império Carolíngio, na Escolástica.

Na Escolástica, o conhecimento vem das Oficinas do Saber, com o estudo do trivium (Gramática, Dialética e Retórica) e do quadrivium (Aritmética, Música, Geometria e Astronomia).

No Medievo, o homem é uma entidade dual: corpo e espírito. A mentalidade se ampara em valores místicos, numa sociedade triangular, estática, que mantém, no ápice da pirâmide, por vontade divina, o Clero, no meio da pirâmide, a nobreza rural e, na base, a plebe, que sustenta os privilégios do clero e da nobreza.

A moldura cosmológica da sociedade medieval consiste num Universo pronto e acabado, imutável: a Terra é o centro do Universo (geocentrismo). As verdades reveladas são imutáveis e se sustentam pela fé, que prevalece sobre a razão.

Essa moldura começa a ruir com Copérnico que, em 1543, ano de sua morte, publica o livro De revolutionibus orbium coelestium (“Da revolução de esferas celestes”). Nesse livro, formula a teoria de que a Terra gira em torno do Sol. A Terra é apenas um dos planetas do Sistema Solar, tese que contraria a verdade aristotélica e tem o veto da Igreja.

Em 1609, Galileu Galilei, dá continuidade à teoria de Copérnico. Após a leitura e reflexão de um texto que descreve um instrumento holandês, que possibilita enxergar coisas e objetos distantes, como se estivessem próximos, consegue, pela perseverança, fabricar uma espécie de luneta, que lhe permite observar os corpos celestes e perceber que a Terra e os demais planetas mantêm relação de dependência com o Sol.

Galileu percebe que a Teoria Geocêntrica é equivocada, mas é obrigado a negar a verdade de sua descoberta, para preservar a integridade física. Nega perante o Clero, ele que também é membro do Clero, a descoberta já não lhe pertence, pertence à humanidade.

A fé não pode prevalecer sobre a razão por muito tempo. A mentalidade dominante opõe forte resistência; faz uso do terror: capacitores do novo são presos, torturados, sacrificados nas fogueiras da Inquisição, mas nada consegue impedir o processo de mudança, que está maduro. O conhecimento racional se impõe diante da fé e dos princípios dogmáticos.

O Cartesianismo

No Século XVII, surge René Descartes, que formula uma teoria racional, teoria onde o conhecimento é simbolicamente representado pela figura de uma árvore – a árvore do conhecimento. Nela, a metafísica é representada pelas raízes, a física pelo tronco e as ciências (medicina, mecânica, moral) pelos galhos. Descartes sistematiza sua teoria no “Discurso do Método”; diz que, para se conhecer o todo, basta conhecer as suas partes, reduzi-las o máximo possível para estudo e observação.

Com Descartes, a visão binária do homem (corpo e espírito) é superada pela visão ternária (corpo, mente e espírito) e tem, como conseqüência principal, o desabrochar da visão mecanicista, separativista e cientificista. Com o separativismo mecanicista, a existência é reduzida à dimensão física.

A visão cartesiana, mecanicista, separatista, prevalece ainda nos dias atuais. Não há dúvida de que ampliou a dimensão do conhecimento, as conquistas são inegáveis, mas está minada, superada e biodegradada, porque se apóia numa visão tecno-econômica, compartimentada, incapaz de incorporar o que extrapola os limites do fragmento.

O mecanicismo exclui e marginaliza; leva ao entendimento de que a natureza existe para servir ao homem. Com esse entendimento, com esse salvo conduto, o homem polui, destrói e prioriza o econômico em detrimento da vida; a exploração em detrimento da solidariedade; o individualismo ao invés do coletivismo.

A superação do paradigma mecanicista

No Século XX, nos anos cinqüenta, a Universidade faz abordagens multidisciplinares e interdisciplinares, abordagens que, mesmo diante do inequívoco progresso para a humanidade, estão superadas pelo advento da Teoria Quântica, formulada por Max Planck, pela Teoria Especial da Relatividade e Teoria Geral da Relatividade, de Albert Einstein, e pelo Princípio da Incerteza, formulado por Werner Heisenberg, teorias que extrapolam o universo geral da física newtoniana e se revelam necessárias no campo das ciências humanas e sociais, como a medicina, a economia, a sociologia e o Direito, enfim, em todos os ramos da atividade humana.

O vocábulo transdisciplinaridade 1surge em 1970 com, Jean Piaget, num encontro de educadores, que buscavam encontrar soluções que permitissem ampliar o conhecimento além da interdisciplinaridade e da multidisciplinaridade e, assim, romper as amarras do mecanicismo.

No campo da educação, não extrapolam os limites da interdisciplinaridade e da multidisciplinaridade, por falta de uma dialógica interativa, capaz produzir o salto para o trans, rumo à complexidade reveladora de um universo integrado, universo que se auto-transforma, revelador da harmonia do movimento cósmico.

A transdisciplinaridade se estrutura na complexidade, na lógica do terceiro incluído e nos diferentes níveis de realidade; reconhece o progresso trazido pelo pensamento mecanicista; aponta seus defeitos e a crise que provoca. Portanto, não exclui a análise mecanicista, mas revela um segundo olhar que amplia os horizontes do conhecimento, amplia além do que está aprisionado na moldura separatista.

A transdisciplinaridade transcende às disciplinas, permite harmonizar todos os lados da questão; amplia a visão de mundo; integra e não separa; está, ao mesmo tempo, entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de todas as disciplinas; é ação que faz a revisitação da verdade. Ao revisitar a verdade, o indivíduo enriquece o conhecimento, amplia os horizontes, transcende e faz alteralidade.

Na ação transdisciplinar o agente atua no sentido integrativo da parte com o todo e com a totalidade, verticaliza o sentido de pertencimento ao Universo.

A lógica do raciocínio transdisciplinar difere da lógica clássica, não é binária; é difusa.

A lógica clássica se fundamenta em três princípios:

— O da identidade: A é igual a A;

— O da não-contradição, A não é não- A; e,

— O do terceiro excluído; não existe um terceiro elemento T que possa ao mesmo tempo ser (ou estar em) A e não-A.

Os fundamentos da lógica transdisciplinar são de natureza difusa, não binária. O fundamento físico vem da física quântica e o matemático dos conjuntos difusos.

Na lógica transdisciplinar, a premissa de existência de elemento num determinado lugar, ou num determinado conjunto, não significa, como na clássica, que esse elemento não possa estar ao mesmo tempo em outro lugar ou noutro conjunto.

A lógica clássica evita a contradição de um objeto ser e não ser, estar e não estar ao mesmo tempo em espaços diferentes, ao passo que a lógica difusa não aceita essa premissa, mas não a contraria; é interbinária, surge entre A e não-A; é interdimensional e não exclui o terceiro.

A ação transdisciplinar é capaz de gerar permanentes transformações, que, para serem compreendidas e aproveitadas em benefício da sociedade humana, exigem que os indivíduos que compõem a sociedade, pelo menos os capacitores, os estudiosos, se capacitem, num processo de educação permanente, de permanente feedback, a superar a dimensão da lógica clássica, aristotélica-cartesiana-newtoniana, e, conseqüentemente, a transitar no universo da complexidade, e, pela reflexividade, a alcançar o método exlético 2 de educação do pensamento, que traz implícitos a lógica da transdisciplinaridade, o princípio terceiro incluído e o universo da complexidade.

A visão transdisciplinar é ativa e aberta, da natureza e do ser humano; permite que se entenda, de modo integrado, o homem e as demais espécies que compõem a diversidade da vida na Terra. Conseqüentemente, traz o sentido de pertencimento, que faz preservar e não destruir. Pela ação transdisciplinar, o homem extrapola o individualismo, supera o conhecimento fragmentado e interage com as mais diversas disciplinas; transita no Universo da complexidade, assimila a lógica do terceiro incluído e se capacita a perceber diversos níveis de realidade.

A ação transdisciplinar é transformadora; permite uma dialógica construtiva com todas as disciplinas do conhecimento, por ser integrativa. Conseqüentemente, contribui efetivamente para estruturar as mudanças necessárias na sociedade: nova visão de mundo, novas formas sociais, econômicas e organizacionais.

Na ação transdisciplinar, a tríade metafísica, epistemologia e poesia é co-participante da dinâmica de estruturação do conhecimento da complexidade, conhecimento que permite o trânsito enriquecedor entre o real e o imaginário e leva à resolução de problemas de integração das percepções desses dois níveis.

Estado Legal e Estado Constitucional — Transdisciplinaridade No Direito

O direito resiste à mudança; resiste no fragmento, porque a mudança incomoda. A mudança exige permanente autoatualização e não se faz autoatualização. Conseqüentemente não se produz o novo. Não se faz, a rigor, nem mesmo hermenêutica e, conseqüentemente, não se faz ciência, nem filosofia. Na pseudo hermenêutica, altera-se o sentido da norma, dá-se a interpretação que o grupo dominante deseja. Se preciso, faz-se uma lei. Se essa lei é contrária à Lei maior, interpreta-se-a como coerente e harmônica com a Lei maior. Institui-se o Estado Legal em detrimento do Estado Constitucional.

O Estado legal pode fazer o que quiser, até mesmo atentar contra a vida. Basta a lei. A Constituição protege a vida? Faça-se uma lei casuística contra a vida e o Estado Legal vai nomear juízes que a façam prevalecer, mesmo contra a Constituição, basta ser legal. A Alemanha de Hitler entendeu que matar judeus era legal. Temos convivido muito com o Estado Legal. Se houvesse hermenêutica, o Estado Constitucional teria prevalência sobre o Estado Legal instituído3. O efetivo Estado Constitucional se alcança pela ação transdisciplinar.

O Direito é datado, espera o fato acontecer e o enquadra. Assim tem que ser, mas a interpretação deve ser flexível, evolutiva para fazer reinar harmonia do direito com a Justiça.

Os fatos de hoje são ocorrências renovadas de fatos pretéritos. Hoje, por exemplo, temos acidentes de automóveis; ontem tínhamos acidentes de carroças, de tílburis, de bondes puxados a burros. São fatos que se renovam, são instrumentos que se modernizam na lei de falibilidade humana. Artefatos humanos são sempre falíveis, vinculados à lei de falibilidade humana, a gerar conseqüências jurídicas amparadas no direito.

A parceria do direito com a justiça não comporta separabilidade; constitui uma unidade, unidade que o formalismo separa. A separabilidade justiça-direito só é possível no fractal, onde na parte se vê o todo. No entanto, a mente cartesiana aprisiona o direito ao mundo das formas, ao rigor formal, e provoca o divórcio com a Justiça, impede que se faça o trans, que se alcance a complexidade e, conseqüentemente, que se faça justiça.

O rigor formal leva à pompa, pompa que impede o acesso à justiça, institui pré-requisitos, autenticações cartoriais, pegadinhas e o faz de conta, Vence o mais esperto. A justiça não interessa.

É preciso romper o imobilismo. O Direito é dinâmico; evolui. O Direito é permanente movimento em busca da justiça, que só se alcança pelo trans. E só se faz o trans pela transdisciplinaridade, que leva à complexidade4. No exame do dano moral, por exemplo, pela transdisciplinaridadade, o julgador vai levar em conta o projeto de vida do indivíduo prejudicado e amoldar esse projeto de vida ao possível alcançável, para fazer justiça. Todo ser humano tem um projeto de vida, um projeto singular, cuja dimensão só se alcança pela transdisciplinaridade.

Conclusão

É necessário um novo tipo de educação, que priorize o aprender a conhecer, o aprender a fazer, portanto, o efetivo aprender, como recomenda o artigo 8º da Carta da Transdisciplinaridade 5.

O aprendizado se faz pelo conhecimento e não pela destruição. Se assim se fizer, o projeto de desenvolvimento da sociedade humana fará o necessário status fundante de sustentabilidade, porque se ampara lógica da transdisciplinaridade, na interdependência complexa dos indivíduos, instituições e comunidades e o fazer solidário.

Com isso, a utopia se torna realidade concreta, porque ocorre a biodegradação da sociedade estruturada na primazia do lucro. Em seu lugar, surge a sociedade de conhecimento, que prioriza a dialógica da parte com o todo e com a totalidade; interage, humaniza e torna o mundo melhor.

O homem, peregrino na caminhada terrena, pragmatiza o projeto racional de construção de uma sociedade justa, fraterna, solidária.

Notas de rodapé

1) WEILL, P. et al. “Rumo à nova Transdisciplinaridade”, pág. 30, ed. Summus Editoria, São Paulo, 1993).

A rigor a paternidade da palavra transdisciplinaridade não é só de Piaget. De 7 a 12 de setembro de 1970, ocorreu em Nice, na França o “I Seminário Internacional sobre Pluri e Interdisciplinaridade”. Esse Seminário é o marco do termo transdisciplinaridade. Segundo Nicolescu, nesse seminário, além de Piaget, também Erich Jantsch e André Lichnerowic, mas é Piaget quem faz a proposta de se assumir o termo e o que ele representa, como informam ALVARENGA, A.T. et al no artigo “Congressos Internacionais sobre Transdisciplinaridade: Reflexões sobre emergências e convergências de idéias e ideais na direção de uma nova ciência moderna”, disponível em:

http://apsp.org.br/saudesociedade/XIV_3/artigo%201_revista%2014.3.pdf

Embora o tema viesse sendo objeto de estudos desde a década de 70, o primeiro documento internacional a fazer referência explícita à Transdisciplinaridade é a Declaração de Veneza, num encontro organizado pela Unesco, em 1986: “A Ciência Diante das Fronteiras do Conhecimento”. Depois, em 1991 é realizado em Paris o primeiro congresso sobre Transdisciplinaridade: “Ciência e Tradição: Perspectivas Transdisciplinares para o Século XXI”, organizado pela UNESCO e em 1994 é realizado em Portugal, no Convento de da Arrábida, o I Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, onde a Comissão de Redação formada por Lima de Freitas, Edgar Morin e Besarab Nicolescu redigiu a Carta da Transdisciplinaridade,com 14 artigos, divulgada em 6 de novembro de 1994, Ainda em 1994, em Paris, Nicolescu publica “La Transdisciplinarité – Manifest”, traduzido para o Português e lançado no Brasil com o título “O Manifesto da Transdisciplinaridade”, traduzido por Lúcia Pereira de Souza, pela Editora Triom, em 1999.

No Brasil, o Projeto “A Evolução Transdisciplinar na Educação” do Centro de Educação Transdisciplinar (CETRANS), na Universidade de São Paulo, tem realizado bons encontros e seminários com educadores para a compreensão da complexidade e da ação transdisciplinar. www.cetrans.futuro.usp.br

2) “A exlética, como método de pensamento crítico, ensina o homem a buscar a verdade em toda a extensão do seu alcance possível. Portanto, o produto é extremamente representativo, pois resulta de pesquisas em toda a diversidade que se lhe apresenta” CRUZ, M. R. “Cadernos de Psicofonias de 1999”. p.140. Ed. SBEE. Curitiba/2000. Ver também MARTINS, Nadia Bevilaqua. Resolução Alternativa do Conflito – Complexidade, Caos e Pedagogia: o Contemporâneo Continuum do Direito”. p. 59-186. Ed. Juruá. Curitiba/2006.

3) CRUZ, M.R. Aula de 03/08/2007 no NEP (Núcleo de Ensino e Pesquisa), em Curitiba.

4) No Brasil, ainda há pouca coisa sobre a pesquisa da transdisciplinaridade aplicada ao direito, mas já surgem algumas obras, como por exemplo, “RESOLUÇÃO ALTERNATIVA DE CONFLITO. Complexidade, Caos e Pedagogia – O contemporâneo Continuum do Direito”, de MARTINS, N.B, tese apresentada em 2004 na University of Queensland, na Austrália, edição brasileira traduzida por Eichemberg, N. R. Juruá Editora, Curitiba/2006; e Pesquisa Jurídica na Complexidade e Transdisciplinaridade, de Carneiro, MF. Juruá Editora. Curitiba/2007. As abordagens transdisciplinares nos encontros jurídicos, principalmente nos encontros e seminários de Direito Ambiental tem crescido bastante.

5) Artigo 11 da Carta da Transdisciplinaridade: Uma educação autêntica não pode privilegiar a abstracção no conhecimento. Ela deve ensinar a contextualizar, concretizar e globalizar. A educação transdisciplinar revaloriza o papel da intuição, do imaginário, da sensibilidade e do corpo na transmissão dos conhecimentos.

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