Cartão vermelho

Indícios não são suficientes para embasar autuações do Fisco

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27 de setembro de 2007, 10h54

Foi divulgado nesta quarta-feira (26/9) que o Fisco paulista teria feito uma tal “operação Cartão Vermelho”, para notificar mais de 90 mil empresas que sonegaram o ICMS, omitindo vendas feitas com cartões de crédito. As afirmações estão na primeira página do Diário Oficial, cuja manchete afirma a existência de “indícios de sonegação fiscal de R$ 1,5 bi”.

Teriam praticado “fraude e má fé”, omitindo receitas, um bazar na Avenida Paulista, uma lanchonete no centro (mais de R$ 2,7 milhões) e um bar em Guarulhos, este escondendo mais de 3 milhões. Supermercados e confecções estariam sonegando tanto que chegaram a surpreender os fiscais.

Esses números são mesmo para causar surpresa. Meu pai foi dono de bar e eu nunca imaginei que um bar em Guarulhos pudesse faturar quase 200 mil reais por mês num período de cerca de 18 meses (tempo apontado na notícia) ou que um bazar, mesmo na Avenida Paulista, faturasse quase 300 mil reais por mês. Nessa notícia toda, algum número está errado. Advogados não sabem fazer contas, mas fiscais deveriam saber.

A notícia deve ser verdadeira. A grande imprensa mente muito. Mas o Diário Oficial é como o jogo do bicho: vale o que está escrito! Assim, esses comerciantes todos são sonegadores vorazes, meliantes contumazes, gente ruim, que não recolhe os impostos e assim impede o desenvolvimento do país. São responsáveis pelo atraso nas obras do metrô, pela superlotação dos hospitais, pelo péssimo salário dos professores e policiais e também pelas ruas esburacadas, pela falta de segurança, pelas obras do estado que estão paradas, pela superlotação dos presídios e, quem sabe, até pelo assassinato da Taís, irmã gêmea da Paula!

Por isso mesmo, a única opção que lhes resta é tentar ingressar no PPI e pagar, correndo, o que devem, parcelando a dívida.

E precisam correr muito, pois o prazo encerra no dia 30, um domingo.

Portanto, se a tal “operação Cartão Vermelho” como o Diário Oficial informa, está baseada em informações que o Fisco vem recebendo desde março de 2006, a primeira providência que deve ser adotada é prorrogar o prazo de adesão ao P.P.I.

Se o Fisco teve 18 meses para apurar “indícios”, é razoável que se dê aos contribuintes prazo adequado para que se corrijam se estiverem errados. O P.P.I. deve, portanto, por uma questão de Justiça, ser prorrogado até 31 de dezembro. Até mesmo para que os comerciantes se beneficiem do aumento natural de vendas no último trimestre do ano, a fim de pagar o que está sendo cobrado.

Por outro lado, o raciocínio do Fisco é simplista. Nem todas as vendas com cartão de crédito referem-se a operações sujeitas ao ICMS, nem sempre nelas se aplica a alíquota de 18% e delas devem ser excluídas as inúmeras hipóteses de isenções, imunidades e substituições tributárias, onde o tributo não é devido ou já foi recolhido por antecipação.

Determinado contribuinte, estabelecimento varejista, foi autuado através do “cruzamento” das vendas que declarou com as operações feitas através de cartões de crédito.

No caso, o fiscal apreendeu cópias dos comprovantes, que o comerciante mantinha em seus arquivos. Não foi, portanto, resultado de qualquer operação, mas da eficiência indiscutível do Fisco paulista, talvez aliada à ingenuidade do comerciante que, não sendo criminoso, ignora métodos de ocultação da prova.

Perante o Tribunal de Impostos e Taxas e com base em perícia extra-judicial, foi comprovado que a maior parte das operações com cartão de crédito estavam ao abrigo de isenção ou substituição tributária ou ainda beneficiadas com alíquotas menores do que as utilizadas pelo fisco na autuação.

A autuação, embora alicerçada em comprovantes de cartões de crédito, estava presumindo errado e assim foi anulada.

O direito a um julgamento isento e imparcial no processo fiscal administrativo é reconhecido expressamente pela Lei Complementar Estadual 939, de 3 de abril de 2003, cujo artigo 5º afirma que dentre as “garantias do contribuinte” inclui-se (inciso IV) a “obediência aos princípios do contraditório, da ampla defesa e da duplicidade de instância no contencioso administrativo-tributário, assegurada, ainda, a participação paritária dos contribuintes no julgamento do processo na instância colegiada.”

Está claro, portanto, que a diferença entre valores recebidos através de cartões de crédito e as operações declaradas pelo contribuinte pode ser “indício”, mas nem sempre é certeza. Não é, necessariamente, “fraude e má fé”.

Recentemente reconheci meu erro e retratei-me em relação a críticas que fiz ao Secretário da Fazenda, o sr. Mauro Ricardo. Presumi que ele não fosse bom o suficiente para gerir as questões tributárias do Estado mais importante da Federação. Presumi que lhe faltava experiência em assuntos tributários, pois suas atividades anteriores (Sudam, Copasa, Funasa, etc) nada tinham a ver com tais questões. Presumi errado.

O secretário é bom, é competente, é sério. Desculpo-me publicamente mais uma vez por ter errado na presunção. Mas nem por isso sua Secretaria é capaz de transformar presunção em verdade, indício em certeza ou em absoluta a prova que é apenas relativa.

Pois é isso aí! Presunção pode levar a erro, da mesma forma que indícios não são suficientes para embasar autuações. A manchete do Diário Oficial fala em “indícios de sonegação”. Lançamento tributário e, mais que isso, acusação de “fraude e má fé”, carecem de certeza, capaz de embasar título líquido e certo.

Presumir sonegação não é admitido pela jurisprudência, nem pela doutrina. Já se divulgou bastante, mas nunca é demais repetir que:

“Indício ou presunção não podem por si só caracterizar o crédito tributário.” (2º Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, acórdão 51.841,in “Revista Fiscal” de 1970 , decisão nº 69).

o:”Provas somente indiciárias não são base suficiente para a tributação…” (Primeiro Conselho de Contribuintes, 1ª Câmara, Acórdão 68.574).

“Processo Fiscal – Não pode ser instaurado com base em mera presunção. Segurança concedida.” (Tribunal Federal de Recursos, 2ª Turma, Agravo em Mandado de Segurança nº 65.941 in “Resenha Tributária” nº 8)

Um dos maiores juristas deste país, o professo Ives Gandra da Silva Martins, já ensinou que:

“…a única arma possível do sujeito passivo,nas fronteiras pequenas que lhe são outorgadas, são aquelas garantias consubstanciadas nos dois princípios fundamentais da estrita legalidade e da tipicidade fechada. Ora,tais garantias,das poucas que ainda restam ao sujeito passivo, não são compatíveis com mecanismos convenientes das ficções legais, das presunções e dos indícios transformados em poderosas técnicas de arrecadação para sanar os irreversíveis ‘deficits’ orçamentários, provocados pelo fracasso da presença estatal na economia.” (Caderno de Pesquisas Tributárias” nº 9, sobre “Presunções em Direito Tributário”, Resenha Tributária, S.Paulo, 1984, página 65)

Por outro lado, não há necessidade de que o Fisco paulista, reconhecidamente eficiente, venha a se contagiar com a estranha doença da qual a Polícia Federal diz que vai curar-se, que consiste em inventar nomes supostamente divertidos ou espirituosos para suas operações.

Operação fiscal é trabalho sério, feito por gente séria e não precisa de rótulos fantasiosos ou nomes bonitinhos. Cartão vermelho é coisa de juiz de futebol que, ao que parece, não é atividade tão séria. Gosto muito do “vermelho”, porque ele não é “garantido”. Mas o “vermelho” neste caso é um “boi” do festival folclórico de Parintins. Questões tributárias devem se relacionar com o bem comum, com seriedade, não com assuntos futebolísticos ou folclóricos.

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