Crimes financeiros

Investigação tradicional não combate lavagem de dinheiro, diz juiz

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24 de setembro de 2007, 17h05

Método tradicional de investigação não chega a lugar nenhum. A afirmação é do juiz Fausto Martin De Sanctis, titular da 6ª Vara Criminal Federal de São Paulo. Em entrevista à Folha de S. Paulo, Sanctis diz que as investigações promovidas hoje para combater a lavagem de dinheiro não são confiáveis. Ressaltou, no entanto, que o modo de operar está mudando.

De Sanctis foi responsável pela prisão do banqueiro Edemar Cid Ferreira e pelo processo contra o magnata russo Boris Berezovsky, apontado como financiador da parceria Corinthians/ MSI.

Segundo ele, o combate tem de se valer de técnicas especiais de investigação. Sanctis defende, ainda, a quebra de sigilo de dados para casos específicos. “É óbvio que, existindo uma medida direcionada para determinada pessoa tida como investigada, a abertura deve ocorrer”. Ele explica que o limite para garantir o direito de defesa tem de ser analisado caso a caso, de modo que não inviabilize a investigação.

Criticou também os recursos como Habeas Corpus e Mandado de Segurança. Segundo ele, são instrumentos de obstáculo sensível ao processamento de feitos.

Para a presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Flávia Rahal Bresser Pereira, tentar restringir o direito de defesa e vetar o acesso do investigado a um inquérito representam um retrocesso para o país.

“O Estado democrático de Direito é incompatível com uma investigação que seja sigilosa para o investigado”, afirma a advogada, que completa: “O sigilo jamais pode ser para o investigado, isso cerceia por completo o direito de defesa, é um absurdo total”.

Para a presidente do instituto, o Habeas Corpus é um remédio processual que deve ser utilizado em diversas situações, como num constrangimento ilegal contra uma pessoa, independentemente da ocorrência de privação de liberdade.

Leia a entrevista do juiz

O Brasil, que atrai magnatas como Boris Berezovsky e narcotraficantes como Abadia, é um bom país para lavar dinheiro?

Fausto Martin De Sanctis — Quanto mais um país tiver gente predisposta a fazer serviços ilícitos, mais fácil será a concretização da lavagem. Lamentavelmente, no Brasil, por questões culturais e econômicas, observamos pessoas predispostas a colaborar com criminosos. Nossa sociedade é ambígua.

Utiliza-se de pequenas vantagens, como a compra de produtos pirateados ou a lavratura de escrituras por preço inferior, para não pagar tributo. São vantagens que esbarram no crime organizado. E isso é feito por pessoas consideradas de bem, que vêm de ambientes em que, na teoria, os princípios da honestidade e do cumprimento da lei são absolutos. A ambigüidade contribui para a sensação de permissividade no país.

No exterior todo mundo sabe como é o Brasil. Por conta do controle deficiente, algumas pessoas decidem aplicar seus valores aqui. A lavagem é a falência total do combate aos crimes graves pelos métodos tradicionais. Mas, é bom deixar claro, isso está mudando.

Quantas pessoas foram condenadas no Brasil, de forma definitiva, por lavagem de dinheiro? Houve repatriação de valores?

De Sanctis — A recuperação de ativos é muito difícil porque depende do trânsito em julgado [encerramento] do processo. E, infelizmente, não temos notícia disso. O processo de lavagem é volumoso, complexo e de difícil detalhamento. E o investigado geralmente usa os melhores advogados e todas as formas de recursos, Habeas Corpus e Mandados de segurança, que fazem com que o caso não tenha fim. Isso além das dificuldades naturais da Justiça.

O que precisa mudar?

De Sanctis — A estrutura judiciária tem de ser rediscutida. Concebida no passado, ela tem levado os processos a resultados pouco desejáveis. Temos muitos casos com condenações que foram extintos por prescrição. Isso estimula a litigiosidade. A parte recorre para ganhar tempo, para que o processo chegue a esse fim. Mas muito se avançou. Em 1991, 1992, não existia uma Justiça preparada para crimes econômicos, e incluo aí o Ministério Público e a polícia. Hoje temos varas especializadas em crimes financeiros.

A especialização está sob análise no Supremo. Dois ministros disseram que a distribuição da ação deve ser aleatória entre os juízes, e não dirigida a uma vara específica.

De Sanctis — Isso ainda está pendente de decisão. O importante é que a especialização trouxe uma celeridade, um ganho de conhecimento das pessoas envolvidas. E a sociedade já percebeu que a Justiça está começando a incomodar os criminosos de lavagem de dinheiro. No passado não se chegava perto de ninguém poderoso. Que problemas temos hoje?

Excesso absoluto de recursos, o que gera uma obstrução sensível na condução de processos em primeira instância. Por conta da alegação de uma parte, uma pessoa [magistrado] tem o poder de paralisar um processo que está há anos em uma vara.

O que precisa mudar, a mentalidade dos juízes ou a lei?

De Sanctis — Precisamos repensar todo o sistema. No Brasil, temos quatro instâncias de julgamento. Não é possível! O que a Constituição tem de assegurar é o duplo grau de jurisdição, no sentido de revisão de uma decisão tomada. Depois, não cabe recurso, a não ser eventualmente um especial. Tem de haver uma filtragem.

É preciso existir uma sensibilidade de todos para reconhecer que esses recursos, não os tradicionais, mas o Habeas Corpus e o Mandado de Segurança, se tornaram instrumentos de obstáculo sensível ao processamento de feitos.

Limitar os recursos não fere o direito à ampla defesa?

De Sanctis — Ninguém está defendendo aqui a violação de princípios que foram consagrados em determinado momento histórico. Muito do que é defendido hoje no Brasil é resultado da luta da época do Iluminismo. Mas temos que nos atualizar. O mundo não é mais o mesmo. A lei existe para os homens e tem que servir à sociedade para a qual foi editada. A nossa sociedade reclama hoje, e com toda razão, a falta de um Judiciário eficiente.

O sr. está com um caso de lavagem envolvendo a parceria Corinthians/MSI. Por que usar o futebol, que está enraizado na cultura brasileira, para lavar dinheiro?

De Sanctis — Eu não posso afirmar que houve uso do futebol. Existe a acusação de uma lavagem e o futebol seria o meio dela. Isso é uma acusação. Como falei antes, a criminalidade organizada vai para os caminhos em que não há controle algum.

Futebol é um caminho fácil para lavar dinheiro?

De Sanctis — Desconheço outro feito que envolva futebol diretamente. Agora, a gente sabe, até por comentários de jornalistas especializados, que existem problemas éticos sérios, o que talvez seja um facilitador para a lavagem. Isso tem de ser averiguado no processo.

Se o clube for condenado na Justiça, ele deve ser condenado no âmbito esportivo também?

De Sanctis — Não posso falar do âmbito esportivo. As ações da PF e da Justiça têm tido uma repercussão enorme na sociedade. Entrei em contato com uma pessoa do mercado financeiro que disse que o impacto de algumas decisões de varas especializadas têm compelido o mercado a tomar certas cautelas, têm feito pessoas refletirem sobre tudo, para que estabeleçam controle sobre elas mesmas e não sejam acusadas de contribuir com a lavagem.

O sr. se sente pressionado ao julgar um caso que envolve a paixão futebolística?

De Sanctis — Em todos os casos tento dar consistência à minha convicção, que tem de chegar ao papel de forma clara para que os tribunais apreciem aquilo que julguei. Muitos casos vão para a imprensa por conta das paixões sociais e pessoais. Tento, de todas as formas, não me envolver. O juiz já se desgasta em tomada de decisões, se angustia porque entra em choque com seus valores pessoais, seus eventuais preconceitos.

A disputa entre a PF e o Ministério Público, como ocorreu no caso do Corinthians, prejudica a investigação?

De Sanctis — Se existem instituições que estão disputando entre si, é péssimo, só favorece o crime organizado. Se hoje fala-se em cooperação internacional, é porque nacionalmente todos têm de cooperar. Uma disputa não é salutar, pois fomenta a vaidade e manobras de determinadas partes, que vão se valer de intrigas para conseguir algum benefício judicial.

O sr. lida com questões polêmicas, como escuta telefônica, delação premiada, quebra de sigilo, busca e apreensão. O combate à lavagem pressupõe o uso de técnicas invasivas?

De Sanctis — O combate tem de se valer de técnicas especiais de investigação. Isso já é reconhecido pelos organismos internacionais e recomendado em convenções da ONU. Essas técnicas são indispensáveis para o descobrimento do crime organizado. Métodos tradicionais não chegam a lugar algum.

O inquérito deve ser sigiloso até para advogados e acusados?

De Sanctis — Acho recomendável que se respeite o sigilo da investigação inicial. É isso que permite a eficácia de uma operação. Não é possível achar que um caso vá obter resultado se as informações forem totalmente abertas. É óbvio que, existindo uma medida direcionada para determinada pessoa tida como investigada, a abertura deve ocorrer. Mas, antes, isso redunda na total ineficácia da investigação e na paralisação do caso, já que os constantes pedidos de cópias fazem com que o inquérito não vá mais para a polícia.

Novamente, qual o limite para garantir o direito de defesa?

De Sanctis — O limite é caso a caso, de modo que não inviabilize a investigação. Já vimos pessoas que contratam um profissional para ter acesso à investigação e assim fazer um redesenho estrutural societário para esconder um envolvimento.

A prisão preventiva é uma condenação antecipada?

De Sanctis — De jeito nenhum. E não pode ser. A prisão preventiva é decretada quando o réu foge ou pretende fugir ou ameaça testemunhas ou faz do crime uma prática reiterada. O fato é que só vemos prisões preventivas de brasileiros decretadas no exterior. Os fatos estão aí para demonstrar que algumas solturas têm implicado em réus fugindo do país. São presos só quando estão no exterior. Isso é uma realidade.

Como coibir abusos nas operações da polícia?

De Sanctis — Os abusos têm que ser coibidos com ações da Justiça. As operações não são da Polícia Federal, são da Justiça. A 6ª Vara tem feito operações sempre que necessário e com muito cuidado. As interceptações são objeto de apreciação sistemática e todos aqui trabalham muito para que se faça um serviço de qualidade.

Alguns advogados dizem que a 6ª Vara Federal, da qual o sr. é o titular, é uma “câmara de gás”.

De Sanctis — Já ouvi e não concordo. O juiz não é rigoroso. Rigorosa é a lei. Acho que esse tipo de afirmação é ofensiva à medida que não reconheço nisso a imparcialidade do juiz. Exploram isso para desmerecer o trabalho feito aqui. No caso do Banco Santos, por exemplo, 13 pessoas foram absolvidas e dez condenadas. A imprensa tem uma ótica própria, realçou as condenações. Eu tenho uma preocupação muito grande em ser justo. Eu rejeito denúncias, eu absolvo. O juiz tem que ser firme. A sociedade espera de mim firmeza. Quem não for firme tem que sair daqui.

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