Imbróglio no Senado

Regra que permite sessão fechada no Senado é inconstitucional

Autor

23 de setembro de 2007, 0h00

A totalidade da opinião pública nacional está focada nos acontecimentos da capital do país, especialmente os do Senado Federal, local onde, nesta semana, foi concluído mais um escandaloso caso que abalou e ainda abala as estruturas do cenário político brasileiro.

Votou-se a cassação do presidente do Senado, Renan Calheiros. Tal medida foi motivada por uma série de fatos ruidosos amplamente divulgados e que não vem à voga nesse excerto.

Nesse contexto, o momento final desse imbróglio político, ou seja, a sessão na qual seria votada a cassação do referido Senador — Sessão Deliberativa Extraordinária destinada à apreciação do Projeto de Resolução 53/2007, apresentado como conclusão do Parecer 739/2007 do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar sobre a Representação 1/2007 — avocou para si, em dois pontos específicos, as luzes da discussão, quais sejam, (i) em sessão de votação fechada; e, (ii) os votos secretos.

Sobre ambos os temas poderão ser emitidos todos os tipos de considerações, escoradas nos mais diversos fundamentos e motivações, porém, como operadores do direito, essa opinião deverá ser produzida sob a luz do ordenamento jurídico pátrio, algo tentado nesse momento.

Iniciando pelo tema do voto secreto dos Senadores, algo que aparentemente é apenas mais uma maneira de serem produzidas injustiças sem que seus autores sejam identificados, a postura do operador do direito deve ser cética e sem maiores delongas, como é a norma posta.

Independentemente do juízo de valor que possa ser produzido sobre esse instrumento, não nos parece possível a contestação jurídica da medida tomada pelo Senado.

Isso se funda na mera observação do artigo 55, II, parágrafo 2º da Constituição Federal, cujo conteúdo expressamente impõe que a decisão de perda do mandato de um membro do Congresso Nacional, motivada por uma eventual quebra de decoro parlamentar, deverá ser por meio de voto secreto. Tal dispositivo, inclusive, foi copiado pelo Regimento Interno do Senado, conforme se constata de seu art. 32, II, parágrafo 2º.

Ainda, frisa-se que o dispositivo constitucional mencionado é fruto do Poder Constituinte Originário, sendo, portanto, fonte de validade e origem do sistema positivo nacional não passível de controle pelos órgãos estatais constituídos. Desse modo, caso entenda-se que essa regra não mais deve viger, será necessária uma Emenda à Constituição, correndo o risco de tal adição ser equivocadamente considerada inconstitucional quando em cotejo com o disposto no artigo 60, parágrafo 4º, III da CF.

De tal sorte, mesmo que aparentemente essa disposição seja contrária ao princípio democrático e da publicidade dos atos estatais, essa imposição constitucional instituiu uma exceção expressa, algo que passou a conformar a faceta desses princípios. Em outras palavras, no sistema jurídico nacional a amplitude dos mencionados princípios têm no instituto do voto secreto um confim normativo-constitucional.

Relativo ao outro ponto destacado a conjuntura já é diversa. Diferentemente do acontecido com o voto secreto, não foi uma opção do Poder Constituinte pontuar que tais circunstâncias teriam de ser decididas em sessão secreta, não constando, portanto, qualquer previsão no corpo normativo da Constituição Federal.

A famigerada previsão apenas integra as regras do Regimento Interno do Senado Federal — Regulamento 93 de 1970 3 — especificamente em seu artigo 197, I, “c”.

Por tal razão, cabe se fazer a seguinte indagação: O mencionado artigo está em conformidade com a Constituição Federal, propriamente com os princípios democrático e da publicidade dos atos estatais?

Entendemos que não.

Desde já se deve ter por certo que tanto o princípio democrático como o da publicidade dos atos estatais, pela própria natureza do instituto, devem ser considerados como “mandamento nuclear do sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico .”

Nesse diapasão, cabe considerar que o nosso sistema constitucional foi construído sob o ideal da democracia e do controle dos atos estatais, sendo essas, portanto, normas que irradiam todos os atos e disposições que venham compor ordenamento jurídico.

Essa afirmação está escorada diretamente no artigo 1º, “caput” e parágrafo único da Lei Fundamental, cuja construção pauta que o Brasil é um Estado Democrático de Direito, significando que todo o país deverá seguir os ditames da participação popular, nunca se esquecendo que “todo o poder emana do povo”. Ademais, o princípio da publicidade é marco vinculante ao regime jurídico regente da Administração Pública, artigo 37, “caput” do mesmo diploma, compreendido aqui todos os Poderes da totalidade dos entes federativos.

Demais disso, não se pode perder de vista que tais regras representam um dever estatal originado para a proteção dos direitos e ideais da população, tornando-se, por via reflexa, verdadeiros direitos fundamentais dos indivíduos, que devem ser respeitados e interpretados sempre de maneira ótima.

Sob essa luz deverá ser interpretado o citado artigo 197, I, ‘c’ do Regimento Interno do Senado.

Retomando. O princípio democrático e o da publicidade dos atos estatais são algumas das regras basilares de nosso ordenamento, verdadeiros direitos fundamentais dos indivíduos, de modo que toda e qualquer exceção a sua perfeita incidência deverá estar expressa na própria Constituição.

Esse raciocínio simples é base para todo o sistema que se classifica como constitucional rígido, cuja Lei Fundamental é fonte de validade e fundamento das demais regras do sistema. Além disso, é a razão de existir do sistema de controle de constitucionalidade .

Em adendo ao descrito, cabe ressaltar que toda e qualquer exceção aos direitos fundamentais constitucionais sempre deve ser interpretada de maneira restrita, de tal sorte que o imaginário do interprete — muitas vezes conselheiro do príncipe — não caminhe contra as positivadas vitórias e defesas individuais.

Por tais razões, em prestígio ao direito posto, em especial à manutenção do espectro de incidência ótima do princípio democrático e do princípio da publicidade dos atos estatais, entendemos ser inconstitucional a regra que permite a sessão fechada do Senado Federal, que, a par de ser mantido o voto secreto, deveria ser aberta aos olhos da nação.

Nesse diapasão, pode-se afirmar de maneira direta que o art. 197, I, ‘c’ do Regimento Interno do Senado está em frontal contrariedade com os ditos constitucionais.

Posto isso, essa regra deverá ser controlada pelo Poder Judiciário, declarando-se a sua imediata inconstitucionalidade ara se evitar que outras situações posteriores não se materializem em contrariedade ao direito posto e a todo o querer popular, tal como ocorrido nesse momento histórico.

Bruno Francisco Cabral Aurélio, mestrando em Direito do Estado pela PUC-SP, membro da Dal Pozzo Advogados.

Notas e rodapé

1- Bandeira de Mello, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 16ª ed. São Paulo: Malheiros. p. 817.

2-Vide construção teórica de Hans Kelsen, disposta na Constituição austríaca de 1920, no tocante ao controle concentrado de constitucionalidade; ou o caso Marbury v. Madison da Suprema Corte Norte-americana, relatado pelo Chief Justice John Marshall em 1803, referente ao controle difuso de constitucionalidade.

3-Refere-se ao termo de inconstitucionalidade pelo fato de que o Regimento Interno, mesmo datado originalmente de 1970, algo que ensejaria uma análise de recepção de suas normas, foi editado pela Resolução18 de 1989, presumindo-se a sua validade pós essa data.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!