Estratégia da surpresa

Ministro suspende processo até que juíza dê acesso aos autos

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22 de setembro de 2007, 0h00

Advogado não pode ser impedido de ter acesso a conteúdo de inquérito policial, bem como das transcrições das escutas telefônicas. Juiz que age assim, impedindo o advogado de garantir a ampla defesa de seu cliente, está ultrapassado. A observação é do ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do pedido de Habeas Corpus que determinou a suspensão do inquérito contra dois acusados na Operação 274, que investiga a existência de cartel no setor de venda de combustíveis em João Pessoa (PB).

O inquérito ficará suspenso até o julgamento do mérito do pedido de Habeas Corpus pela 1ª Turma, ou até que a juíza Michelini Jatobá, da 9ª Vara Criminal de João Pessoa, responsável pelo trâmite do processo, autorize os advogados a ter acesso a todo o inquérito que apura a responsabilidade dos acusados, inclusive as gravações telefônicas.

O ministro Marco Aurélio afirmou que a juíza Michelini Jatobá precisa “evoluir”, porque a jurisprudência do tribunal é no sentido de permitir ao advogado acesso aos autos. O Estatuto da Advocacia, sustenta o ministro, também estabelece como direito do advogado, entre outros, “examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos”.

“Impedir o acesso pretendido contrasta com o direito à assistência técnica assegurado ao acusado”, reconheceu Marco Aurélio. “O sigilo próprio aos dados da interceptação de comunicação telefônica está direcionado a proteger e não a gerar um quadro em que alguém se vê envolvido, devendo comparecer a delegacia policial, sem que se lhe possibilite, e ao advogado, conhecer as razões respectivas. Fora disso é inaugurar-se época não só de suspeita generalizada, a alcançar o profissional da advocacia, como também de verdadeiro terror, partindo-se para estratégia inconcebível, no que assentada na surpresa”, concluiu o ministro.

A ação corre na 9ª Vara Criminal de João Pessoa (PB). Em primeira e segunda instâncias, a defesa teve negado o acesso às escutas, sob o argumento de preservação das investigações. O Superior Tribunal de Justiça confirmou as decisões, liminarmente.

A defesa dos acusados, representada pelos advogados Dora Cavalcanti e Rafael Tucherman, recorreu ao Supremo alegando que seus clientes estariam privados do direito constitucional à ampla defesa. “Basta que as interceptações tenham produzido elementos probatórios incorporados à investigação para que eles sejam compulsoriamente acessíveis pelos indiciados”, afirmaram.

Marco Aurélio não só acolheu o argumento, como afastou do caso a Súmula 691 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual não cabe ao STF analisar pedido de HC contra decisão monocrática do Superior Tribunal de Justiça que já negou o mesmo pedido. Para o ministro, “o verbete da Súmula 691 desta Corte não pode ser levado às últimas conseqüências”, afirmou.

O advogado criminalista Alberto Zacharias Toron, presidente da Comissão de Prerrogativas da OAB nacional, comemorou a decisão. “A decisão do ministro Marco Aurélio impõe limites às investigações que põem o cidadão de maneira desprevenida”.

Segundo Toron, recentemente, o ministro Félix Fischer, do Superior Tribunal de Justiça, suspendeu a oitiva de uma juíza federal investigada na Operação Têmis, porque os advogados não tinham acesso às gravações telefônicas. “Decisões como essa acabam com a possibilidade de impedir advogado de atuar tecnicamente”, acredita.

Leia o voto do ministro Marco Aurélio

HABEAS CORPUS – VERBETE Nº 691 DA SÚMULA DO SUPREMO – FLEXIBILIZAÇÃO – CONSTITUCIONAL.

INQUÉRITO – INTERCEPTAÇÃO DE COMUNICAÇÃO TELEFÔNICA – ACESSO DA DEFESA – VEDAÇÃO – INTERROGATÓRIO DOS ENVOLVIDOS – LIMINAR – ALCANCE.

1. Eis como o Gabinete sintetizou o que revelado neste processo:

Os impetrantes afirmam que os pacientes foram indiciados como supostos autores dos delitos tipificados nos artigos 4º da Lei nº 8.137/90, 1º da Lei nº 8.176/91 e 288 do Código Penal, em decorrência da conclusão do inquérito policial oriundo da denominada “Operação 274”, voltada a investigar a existência de cartel no mercado varejista de gasolina em João Pessoa, Estado da Paraíba. Informam que os pacientes foram presos temporariamente e os advogados, mesmo depois de decorrido um mês da eclosão da operação policial, somente tiveram acesso aos autos do inquérito, estando privados de conhecer o conteúdo de todos os apensos, cuja existência está certificada no inquérito, e do procedimento cautelar apuratório no qual foram autorizadas as interceptações telefônicas levadas a efeito no curso da investigação – os CDs, as degravações e relatórios de áudio delas decorrentes.


A defesa apresentou requerimentos ao Juízo de primeira instância, pleiteando autorização para vista e extração de cópias da investigação, na integralidade. Houve o acolhimento dos pedidos somente para “facultar aos advogados constituídos o acesso aos autos do inquérito, bem como a obtenção de cópias pertinentes, ressalvado, contudo, o sigilo das interceptações e das diligências ainda em curso” (documento 5). Observou a Juíza:

O sigilo das diligências é a tônica das investigações policiais em que se lança mão da interceptação de comunicações telefônicas, regrada pela Lei Federal 9.296/96.

De acordo com o seu art. 8º, a interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas. Tal precaução do legislador não inibe o defensor a, louvado o que dispõe o inciso XIV, do art. 7º, da Lei 8.906, de 04.07.1994, Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB), ter vista dos autos do inquérito, ainda que corra em sigilo, mas aplicando-se-lhe a ressalva de acesso ao conteúdo das conversas interceptadas, o que não colide com a garantia da ampla defesa prevista no inciso LXIII, art. 5º, da Lei Maior. Isto porque o advogado terá vista dos autos do inquérito e dos apensos, por ocasião da elaboração da defesa prévia, se os dados coletados foram utilizados para cimentar o desencadeamento de ação penal.

(…)

Por outro lado, convém ressaltar que o momento da apensação das degravações tem lugar próprio, a teor do parágrafo único, daquele dispositivo: imediatamente antes do relatório da autoridade, na fase inquisitorial (…).

Indeferidos os pleitos de acesso aos áudios decorrentes de interceptação telefônica e às correspondentes degravações, foi formalizado habeas corpus no Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba. Formulou-se pedido de concessão de liminar que implicasse a autorização para acesso aos autos da interceptação telefônica e a determinação ao delegado responsável pelo inquérito policial para sobrestar a audiência de inquirição de Evandro Tadeu e abster-se da oitiva de Marcelo Tavares, até o julgamento da impetração.

A medida acauteladora foi deferida tão-só em relação à tomada de depoimento dos pacientes. No mérito, a Câmara Criminal não concedeu a ordem, porque:

[…] a interceptação telefônica é o caso mais eloqüente da impossibilidade de abrir-se ao investigado (e a seu advogado) a determinação ou a efetivação da diligência ainda em curso: por isso mesmo, na disciplina legal se faz nítida a distinção entre os momentos da determinação e da realização da escuta, sigilosos também para o suspeito, e a da sua documentação, que, embora mantida em autos apartados – e sigilosos para terceiros – estará aberta à consulta do defensor do investigado: o mesmo procedimento pode aplicar-se à determinação e produção de outras provas, no inquérito policial, sempre que o conhecimento antecipado da diligência pelo indiciado possa frustrá-la.

Segundo os impetrantes, manteve-se a vedação de acesso dos advogados dos pacientes ao procedimento que contém o resultado documentado das interceptações telefônicas já realizadas no curso da investigação.

Nova impetração foi formalizada no Superior Tribunal de Justiça, pugnando-se pela concessão de liminar para que se autorizassem aos advogados dos pacientes “a vista e a extração de cópias dos autos do Procedimento Cautelar Apuratório nº 200.2006.026.357-7 e de todos os demais procedimentos onde tenham sido anexados relatórios, degravações e arquivos de mídia contendo diálogos resultantes de escutas telefônicas já executadas”, e para que os pacientes não fossem inquiridos pelo delegado responsável pelo inquérito, até o julgamento final do habeas. O juiz Carlos Fernando Mathias, convocado do Tribunal Regional Federal da 1ª Região para atuar no Superior Tribunal de Justiça, indeferiu o pleito de concessão de medida cautelar, prestigiando o entendimento externado pelo Tribunal de Justiça, cujos fundamentos transcreveu (folha 154 a 157, documento nº 10). É esta a decisão ora atacada.


Asseveram os impetrantes o cabimento da impetração e apontam tratar-se de situação a conduzir à relativização do Verbete nº 691 da Súmula do Supremo, ante a ilegalidade do ato que impede o acesso da defesa às provas oriundas de procedimento de escuta telefônica. Quanto ao mérito, sustentam o direito dos patronos dos pacientes, no interesse do exercício da defesa dos investigados, de terem vista do resultado das investigações realizadas mediante escuta telefônica. Nesse sentido, mencionam precedentes do Supremo.

Requerem o deferimento de medida acauteladora, franqueando-se aos advogados constituídos pelos investigados o acesso a “tudo quanto já produzido em decorrência de interceptações telefônicas relacionadas com o inquérito (…), estejam os elementos documentados no Procedimento Cautelar Apuratório nº 200.2006.026.357-7 ou em qualquer outro procedimento análogo, assegurando-se tanto a vista dos autos como a obtenção de cópias”. No mérito, pleiteiam a concessão da ordem, para garantir o direito de os advogados consultarem e extraírem cópias do conteúdo escrito e gravado dos procedimentos resultantes das escutas telefônicas implementadas no curso da apuração.

2. Reitero o que venho consignando sobre a necessidade de compatibilização do Verbete nº 691 da Súmula do Supremo com a Constituição Federal:

O habeas corpus, de envergadura constitucional, não sofre qualquer peia. Desafia-o quadro a revelar constrangimento ilegal à liberdade de ir e vir do cidadão. Na pirâmide das normas jurídicas, situa-se a Carta Federal e assim há de ser observada. Conforme tenho proclamado, o Verbete nº 691 da Súmula desta Corte não pode ser levado às últimas conseqüências. Nele está contemplada implicitamente a possibilidade, em situação excepcional, de se admitir a impetração contra ato que haja resultado no indeferimento de medida acauteladora em idêntica medida – Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 84.014-1/MG, por mim relatado na Primeira Turma e cujo acórdão foi publicado no Diário da Justiça de 25 de junho de 2004. É esse o enfoque que torna o citado verbete compatível com o Diploma Maior, não cabendo extremar o que nele se contém, a ponto de se obstaculizar o próprio acesso ao Judiciário, a órgão que se mostre, dados os patamares do Judiciário, em situação superior e passível de ser alcançado na seqüência da prática de atos judiciais para a preservação de certo direito.

A situação deste processo é emblemática no que a defesa dos pacientes, acusados em certo inquérito, não teve acesso a autos apartados que conteriam a degravação do que levantado em interceptação telefônica.

Prevalece a visão linear – e, diria mesmo, extremada – de que o sigilo das diligências se mostra a tônica das investigações policiais, mas assim o é até que se chegue a estágio em que já apurados os fatos, até o momento em que os dados colacionados viabilizem o interrogatório de envolvidos. A partir daí, descabe, seja qual for o móvel, cogitar de verdadeiro processo kafkaniano. Alguém é instado a comparecer perante a autoridade policial e não tem o acesso – quer direto, quer mediante a representação profissional – à defesa, aos elementos que estariam a ditar tal ato, que, em si, não deixa de ser de constrição. Realmente, a Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, preceitua que:

Art. 8º A interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas.

Parágrafo único […]

A razão da cláusula final desse artigo outra não é senão preservar a privacidade. Levo em conta o que se segue no artigo 9º da citada Lei:

Art. 9º A gravação que não interessar à prova será inutilizada por decisão judicial, durante o inquérito, a instrução processual ou após esta, em virtude de requerimento do Ministério Público ou da parte interessada.

Parágrafo único. O incidente de inutilização será assistido pelo Ministério Público, sendo facultada a presença do acusado ou de seu representante legal.


Não há campo para se interpretar o arcabouço normativo sem ter-se presente o devido processo legal. Este passa a inexistir no que se implementa sigilo a afastar, até mesmo, o conhecimento de dados pela própria defesa. Em síntese, a busca de parâmetros não pode conduzir a manter-se, quando já compelido certo cidadão a comparecer para ser interrogado ou para prestar esclarecimentos, o óbice ao acesso aos fatos que estariam a impeli-lo a tanto.

Sob o ângulo da atuação do profissional da advocacia, que exerce encargo público, mostrando-se indispensável à administração da Justiça – artigo 133 da Constituição Federal -, tem-se o inciso XIV do artigo 7º da Lei nº 8.906/94 – Estatuto da Advocacia – a estabelecer como direito do advogado, entre outros, “examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos”. Impedir o acesso pretendido contrasta com o direito à assistência técnica assegurado ao acusado. Daí a Primeira Turma, no julgamento do Habeas Corpus nº 90.232-4/AM, haver concluído, na dicção do ministro Sepúlveda Pertence, que:

[…]

1. Inaplicabilidade da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa ao inquérito policial, que não é processo, porque não destinado a decidir litígio algum, ainda que na esfera administrativa; existência, não obstante, de direitos fundamentais do indiciado no curso do inquérito, entre os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar e o de manter-se em silêncio.

2. Do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado – interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial -, é corolário e instrumento a prerrogativa do advogado de acesso aos autos respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (L. 8906/94, art. 7º, XIV), da qual – ao contrário do que previu em hipóteses assemelhadas – não se excluíram os inquéritos que correm em sigilo: a irrestrita amplitude do preceito legal resolve em favor da prerrogativa do defensor o eventual conflito dela com os interesses do sigilo das investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao princípio da proporcionalidade.

3. A oponibilidade ao defensor constituído esvaziaria uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5º, LXIII), que lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado, que este não lhe poderá prestar se lhe é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o investigado de prestar declarações.

4. O direito do indiciado, por seu advogado, tem por objeto as informações já introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas à decretação e às vicissitudes da execução de diligências em curso (cf. L. 9296, atinente às interceptações telefônicas, de possível extensão a outras diligências); dispõe, em conseqüência a autoridade policial de meios legítimos para obviar inconvenientes que o conhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do inquérito policial possa acarretar à eficácia do procedimento investigatório.

5. Habeas corpus de ofício deferido, para que aos advogados constituídos pelo paciente se faculte a consulta aos autos do inquérito policial e a obtenção de cópias pertinentes, com as ressalvas mencionadas.

Em outras palavras, o sigilo próprio aos dados da interceptação de comunicação telefônica está direcionado a proteger e não a gerar um quadro em que alguém se vê envolvido, devendo comparecer a delegacia policial, sem que se lhe possibilite, e ao advogado, conhecer as razões respectivas. Fora disso é inaugurar-se época não só de suspeita generalizada, a alcançar o profissional da advocacia, como também de verdadeiro terror, partindo-se para estratégia inconcebível, no que assentada na surpresa.

3. Impõe-se a concessão de medida acauteladora, que o faço presentes as balizas da atuação individual. Implemento-a não para viabilizar, desde logo e sem o crivo do Colegiado, sem o crivo da Primeira Turma, o acesso aos resultados da interceptação telefônica, mas para suspender, até a decisão final deste habeas, o Inquérito nº 200.2006.026.357-7, que se encontra em curso na 9ª Vara Criminal da Comarca da Capital – Estado da Paraíba. Esta liminar ficará ultrapassada a partir do momento em que ocorra a evolução do Juízo referido, permitindo o conhecimento dos dados da interceptação.

4. Já constando do processo os elementos indispensáveis à compreensão da matéria, colham o parecer da Procuradoria Geral da República.

5.Publiquem.

Brasília, 7 de setembro de 2007.

Ministro MARCO AURÉLIO

Relator

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