Origem do dinheiro

Estado pode vincular serviço gratuito à indicação de receita

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18 de setembro de 2007, 16h33

O Supremo Tribunal Federal permitiu que o fornecimento de serviço público gratuito seja condicionado à indicação da fonte de custeio. Para os ministros, não há nada de inconstitucional nessa condição.

O entendimento foi firmado no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade que questionou o artigo 112, parágrafo 2º, da Constituição do Rio de Janeiro. O dispositivo diz que não pode ser alvo de deliberação proposta de gratuidade em serviço público indireto se não for indicada a correspondente fonte de custeio. A norma foi questionada pelo governo fluminense.

O governo alegou que a regra fere o princípio federativo por romper com o princípio da simetria, que diz que o processo legislativo estadual deve ser simétrico ao federal. Argumentou também que fere o princípio da dignidade da pessoa humana ao impedir políticas sociais e viola a separação entre os Poderes, pois cabe ao Executivo tratar da concessão de serviço público.

O relator, ministro Cezar Peluso, rejeitou todos os argumentos. Para ele, a norma fluminense não viola o princípio da simetria entre o Legislativo estadual e federal, pois não trata do processo legislativo em si, mas apenas do seu produto (ou seja, a lei).

Peluso considerou que a condição de que haja indicação da fonte de custeio para a concessão da gratuidade no serviço público não impede a concessão da gratuidade. “A medida reveste-se, aliás, de providencial austeridade, uma vez que se preordena a garantir a gestão responsável da coisa pública.”

O ministro também entendeu que não há violação à separação entre Poderes. Para ele, a condição imposta na Constituição do Rio não impede que o Poder Executivo exerça a sua prerrogativa de fechar contratos administrativos. Esta prerrogativa, explicou, tem de ser feita dentro dos limites da lei.

Os argumentos de Peluso foram seguidos pela maioria dos ministros, exceto pelos ministros Carlos Ayres Britto e Marco Aurélio. Britto questionou se a vedação à deliberação sobre propostas não cerceia a atividade legislativa. Já Marco Aurélio entendeu que “não cabe criar óbice à atuação” de cada Poder. Os dois ficaram vencidos.

Veja o voto do ministro Cezar Peluso:

17/09/2007:TRIBUNAL PLENO

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.225-9 RIO DE JANEIRO

RELATOR: MIN. CEZAR PELUSO

REQUERENTE(S): GOVERNADORA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

REQUERIDO(A/S): ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INTERESSADO(A/S): FETRANSPOR – FEDERAÇÃO DAS EMPRESAS DE TRANSPORTES DE PASSAGEIROS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

ADVOGADO(A/S): BRUNO SILVA NAVEGA E OUTROS

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – (Relator): 1. Cuida-se de ação direta de inconstitucionalidade, proposta pela Governadora do Estado do Rio de Janeiro e que visa ao reconhecimento da inconstitucionalidade do § 2º do art. 112 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, cuja redação é:

“Art. 112. (…)

§ 2º – Não será objeto de deliberação proposta que vise conceder gratuidade em serviço público prestado de forma indireta, sem a correspondente indicação da fonte de custeio.”

Afirma a requerente que “o citado dispositivo (…), além de afrontar o princípio federativo e a separação de poderes, inibindo a atividade legislativa em âmbito estadual, representa inequívoca violação ao princípio da dignidade da pessoa humana e demais normas constitucionais que dele emanam” (fls. 03).

O texto impugnado estaria em aberto conflito com os seguintes princípios e normas da Constituição da República:

a) Princípio federativo (arts. 1º, 18 e 25), porque, à vista do princípio da simetria entre os entes federados, o processo legislativo estadual deveria seguir o modelo federal, o que não se observou na hipótese, por ter o constituinte estadual pretendido “condicionar, para sempre, a atividade legislativa, dela retirando parcela da competência para dispor sobre política tarifária” (fls. 05);

b) Princípio da separação dos poderes (arts. 2º e 61, § 1º, II, “b”), porque a disposição sobre o custeio da gratuidade dos serviços públicos prestados de forma indireta, fruto da manifestação do Poder Legislativo estadual, representaria “evidente violação ao princípio da separação de poderes, na medida em que interfere nas atribuições administrativas do Chefe do Poder Executivo, que tem iniciativa legislativa exclusiva em matéria de ‘serviços públicos’” (fls. 06) e a quem compete, ademais, celebrar contratos administrativos de concessão e permissão de serviço público, deles podendo fazendo constar eventual cláusula relativa à gratuidade; e

c) Princípio da dignidade da pessoa humana e seus corolários (arts. 1º, III; 170, III e VII; 203, I, II e IV; 206, I; 208, VII; 227, § 1º, II; 230, §2º), pois a norma retiraria do legislador estadual “a possibilidade de implementar políticas necessárias a reduzir desigualdades sociais e favorecer camadas menos abastadas da população, permitindo-lhes acesso gratuito a serviços públicos prestados em âmbito estadual” (fls. 09). Noutras palavras, a vedação de cláusula de gratuidade sem correspondente fonte de custeio esvaziaria o princípio da dignidade da pessoa humana, nas diversas formas sob que se manifesta no texto constitucional, e prejudicaria o “estímulo da cidadania, com a redução de desigualdades socais e invocação da função social da propriedade empresarial” (fls. 22).


Daí, requer a declaração de inconstitucionalidade do art. 112, § 2º, da Constituição estadual.

Determinei a aplicação do procedimento previsto pelo art. 12 da Lei nº 9.868/99 (fls. 140).

A Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro prestou informações (fls. 146-151), nas quais defende a improcedência da ação, em síntese, pela razão de que não há ofensa ao princípio federativo, pois o condicionamento da concessão de gratuidade tarifária à prévia indicação da fonte de custeio não implicaria retirada de parcela de competência do processo legislativo estadual ordinário. Tratar-se-ia de “exclusiva autolimitação do Poder Legislativo fluminense”, mediante norma de natureza regimental que não destoa do processo legislativo federal, nem pretende alterar “o delicado sistema de freios e contrapesos adotado (…) para o processo legislativo brasileiro” (fls. 148). Argumenta, ainda, não haver afronta ao princípio da separação dos poderes, por referir-se o art. 61, § 1º, II, “b”, da Constituição da República, apenas a Territórios Federais, nem tampouco ao princípio da dignidade da pessoa humana, incapaz de ser assegurado “por meio de concessões indiscriminadas de gratuidades tarifárias” (fls. 150).

A Advocacia-Geral da União conclui pela improcedência, com apoio nas seguintes razões: (i) inexistência de ofensa ao princípio federativo, pois os dispositivos constitucionais invocados são bastante abrangentes e não têm correlação específica com o preceito impugnado, por não versarem diretamente a matéria em questão; (ii) não ocorrência de violação ao princípio da separação de poderes, dado que o art. 61, § 1º, inc. II, “b”, da Constituição Federal, aplica-se apenas aos Territórios, carentes de representação política própria, e que a prestação de serviços públicos prevista no art. 175 do texto constitucional se dará “na forma da lei”; (iii) ausência de violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que “as alegações da autora caracterizam-se pela generalidade, eis que não apontam, com precisão, de que forma o artigo impugnado afrontaria os preceitos constitucionais mencionados” (fls. 162), além de o art. 112, § 2º da Constituição fluminense apenas ter previsto a salutar indicação da fonte de custeio da gratuidade, sem vedar sua instituição em relação aos transportes públicos.

A Procuradoria Geral da República é também pela improcedência, argumentando, em síntese, que o constituinte estadual se manteve dentro dos limites das competências que lhe foram conferidas pela Constituição da República, valendo-se, adequadamente, do poder de auto-organização e auto-legislação. Não há ofensa, assim, a nenhum dos ditames constitucionais tidos por violados, que são os princípios federativo (houve mera “autolimitação do legislador estadual para o tratamento do tema (…)”, consistente no condicionamento da “deliberação de propostas que visem conceder gratuidade de serviços públicos prestados de forma indireta à indicação prévia da fonte de custeio” – fls. 171), da separação dos poderes (trata-se de condição estabelecida pelo legislador constituinte direcionada unicamente ao poder legislativo) e da dignidade da pessoa humana (o atendimento gratuito a certos segmentos desfavorecidos da população não pode ocorrer de molde a impossibilitar a própria prestação desse serviço, ou de outros, pelo Estado, que dispõe de recursos escassos).

Manifestou-se, ainda, a FETRANSPOR – Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro, pleiteando intervenção como amicus curiae e requerendo a total improcedência do pedido.

É o relatório.

V O T O

SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – (Relator) 1. É improcedente a ação.

Em primeiro lugar, não encontro ofensa ao princípio federativo, a qual, no entender da autora, estaria na feição assimétrica que a norma estadual impugnada deu a um dos aspectos do correspondente processo legislativo em relação ao modelo federal.

Ora, a exigência constante do art. 112, § 2º, da Constituição fluminense, consagra mera restrição material à atividade do legislador estadual, que com ela se vê impedido de conceder gratuidade sem proceder à necessária indicação da fonte de custeio. É assente a jurisprudência da Corte no sentido de que as regras do processo legislativo federal que devem reproduzidas no âmbito estadual são apenas as de cunho substantivo(1), coisa que se não reconhece ao dispositivo atacado. É que este não se destina a promover alterações no próprio processo legislativo, considerado em si mesmo; volta-se, antes, a estabelecer restrições quanto a um produto específico do processo e que são eventuais leis sobre gratuidades. É, por isso, equivocado ver qualquer relação de contrariedade entre as limitações constitucionais vinculadas ao princípio federativo e a norma sob análise, que delas não desbordou.


Não colhe, tampouco, a alegação de que o art. 175, § único, III, da Constituição Federal, remeteria ao poder público a função de disciplinar, mediante lei, a política tarifária em matéria de serviços públicos, de modo que teria pretendido “o poder constituinte derivado condicionar, para sempre, a atividade legislativa, dela retirando parcela da competência para dispor sobre política tarifária” (fls. 05). A reserva de lei foi mantida pela Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que apenas condicionou, de forma válida, toda deliberação sobre propostas de gratuidade de serviços públicos prestados de forma indireta à indicação da correspectiva fonte de custeio.

Além disso, conforme sobrelevou a Advocacia-Geral da União, “os princípios constitucionais apontados como violados são bastante abrangentes (…). Realizando-se o cotejo entre o artigo impugnado nestes autos e os preceitos constitucionais adotados como parâmetro de sua constitucionalidade, não se vislumbra qualquer incompatibilidade, até porque se trata de disposições desprovidas de correlação específica” (fls. 156).

Daí chegar-se, sem dificuldade, à conclusão de que a norma estadual não vulnera o princípio federativo, consagrado nos arts. 1º, caput, 18 e 25 da Constituição Federal.

2. Não se descobre, ademais, nenhuma infração ao princípio da separação dos poderes e, segundo a autora, oriunda de suposta invasão da competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo para dispor sobre “serviços públicos”.

A alegação de afronta ao disposto no art. 61, § 1º, II, “b”, não pede maiores considerações, porque se cuida de preceito dirigido exclusivamente aos Territórios.

Doutro lado, não quadra falar em desprestígio à prerrogativa do Poder Executivo de celebrar contratos administrativos, assim porque a norma lhe não veda tal poder, como seu exercício é submisso integralmente ao princípio da legalidade. Como bem observou a Advocacia-Geral da União, “a Administração celebra seus contratos na forma da lei” (fls. 160). Donde, não há excogitar usurpação de competência reservada do Chefe do Poder Executivo.

3. Por fim, também é infrutífero o argumento de desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Seu fundamento seria porque “a norma (…) retira do legislador, de modo peremptório, a possibilidade de implementar políticas necessárias a reduzir desigualdades socais e favorecer camadas menos abastadas da população, permitindo-lhes acesso gratuito a serviços públicos prestados em âmbito estadual “ (fls. 09); “a regra (…) tem por objetivo evitar que, através de lei, venham a ser concedidas a determinados indivíduos gratuidades” (fls. 12), “o preceito questionado (…)exclui desde logo a possibilidade de implementação de medidas nesse sentido [concessão de gratuidade em matéria de transportes públicos], já que estabelece um óbice da fonte de custeio” (fls. 16).

Sucede que dessa frágil premissa não se segue a conclusão pretendida, pois é falsa a suposição de que a mera necessidade de indicação da fonte de custeio da gratuidade implicaria inviabilidade desta.

A exigência de indicação da fonte de custeio para autorizar gratuidade na fruição de serviços públicos em nada impede sejam estes prestados graciosamente, donde não agride nenhum direito fundamental do cidadão. A medida reveste-se, aliás, de providencial austeridade, uma vez que se preordena a garantir a gestão responsável da coisa pública, o equilíbrio na equação econômico-financeira informadora dos contratos administrativos e, em última análise, a própria viabilidade e a continuidade dos serviços públicos e das gratuidades concedidas.

4. Diante do exposto, julgo improcedente a ação direta de inconstitucionalidade.

Notas de Rodapé

1- Como, aliás, consta da ementa – invocada pela autora – do acórdão da ADI nº 1.060-MC (Rel. Min. CARLOS VELLOSO, DJ 23.09.94), que, resumindo a postura da Corte, reza: “A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido da observância compulsória pelos Estados-membros das regras básicas do processo legislativo federal”.

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