Respostas atrasadas

Espião italiano envolve Abin e PF em operações escusas

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17 de setembro de 2007, 9h39

Em julho de 2004, a Folha de S.Paulo publicou uma reportagem trepidante. O jornal apresentou um dossiê demonstrando que o empresário Daniel Dantas, em uma disputa pelo controle de operadoras de telefonia, encomendara uma investigação secreta contra a Telecom Italia que alcançou gente do mercado e do governo. A empresa contratada para essa finalidade foi a multinacional Kroll.

O resultado conhecido desse furo de reportagem, que chegou ao jornal pela empresa italiana, foi a queda de Dantas. Mas algumas questões fundamentais ficaram sem resposta até agora. Afinal, como é que uma investigação secreta como aquela foi parar justamente nas mãos de seus alvos?

A resposta para essa pergunta começa a se desenhar agora, graças a um pesado processo judicial em andamento na Itália. O motivo é fácil de compreender: os acionistas daquele país querem saber o que foi feito dos milhões de euros pagos a brasileiros, sem que a Telecom italiana ganhasse aqui os mercados que pretendia.

Do que descobriu a justiça italiana até agora, já se pode chegar a algumas conclusões. É fato que a Kroll investigou concorrentes, adversários e inimigos de Daniel Dantas. Mas o famoso dossiê de julho de 2004 não é o do dono do Opportunity. O que os italianos divulgaram foi um conjunto de dados, apurações e afirmações produzido por eles próprios. Adequadamente maquiado e adaptado para atingir objetivos específicos, o tal dossiê parece ter sido uma manobra mais ousada do que as mais ousadas manobras atribuídas a Dantas.

Angelo Janonne, o personagem da reportagem, sustentava que o CD da Kroll lhe chegara de forma anônima e ele, de boa fé, entregou o material à PF. Essa versão durou até o início deste ano, quando o hacker contratado para “produzir” o dossiê enxertado, Fabio Ghioni, confessou o delito. A partir desse momento, de testemunha, Janonne tornou-se réu no processo. E ele começou a falar.

As coisas tendem a esquentar. Das primeiras notícias de que o dono do Opportunity investigara até gente do governo, tem-se uma evolução. O que chega agora da Itália é que a tal “gente do governo”, na realidade, é que investigava Dantas. Não em nome do interesse público — já que investigar dentro da lei é sempre saudável — mas para favorecer uma das partes da disputa empresarial, a Telecom Italia. Os acionistas da empresa, agora, querem seu dinheiro de volta. Ou, pelo menos, a responsabilização de quem o recebeu indevidamente.

Acusado, à época, de produzir notícias para beneficiar Daniel Dantas — a ponto de a PF ter inventado a “Operação Gutenberg” cujo único alvo era ele — o jornalista Leonardo Attuch publica esta semana na revista Dinheiro, da Editora Três, reportagem sobre o chefe dos espiões italianos que foi quem trouxe ao Brasil o famoso dossiê de 2004. Pelas mãos do jornalista, fica-se sabendo que autoridades brasileiras andaram praticando atos que não saíram no Diário Oficial. Leia a reportagem:

Confissões de um espião

Por Leonardo Attuch

Depoimento do chefe da espionagem da Telecom Italia à Justiça revela como a empresa se aproximou da Polícia Federal e da Abin na maior disputa empresarial do País, em busca do comando da Brasil Telecom.

Há um ano, às 10h40 do dia 14 de setembro de 2006, o executivo italiano Angelo Jannone compareceu à sede da Procuradoria de Milão, Via Freguglia nº 1 e sentou-se diante do procurador Fábio Napoleone. Jannone, ex-chefe da área de segurança da Telecom Italia, empresa que controla a TIM e é acionista da Brasil Telecom (BrT), falou por mais de três horas. Saiu de lá apenas às 14h25, depois de reler com atenção e rubricar as 25 folhas do depoimento que prestou à Justiça italiana.

No documento secreto, obtido pela DINHEIRO, Jannone narrou fatos que ajudam a decifrar uma das mais complexas disputas empresariais da história do País: a luta pelo comando da Brasil Telecom, que opunha a Telecom Italia ao grupo Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas.

Os pontos mais surpreendentes do testemunho de Jannone dizem respeito à forma como a Telecom Italia se aproximou de duas instituições do governo brasileiro – a Polícia Federal (PF) e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) – numa tentativa de conseguir apoio na guerra comercial empreendida contra Dantas (leia trechos nos destaques ao longo da reportagem). O executivo revelou os contatos que manteve com Mauro Marcelo, ex-chefe da Abin, e com um policial aposentado conhecido como Álvaro, que, segundo as investigações italianas, manteria boas relações com a cúpula da PF.

Angelo Jannone também confirmou os pagamentos feitos pela Telecom Italia ao detetive particular Eloy Lacerda, de São Paulo, e a dois ex-funcionários do Opportunity, Luís Roberto Demarco e Marcelo Elias. Com esse time, Jannone montou sua ofensiva contra Dantas, que, em 2004, foi alvo de uma ação da Polícia Federal: a Operação Chacal. À época, o Opportunity e a empresa Kroll eram acusados de “espionar” o governo federal. Em função disso, cinco funcionários da Kroll foram presos – Dantas escapou por pouco, mas perdeu o comando da empresa de telefonia.


Jannone, um ex-carabiniere da polícia italiana, desembarcou no Brasil em 2004. Veio trabalhar ao lado de Paolo Dal Pino, que à época presidia a Telecom Italia no Brasil e tinha a missão de pavimentar boas relações com o governo e com a mídia. Além dos recursos diretos da operadora de telefonia, Jannone contava com um orçamento paralelo, de 1,2 milhão de euros por ano, que era usado em operações especiais e no pagamento de colaboradores.

Segundo seu depoimento, tais recursos saíam da matriz italiana, eram repassados a uma empresa inglesa chamada Business Security Agency e depois eram transferidos a outros membros da equipe de segurança da Telecom Italia, como Mario Bernardini. Foi este outro espião quem, em delação premiada, entregou todo o esquema à Procuradoria de Milão e fez com que Jannone fosse chamado a depor.

Depois de chegar às contas de Bernardini, no private bank do Credit Suisse, o dinheiro finalmente era repassado a fornecedores da Telecom Italia no Brasil, como a dupla Demarco-Elias. O contrato dos ex-funcionários do Opportunity chegava a US$ 500 mil, segundo o depoimento; o do detetive Eloy Lacerda, diz Jannone, era de €300 mil – o que Lacerda nega. DINHEIRO também teve acesso a extratos bancários de Bernardini, cujo sigilo bancário foi quebrado por ordem da Justiça da Suíça, numa investigação por corrupção, enriquecimento ilícito e lavagem de dinheiro. No dia 2 de fevereiro de 2005, Elias recebeu US$ 50 mil. No dia 13 de julho de 2005, outra transferência no mesmo valor foi realizada para uma conta de Elias no Banco Safra, e revelam uma transferência de US$ 30 mil à J.R. Assessoria Contábil, no dia 11 de julho de 2005. Tal empresa, segundo Bernardini disse ao jornal Folha de S.Paulo, pertenceria ao ex-policial João Álvaro de Almeida, supostamente ligado a dirigentes da Polícia Federal. Em outubro de 2006, o articulista Diogo Mainardi, da revista Veja, mencionou a existência desses depósitos numa de suas colunas, mas não apresentou os documentos bancários. Os extratos, em poder da DINHEIRO, confirmam a informação.

A parte mais rica do depoimento de Angelo Jannone, no entanto, diz respeito à participação de Mauro Marcelo, então diretor da Abin, na história. No depoimento, Jannone contou que, no início de 2005, foi levado ao ex-chefe da Abin por Eloy Lacerda, que já prestava serviços para a Pirelli, à época controladora da Telecom Italia. Naquela reunião, também esteve presente o ex-deputado Robson Tuma, filho do senador Romeu Tuma (DEM/SP).

Antes de encontrá-los, Jannone disse que consultou Demarco e este o incentivou a aceitar o convite dizendo que tanto Marcelo quanto “Tuminha” estariam “a soldo” de Daniel Dantas – portanto, seria importante convencê-los a mudar de lado. Demarco ainda teria dito a Jannone que o então diretor da Polícia Federal, Paulo Lacerda, vinha bloqueando as investigações sobre o caso Kroll e que Mauro Marcelo dirigia uma Ferrari, comprada do detetive Eloy Lacerda.

Em seguida, Jannone relatou aos procuradores de Milão que o encontro com Mauro Marcelo e Robson Tuma foi amigável. Segundo o depoimento, “Tuminha” lhe disse que mantinha boas relações com Paolo Dal Pino, presidente da Telecom Italia, e relatou o compromisso da empresa italiana de fazer um call-center no seu reduto eleitoral. Mauro Marcelo, por sua vez, mostrou a Jannone o projeto de uma cidade cenográfica, onde policiais e agentes da Abin seriam treinados, que custaria R$ 15 milhões e poderia receber uma cota de “patrocínio” da Telecom Italia. Procurado pela reportagem, Mauro Marcelo negou que tivesse uma Ferrari, confirmou o pedido de apoio feito à TIM e admitiu que fazia palestras comercializadas pelo detetive Lacerda. “Mas não recebi nada deles”, disse à DINHEIRO.

Os contatos do espião italiano com Mauro Marcelo não se restringiram àquele encontro de 2005, de acordo com o depoimento prestado à Procuradoria de Milão. Tempos depois, o ex-chefe da Abin lhe telefonou na véspera de uma reunião que ele teria com o detetive Eloy Lacerda. De acordo com o depoimento, Marcelo lhe pediu que se “comportasse bem” diante do amigo. Quando Eloy Lacerda procurou Jannone, um dia depois, a conversa teria sido tensa. Jannone disse ao detetive que não gostava de ser “pressionado” e insinuou até que poderia denunciar tanto ele quanto Mauro Marcelo. Ainda segundo o depoimento, Eloy Lacerda avisou que tentaria resolver a história diretamente na Itália. Em seguida, Jannone procurou um amigo no Brasil, o jornalista Pedro Rogério Moreira, e fez um desabafo, dizendo-se preocupado com o risco de fazer um “acordo de corrupção” com Mauro Marcelo.

Pedro Rogério, muito conhecido em Brasília, foi contratado pela Telecom Italia por US$ 10 mil mensais e encomendou alguns trabalhos ao amigo Alexandre Paes dos Santos, um lobista conhecido em Brasília como APS. “Eu fazia apenas relatórios de conjuntura legislativa, política e econômica”, disse APS à DINHEIRO. Pedro Rogério, por sua vez, confirmou a existência do contrato com a Telecom Italia, que durou dois anos. “Eu fazia uma análise crítica das notícias que saíam na mídia.” Quanto ao “desabafo” de Jannone sobre as pressões da Abin, ele diz não se recordar com precisão. “Ele vivia angustiado, pode ter feito algum desabafo, mas não me lembro de nomes que ele tenha citado”, disse à DINHEIRO.


No seu depoimento à Procuradoria de Milão, Jannone revelou ainda os atritos que teve com Luís Demarco e Marcelo Elias quando os pagamentos da dupla começaram a atrasar. Num dos trechos, ele disse que Demarco chegou a telefonar várias vezes para Giorgio della Seta, ex-presidente da Pirelli, cobrando sua parte. Em outro, disse que foi agredido verbalmente por Elias no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, em 2005. Elias teria dito que “Demarco era estranho, mas não criava problemas”. Jannone retrucou dizendo que ninguém foi pago para “criar ou deixar de criar problemas”.

Em relação aos pagamentos, Elias já admitiu à Folha de S. Paulo que prestou uma consultoria à Telecom Italia, mas disse que o valor foi de US$ 250 mil. Documentos secretos da Justiça italiana, como o depoimento de Jannone, também ajudam a entender a troca recente de todo o comando na Polícia Federal. Em dezembro de 2006, quando já sabia que seria nomeado ministro da Justiça, Tarso Genro fez uma viagem sigilosa à Itália com uma missão específica: recolher informações sobre as investigações referentes à Telecom Italia e avaliar os possíveis impactos no Brasil. Genro teve acesso a vários documentos e, logo que assumiu o Ministério, em março deste ano, tentou substituir Paulo Lacerda por um nome de sua confiança. O ministro, porém, adiou a decisão em várias ocasiões em função de conflitos internos na PF. Foi só há duas semanas que ele conseguiu emplacar Luiz Fernando Corrêa no cargo.

Em contrapartida, porém, Lacerda foi para a Abin e Romeu Tuma Júnior foi nomeado secretário Nacional de Justiça. Depois dessa troca de cadeiras, há hoje um claro antagonismo entre o novo comando da Polícia Federal e a ala do governo que permanece ligada à família Tuma. É uma nova guerra, que se trava nos bastidores do poder, e que ainda pode causar muita confusão.

O agente italiano Angelo Jannone prestou depoimento à Procuradoria de Milão em setembro de 2006. Nele, revelou que contratou o empresário Luís Demarco (ex-funcionário do Opportunity) como consultor por US$ 500 mil porque ele mantinha boas relações com fundos de pensão estatais e com profissionais da mídia brasileira. Além disso, interessava à Telecom Italia o fato de Demarco ser parte numa ação contra o Opportunity na Justiça das Ilhas Cayman. No mesmo depoimento, Jannone revela atritos que teve com Demarco e com seu sócio Marcelo Elias quando os pagamentos começaram a atrasar.

No depoimento prestado à Justiça italiana, o agente secreto Angelo Jannone revelou um telefonema “estranho” que recebeu de Mauro Marcelo, ex-chefe da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin. Marcelo queria que Jannone se “comportasse bem” diante de seu amigo Lacerda, um detetive particular de São Paulo que prestava serviços à TIM. Jannone se sentiu pressionado e contou aos procuradores italianos que pensou em denunciar os dois.

De acordo com o depoimento, o ex-deputado federal Robson Tuma, foi levado ao agente da Telecom Italia pelas mãos do detetive particular Eloy Lacerda. No encontro, segundo Angelo Jannone, Tuma disse manter boas relações com a TIM, que havia assumido o compromisso de fazer um callcenter no seu reduto eleitoral. Mauro Marcelo, da Abin, teria pedido patrocínio para uma “cidade cenográfica”, onde agentes da polícia e do serviço secreto

Sócios ocultos

Na sexta-feira 14, às 12h30, o executivo italiano Ângelo Jannone confirmou à DINHEIRO que prestou depoimento à Procuradoria de Milão no dia 14 de setembro de 2006. Jannone disse ainda que as histórias narradas no documento em poder da revista DINHEIRO são verdadeiras.

Ele relata que chegou ao Brasil em 2004 para o lugar de Marco Bonera, que chefiava a área de segurança da Telecom Italia. Naquele momento, vários contratos foram “herdados” da era Bonera, como o do detetive Eloy Lacerda e o da dupla Luís Demarco-Marcelo Elias, que eram feitos por meio de contabilidade paralela da empresa italiana.

No primeiro momento, a contratação de Demarco lhe pareceu adequada. “Era a única pessoa capaz de enfrentar Daniel Dantas”, disse Jannone à DINHEIRO. Segundo o executivo, a Telecom Italia financiava gastos de Demarco com advogados, nas várias ações que ele movia contra o Opportunity. Jannone também confirmou à DINHEIRO as pressões que sofreu do detetive Eloy Lacerda em favor de Mauro Marcelo, da Abin. “Fiquei muito preocupado e cheguei a suspeitar que ele e Mauro Marcelo fossem sócios ocultos.”

Mentiras dos dois lados

Apesar disso, ele garante que a Abin não foi corrompida pela Telecom Italia para atuar na Operação Chacal, feita contra o Opportuniy. Quanto à contratação do ex-policial federal Álvaro, supostamente ligado à cúpula da Polícia Federal, Jannone diz que ele fez “trabalhos legais”. O executivo italiano, que hoje é réu no processo que corre em Milão, começou a escrever um livro sobre tudo aquilo que viveu no Brasil. Já fez dois capítulos. É um romance de espionagem, com fundo real e alguns nomes trocados, que começa com a sua chegada ao Rio de Janeiro. “Há muitas mentiras nessa história, contadas pelos dois lados.”

Araponga privado

O detetive particular Eloy Lacerda prestava serviços de inteligência à Pirelli e à Telecom Italia. No depoimento à Justiça italiana, Jannone disse que foi pressionado por Lacerda em função de pagamentos atrasados e fez desabafos a um de seus consultores em Brasília: o jornalista Pedro Rogério Moreira, que recebeu US$ 10 mil mensais durante dois anos. Jannone disse que temia o risco de um “acordo de corrupção” com Mauro Marcelo, que àquela época ainda chefiava a Abin.

Conexões escusas

A Justiça da Suíça quebrou, em outubro de 2006, o sigilo bancário das contas de vários espiões da Telecom Italia. Entre eles, o agente Marco Bernardini, que tinha conta no Credit Suisse e fez depósitos nas contas de Marcelo Elias, um consultor dos italianos, e da JR Assessoria, empresa que seria ligada à cúpula da Polícia Federal.

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