Democracia ameaçada

Estado policial prejudica o trabalho dos advogados

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16 de setembro de 2007, 0h01

Wadih Damous - por SpaccaSpacca" data-GUID="wadih_damous.jpeg">Liderança emergente da advocacia, Wadih Damous, presidente da OAB-RJ, luta em defesa dos direitos individuais e das prerrogativas dos advogados e contra o Estado policial.

O Poder Judiciário, o Ministério Público, a Polícia Federal e a mídia são os pilares do Estado policial que está se instalando no Brasil. O MP pede aval para que sejam feitas interceptações telefônicas dos investigados. Os juízes aceitam os pedidos do MP. A Polícia Federal faz as investigações utilizando como principal instrumento as gravações telefônicas. Quando é deflagrada a operação, que deveria correr em sigilo, a imprensa já tem conhecimento dela, e divulga as imagens dos acusados presos como se eles já tivessem sido condenados.

O raciocínio é do presidente da seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil, Wadih Damous. Para ele, graças à pressão da OAB as operações da Polícia Federal estão menos pirotécnicas, mas continuam a apresentar excessos. Em entrevista à revista Consultor Jurídico, afirmou ser difícil mudar o quadro, já que esse tipo de comportamento encontra respaldo na própria sociedade, que clama por punição.

Apesar de ser advogado trabalhista, Wadih Damous prega um discurso muito mais próximo das crenças dos criminalistas, na defesa sem fronteiras dos direitos individuais e da dignidade humana, ainda que o humano a ser defendido seja um réu ou um condenado.

Wadih chegou à presidência da OAB, em janeiro deste ano, depois de enfrentar nas eleições um grupo que comandava a Ordem desde 1990. Afirma que, enquanto esteve à frente do Sindicato do Advogados do Rio de Janeiro, atuou como a seccional fluminense deveria se posicionar. Para ele, a função da Ordem não é só prestar serviços, mas atuar politicamente.

Desde que assumiu, Wadih Damous já mostrou defenderá seu posicionamento. No primeiro episódio polêmico, o presidente contestou a antecipação do suposto abuso da operação policial no Complexo do Alemão pelo ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos. No segundo, fez críticas duras ao movimento Cansei.

Outra de suas bandeiras é a defesa das prerrogativas dos advogados. Wadih reestruturou a comissão na seccional fluminense que trata do assunto. Ao ser questionado se é candidato à presidência do Conselho Federal da Ordem, Damous afirmou que a prioridade é restaurar o prestígio da seccional fluminense. Mas não descartou que, se as bases clamarem por isso, pode ser candidato.

Wadih Nemer Damous Filho nasceu no Rio de Janeiro e se formou em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. É mestre em Direito Constitucional do Estado pela PUC. É autor do livro Medidas provisórias no Brasil: Origem, evolução e novo regime constitucional. Atua na área trabalhista e já foi advogado de sindicatos, como o dos metalúrgicos e o dos ferroviários.

Leia a entrevista

ConJur —Como é a relação entre a magistratura e a advocacia no Rio de Janeiro?

Wadih Damous — Não parece ser diferente de outros lugares. A advocacia passa por um momento difícil devido ao clamor punitivo disseminado na sociedade. Os mais atingidos são os advogados criminalistas. Sabemos de muitas violações às prerrogativas dos advogados, praticadas diretamente por juizes. É uma fase. Quando for superada, volta a ser o que é, com violações pequenas, como não deixar tirar cópia do processo ou não ser atendido pelo juiz. Parece que há uma regra entre os juizes de não atenderem os advogados.

ConJur — O conselheiro Marcus Faver, em uma decisão do Conselho Nacional de Justiça, afirmou que os magistrados devem atender os advogados a qualquer hora. Então, a decisão do conselheiro, desembargador do TJ fluminense, não reflete a posição de juízes no Rio?

Wadih Damous — Ao contrário. Foi preciso uma decisão do CNJ para que o juiz recebesse o advogado. Isso mostra as dificuldades dos advogados no relacionamento com os magistrados, principalmente, quando é necessário despachar com eles. Acho que essa decisão será descumprida. Soube que a Associação dos Magistrados Brasileiros já entrou com um pedido de reconsideração no Conselho com a intenção de invalidar a decisão.

ConJur — A Justiça estadual do Rio tem fama de ser eficiente. O senhor concorda?

Wadih Damous — A segunda instância do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro é, de fato, a mais rápida do país, devido a uma série de investimentos. Já a primeira instância peca por instalações precárias e falhas na informatização das informações processuais. O processo leva anos tramitando na primeira instância e é resolvido em seis meses no Tribunal de Justiça.

ConJur — Há três anos, houve acusações de fraude envolvendo desembargadores e advogados na distribuição de processos no TJ. A Justiça do Rio pode ser considerada confiável?


Wadih Damous — Não acho que o Poder Judiciário do Rio de Janeiro seja corrupto, mas houve acusações sérias tanto contra desembargadores quanto contra advogados e nenhuma providência foi tomada. Na época, o presidente do tribunal nomeou uma comissão que apontava nomes e fatos, mas não se deu qualquer atenção ao relatório. Nem o Ministério Público do Estado, nem o Superior Tribunal de Justiça fizeram rigorosamente nada em relação a isso.

ConJur — Como a OAB poderia ter agido?

Wadih Damous — Se estivéssemos na direção da Ordem naquela época, teríamos aberto uma investigação em relação aos advogados acusados e exigido do MP providências em relação aos crimes que foram apontados no relatório da comissão formada pelo tribunal.

ConJur — E em relação à suposta fraude no último concurso para juiz, promovido pelo tribunal em dezembro de 2006, que beneficiaria parentes de desembargadores?

Wadih Damous — Ao tomarmos conhecimento de possíveis irregularidades, entramos, em conjunto com o Conselho Federal da OAB, com o pedido de providências no Conselho Nacional de Justiça. O caso deverá ser julgado ainda este ano.

ConJur — O que já foi feito no seu mandato?

Wadih Damous — Há muitos anos, denunciamos que a anuidade não era compatível com a prestação de serviço que a Ordem oferecia e estava tornando a advocacia mais difícil de ser exercida. A primeira medida foi diminuir o valor da anuidade. Além disso, passamos a oferecer o recorte digital, serviço que representa uma economia grande para o advogado. O recorte do Diário Oficial que o escritório recebia em papel será oferecido por meio digital gratuitamente. Reestruturamos a comissão de defesa das prerrogativas. Hoje, a comissão é atuante e não deixa passar a violação às prerrogativas de qualquer advogado. Atacamos, também, o problema da inadimplência, cujo índice era grande. Facilitamos as modalidades do pagamento pelo advogado inadimplente e ampliamos o prazo de parcelamento.

ConJur — Os advogados se afastaram da Ordem por causa do valor da anuidade?

Wadih Damous — Além do valor, há uma questão política. Recuperamos o prestigio da entidade. A OAB voltou a dialogar com a sociedade. Talvez, a OAB do Rio seja, com exceção apenas do Conselho Federal, a entidade mais ouvida e mais requisitada hoje.

ConJur — Quais objetivos ainda falta atingir?

Wadih Damous — Há vários projetos. Pretendemos reestruturar o prédio onde funcionava a justiça comum de Madureira, cedido pelo Tribunal de Justiça. Vamos instalar uma casa de cidadania e prestar serviços a moradores pobres e aos cerca de 15 mil advogados da área. Vai ser uma espécie de mini OAB no centro do bairro. Estamos buscando parcerias e patrocínio de construção, instalação e custeio. O projeto visa maior participação da OAB no dia-a-dia dos advogados.

ConJur — O movimento Cansei [movimento cívico de protesto contra a situação política e social do país liderado por empresários e pela OAB-SP]mostrou que as seccionais da Ordem, de São Paulo e do Rio de Janeiro, têm posições divergentes. Os advogados paulistas são diferentes dos cariocas?

Wadih Damous — No próprio site do Cansei, vi muitas manifestações de advogados paulistas contrários ao movimento. Isso se deve, exatamente, à estreiteza social e ideológica que ele tem. Com exceção da OAB, o Cansei é formado por personalidades e entidades que nunca contribuíram para a democracia no Brasil. Um movimento criado por João Doria Júnior, cuja grande contribuição para a democracia é realizar desfile de totós em Campos do Jordão, não é um bom exemplo de luta pela democracia. O que nos preocupou foi a OAB participar de um movimento como este. A entidade tem um patrimônio de luta contra a ditadura e a favor dos direitos humanos que estava sendo desperdiçado com esse movimento classista. Qualquer movimento contra o governo é legítimo, desde que se assuma como de oposição ou de crítica.

ConJur — Com a Operação Hurricane, da Polícia Federal, advogados e desembargadores foram acusados de envolvimento na venda de sentença para beneficiar a exploração de jogos ilegais, o que levantou suspeita sobre o funcionamento da Justiça Federal. Qual sua posição sobre isso?

Wadih Damous — É preciso aguardar o final do processo para saber se os juizes venderam sentenças. A operação Furacão, filmada ao vivo e divulgada em horário nobre, expôs os acusados ao vexame. Pessoas, que ainda não se sabe se são culpadas, foram tratadas como bandidos.

ConJur — Houve abuso na divulgação da operação?

Wadih Damous — Quando as prisões são feitas, a mídia trata os acusados como criminosos. Tempos depois, as pessoas são inocentadas e a imprensa não dá o mesmo destaque para dizer isso. Aconteceu com o ex-presidente da Câmara dos Deputados Ibsen Pinheiro, com o ex-ministro da Saúde Alceni Guerra e com a Escola de Base de São Paulo. São aspectos de um estado policial, que envolve o Poder Judiciário, o Ministério Público e a mídia. É uma trindade que, com um comportamento desse tipo, só prejudica a democracia.


ConJur — Foi isso que aconteceu no julgamento de abertura do processo do mensalão?

Wadih Damous — É preocupante quando um ministro [Ricardo Lewandowski], da mais alta corte do país, julga e diz que o fez sob coação da mídia e da opinião pública. Não podemos admitir que um juiz decida por pressões externas. Ele deve julgar de acordo com a prova dos autos. A troca de mensagens também não deveria ter sido fotografada e, muito menos, divulgada. Foi uma invasão de privacidade.

ConJur — O Estado de S. Paulo divulgou que alguns delegados, que tiveram participação efetiva na gestão de Paulo Lacerda, estariam levando documentos das operações para casa. A Polícia Federal, com esse comportamento, não entraria naquela trindade?

Wadih Damous — Se isso está acontecendo, reforça a impressão de que a Polícia Federal é um dos pilares do estado policial no Brasil. São documentos públicos, muitos sigilosos, que não podem ser apropriados pela autoridade policial e levados para casa. Não pertencem a eles. Isso pode estar relacionado à formação de dossiê para ser usado, futuramente, contra possíveis autoridades. É preocupante a autonomia desbragada concedida à Polícia Federal. Parece que o Ministério da Justiça não consegue exercer seu controle.

ConJur — Há também o projeto do governo de estender à Agência Brasileira de Inteligência (Abin) a possibilidade de grampear os telefones.

Wadih Damous — Isso é um absurdo. Basta a polícia ou o Ministério Público pedir e o juiz permite as interceptações. Valer-se da interceptação telefônica como o principal meio de investigação é uma demonstração de incompetência em investigar. Apresenta, também, uma vocação totalitária, de Big Brother e bisbilhotice na vida das pessoas para formação de dossiês. Quem inventou a interceptação telefônica foi a ditadura. E o mais impressionante é a interpretação que a Polícia Federal dá a determinados diálogos. Se eu estiver conversando com alguém de Mato Grosso de maneira muito informal, como “não esquece de resolver aquela parada aí”, vão interpretar isso como tráfico de drogas, porque aquele estado faz fronteira com a Bolívia. É assim que a Polícia Federal e o Ministério Público têm agido em relação a essas investigações. E, atualmente, eles contam com o aparelho Guardião. Com ele, a PF consegue interceptar três mil conversas simultaneamente, envolvendo pessoas que não estão sendo investigadas. É um efeito dominó.

ConJur — Como essa situação pode ser mudada?

Wadih Damous — A atuação nessa área é extremamente complicada, porque as ações são praticadas com o respaldo do Poder Judiciário. São situações que acontecem em pleno regime democrático e ganham uma certa legitimidade, pois têm o apoio de diversos segmentos da sociedade, além da mídia. Ou seja, no combate ao crime vale desrespeitar a Constituição, os direitos pessoais de cada indivíduo, a privacidade. Quem inaugurou essa fase foi o governo Bush no combate ao terrorismo. Vale tudo: matar, torturar, interceptar, desaparecer, esquartejar, estuprar. É o que fazem no Iraque. E esse tipo de pensamento está sendo aproveitado em países como o Brasil no combate à criminalidade. No combate à criminalidade também vale tudo: invadir favelas, atirar a esmo, matar inocentes e executar quem se rendeu.

ConJur — A ação policial no Complexo do Alemão causou uma divergência na seccional. Na época, o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB fluminense, João Tancredo, afirmou ter depoimentos de pessoas da favela sobre o abuso da polícia. O senhor disse que não poderia tirar conclusões antecipadas. Com as informações que a OAB tem hoje, quais conclusões podem ser tiradas?

Wadih Damous — Foi uma atitude irresponsável do ex-presidente da Comissão, que resolveu antecipar a sucessão eleitoral na Ordem faltando três anos para isso. Teve seus quinze minutos de glória. Não havia divergência sobre a questão. Tratava-se apenas de como comunicar à sociedade o que estava acontecendo no Alemão. Havia indícios de execução, mas só poderíamos efetivamente afirmar o que houve com base em laudos técnicos independentes. Precisávamos aguardar a apuração, mas o caso foi transformado em uma questão ideológica, como se nós tivéssemos defendendo a execução de pessoas no Complexo. Ainda não temos a conclusão, mas estamos cobrando a vinda dos peritos federais, que ficaram de entregar os laudos há mais de um mês e ainda não o fizeram.

ConJur — Como ficou a relação com o ex-presidente da Comissão e os demais integrantes, que acabaram renunciando ao cargo?

Wadih Damous — Continuam conselheiros, apenas não têm mais o poder de direção sobre a Comissão de Direitos Humanos, que foi totalmente reestruturada.


ConJur — Como advogado trabalhista, qual a avaliação que o senhor faz do Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro?

Wadih Damous — O TRT da 1ª Região é um dos piores tribunais do Trabalho do país, em termos de celeridade e de prestação jurisdicional. E, na área trabalhista, a lentidão é ainda mais grave, porque o processo do trabalho foi concebido para ser célere. Na prática, a rapidez não existe. A corregedoria atual herdou um grande acervo de juízes que, efetivamente, não cumprem seu papel de magistrado. Mas, pelas condições e apoio que a administração tem recebido, acho que a Justiça do Trabalho tem condições de melhorar esse quadro.

ConJur — Qual o limite de atuação do Sindicato dos Advogados do estado e da OAB fluminense?

Wadih Damous — Por cerca de quinze anos, o sindicato dos advogados assumiu uma posição de oposição às direções da OAB. Entendíamos que a seccional não estava cumprindo seu papel. E alguns aspectos de representação, que deveriam ser adotados pela OAB, acabaram sendo desempenhados pelo sindicato dos advogados. Hoje, com a identidade de princípios entre a OAB e a atual direção do sindicato, este está se voltando mais para o advogado empregado. No Rio, existe um contingente de advogados empregados significativo, que não tem muito amparo em negociação coletiva. O sindicato tem assumido com muita competência esse papel.

ConJur — Os advogados têm reclamado dos honorários de sucumbência, dizem que o valor estipulado pelos juízes está bem abaixo do esperado. O que o senhor acha disso?

Wadih Damous — Falta reconhecer a importância do papel do advogado. Isso é feito, principalmente, por juízes federais em causas que envolvem a União e as autarquias. Quando se aposentarem, os juízes vão bater à porta da OAB pedindo carteira. Acho que, sinceramente, não gostariam de ver seus trabalhos apreciados da forma como, hoje, eles apreciam os nossos. Na Justiça do Trabalho, sequer temos direito aos honorários de sucumbência.

ConJur — O que a Ordem pretende fazer para mudar essa situação?

Wadih Damous — Criei uma comissão extraordinária para tratar dos honorários de sucumbência dos advogados. Com base em estudos, a comissão terá, como objetivo principal, a elaboração de uma proposta de um projeto de lei. Junto com parlamentares da bancada do Rio de Janeiro, advogados, vamos buscar a regulamentação dos honorários através de lei. Da forma como está, dá margem a uma interpretação em que juízes rebaixam nossos honorários.

ConJur — O senhor é candidato à presidência do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil?

Wadih Damous — Nosso querido amigo D’Urso, por conta do episódio Cansei, lançou minha candidatura. A princípio, não sou candidato. Neste momento, meu compromisso é recuperar a OAB do Rio de Janeiro que, por quinze anos, teve seu patrimônio institucional desmoralizado. O processo está muito longe. Mas me sentiria honrado, afinal o Rio de Janeiro não faz um presidente do Conselho Federal desde 1986.

ConJur — Que avaliação o senhor faz dos cursos de Direito?

Wadih Damous — Não há qualquer compromisso com a qualidade do ensino jurídico no Brasil. A maioria dos cursos tem um caráter mercantil e, por exigências políticas, o MEC não cumpre seu papel. Devido a essa conjuntura, o exame da Ordem assumiu grande importância. Quando cheguei à presidência da seccional, entregavam carteira para 300 novos advogados por semana. Depois que reformulamos o exame de Ordem, entrego para 30 advogados por semana. O último exame teve um índice de aprovação de 8 %. O restante foi reprovado.

ConJur — O índice de aprovação é muito baixo. O que é necessário para passar no exame da Ordem?

Wadih Damous — A situação é dramática, porque há pessoas que investem anos das suas vidas e que esbarram no exame da Ordem. Mas, pela qualidade da advocacia, o exame continuará com o rigor necessário, não para reprovar, mas para testar a capacidade. Não há outro caminho senão estudar e se preparar para passar. Se não fizerem isso, não vai adiantar.

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