Matemática suprema

Ministro Celso de Mello calcula princípio da insignificância

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14 de setembro de 2007, 21h10

O ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, utilizou um cálculo para aplicar o principio da insignificância em um Habeas Corpus. O acusado que ajuizou a ação furtou um botijão de gás no valor de R$ 20. Para o ministro, o fato de o botijão custar apenas 7,69% do salário mínimo na época do furto garante o principio da insignificância.

Ao analisar o caso, o ministro ponderou que a aplicabilidade do princípio é questão recorrente no STF. Deste modo, este caso “assume indiscutível relevo de caráter jurídico, pelo fato de a res furtiva equivaler, à época do delito (julho/2004), a 7,69% do valor do salário mínimo então vigente, correspondendo, atualmente, a 5,26% do novo salário mínimo em vigor em nosso País”, afirmou o ministro.

Segundo Celso de Mello, o princípio da insignificância deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal. A presença das duas teses evidencia o fundamento para a ausência de justa causa, argumenta o ministro.

O ministro reconheceu também a presença do periculum in mora [perigo de demora]. Deste modo, ele aceitou que o acusado espere em liberdade até o julgamento final do HC, que pede a suspensão do acórdão do Superior Tribunal de Justiça e do andamento da Ação Penal na 3ª Vara Criminal da comarca de Caxias do Sul (RS).

Leia decisão

HABEAS CORPUS 92.463-8 RIO GRANDE DO SUL

RELATOR MIN. CELSO DE MELLO

IMPETRANTE(S) DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO

COATOR(A/S)(ES) SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

EMENTA: PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL. CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL, EM SEU ASPECTO MATERIAL. DELITO DE FURTO SIMPLES, EM SUA MODALIDADE TENTADA. “RES FURTIVANO VALOR (ÍNFIMO) DE R$ 20,00 (EQUIVALENTE A 5,26% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR). DOUTRINA. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF. CUMULATIVA OCORRÊNCIA, NA ESPÉCIE, DOS REQUISITOS PERTINENTES À PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO E AO “PERICULUM IN MORA”. MEDIDA LIMINAR CONCEDIDA.

DECISÃO: Trata-se de “habeas corpus”, com pedido de medida liminar, impetrado contra acórdão emanado do E. Superior Tribunal de Justiça, que deu provimento ao recurso especial do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, determinando, em conseqüência, o prosseguimento da “persecutio criminisinstaurada contra o ora paciente.

Os presentes autos registram que o paciente em questão teria tentado subtrair, para si, um botijão de gás, no valor (ínfimo) de R$ 20,00 (vinte reais).

Sendo esse o contexto, passo a apreciar o pedido de medida cautelar deduzido na presente sede processual.

O exame da presente causa propõe, desde logo, uma indagação que se tem tornado recorrente nesta Suprema Corte: revela-se aplicável, ou não, o princípio da insignificância, quando se tratar, como na espécie, do delito de furto simples, em sua modalidade tentada, que teve por objeto bem avaliado em apenas R$ 20,00 (vinte reais)?


Essa indagação, formulada em função da própria “ratiosubjacente ao princípio da insignificância, assume indiscutível relevo de caráter jurídico, pelo fato de a “res furtivaequivaler, à época do delito (julho/2004), a 7,69% do valor do salário mínimo então vigente, correspondendo, atualmente, a 5,26% do novo salário mínimo em vigor em nosso País.

É importante assinalar, neste ponto, por necessário, que o princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material, consoante assinala expressivo magistério doutrinário expendido na análise do tema em referência (FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, “Princípios Básicos de Direito Penal”, p. 133/134, item n. 131, 5ª ed., 2002, Saraiva; CEZAR ROBERTO BITENCOURT, “Código Penal Comentado”, p. 6, item n. 9, 2002, Saraiva; DAMÁSIO E. DE JESUS, “Direito Penal – Parte Geral”, vol. 1/10, item n. 11, “h”, 26ª ed., 2003, Saraiva; MAURÍCIO ANTONIO RIBEIRO LOPES, “Princípio da Insignificância no Direito Penal”, p. 113/118, item n. 8.2, 2ª ed., 2000, RT, v.g.).

O princípio da insignificânciaque considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público em matéria penal.

Isso significa, pois, que o sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificarão quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano – efetivo ou potencial – causado por comportamento impregnado de significativa lesividade.

Revela-se expressivo, a propósito do tema, o magistério de EDILSON MOUGENOT BONFIM e de FERNANDO CAPEZ (“Direito Penal – Parte Geral”, p. 121/122, item n. 2.1, 2004, Saraiva):

Na verdade, o princípio da bagatela ou da insignificância (…) não tem previsão legal no direito brasileiro (…), sendo considerado, contudo, princípio auxiliar de determinação da tipicidade, sob a ótica da objetividade jurídica. Funda-se no brocardo civil minimis non curat praetor e na conveniência da política criminal. Se a finalidade do tipo penal é tutelar um bem jurídico quando a lesão, de tão insignificante, torna-se imperceptível, não será possível proceder a seu enquadramento típico, por absoluta falta de correspondência entre o fato narrado na lei e o comportamento iníquo realizado. É que, no tipo, somente estão descritos os comportamentos capazes de ofender o interesse tutelado pela norma. Por essa razão, os danos de nenhuma monta devem ser considerados atípicos. A tipicidade penal está a reclamar ofensa de certa gravidade exercida sobre os bens jurídicos, pois nem sempre ofensa mínima a um bem ou interesse juridicamente protegido é capaz de se incluir no requerimento reclamado pela tipicidade penal, o qual exige ofensa de alguma magnitude a esse mesmo bem jurídico.” (grifei)


Na realidade, e considerados, de um lado, o princípio da intervenção penal mínima do Estado (que tem por destinatário o próprio legislador) e, de outro, o postulado da insignificância (que se dirige ao magistrado, enquanto aplicador da lei penal ao caso concreto), na precisa lição do eminente Professor RENÉ ARIEL DOTTI (“Curso de Direito Penal – Parte Geral”, p. 68, item n. 51, 2ª ed., 2004, Forense), cumpre reconhecer que o direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social.

A questão pertinente à aplicabilidade do princípio da insignificância – quando se evidencia que o bem jurídico tutelado sofreuínfima afetação” (RENÉ ARIEL DOTTI, “Curso de Direito Penal – Parte Geral”, p. 68, item n. 51, 2ª ed., 2004, Forense) – assim tem sido apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, cuja jurisprudência reconhece possível, nos delitos de bagatela, a incidência do postulado em causa (RTJ 192/963-964, v.g.):

ACIDENTE DE TRÂNSITO. LESÃO CORPORAL. INEXPRESSIVIDADE DA LESÃO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CRIME NÃO CONFIGURADO.

Se a lesão corporal (pequena equimose) decorrente de acidente de trânsito é de absoluta insignificância, como resulta dos elementos dos autos – e outra prova não seria possível fazer-se tempos depois -, há de impedir-se que se instaure ação penal (…).

(RTJ 129/187, Rel. Min. ALDIR PASSARINHO – grifei)

Uma vez verificada a insignificância jurídica do ato apontado como delituoso, impõe-se o trancamento da ação penal, por falta de justa causa.

(RTJ 178/310, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – grifei)

HABEAS CORPUS. PENAL. MOEDA FALSA. FALSIFICAÇÃO GROSSEIRA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CONDUTA ATÍPICA. ORDEM CONCEDIDA.

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3. A apreensão de nota falsa com valor de cinco reais, em meio a outras notas verdadeiras, nas circunstâncias fáticas da presente impetração, não cria lesão considerável ao bem jurídico tutelado, de maneira que a conduta do paciente é atípica.

4. ‘Habeas corpus’ deferido, para trancar a ação penal em que o paciente figura como réu.

(HC 83.526/CE, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA – grifei)

PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL – CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL – DELITO DE FURTO – ‘RES FURTIVA’ (UM SIMPLES BONÉ) NO VALOR DE R$ 10,00 – DOUTRINACONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (…) – PEDIDO DEFERIDO.

O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL.

O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina.

Tal postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público.

O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: ‘DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR’.


O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade.

O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social. (…).

(HC 84.687/MS, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Impende ressaltar, ainda, por oportuno, que esta Suprema Corte, em recentes julgamentos (2006 e 2007), reafirmou essa orientação:

HABEAS CORPUS’. PECULATO PRATICADO POR MILITAR. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. CONSEQÜÊNCIAS DA AÇÃO PENAL. DESPROPORCIONALIDADE.

1. A circunstância de tratar-se de lesão patrimonial de pequena monta, que se convencionou chamar crime de bagatela, autoriza a aplicação do princípio da insignificância, ainda que se trate de crime militar.

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Ordem concedida.

(HC 87.478/PA, Rel. Min. EROS GRAU – grifei)

1. AÇÃO PENAL. Justa causa. Inexistência. Delito de furto. Subtração de garrafa de vinho estimada em vinte reais. ‘Res furtivade valor insignificante. Crime de bagatela. Aplicação do princípio da insignificância. Atipicidade reconhecida. Extinção do processo. HC concedido para esse fim. Precedentes. Verificada a objetiva insignificância jurídica do ato tido por delituoso, é de ser extinto o processo da ação penal, por atipicidade do comportamento e conseqüente inexistência de justa causa.


2. AÇÃO PENAL. Suspensão condicional do processo. Inadmissibilidade. Ação penal destituída de justa causa. Conduta atípica. Aplicação do princípio da insignificância. Trancamento da ação em ‘habeas corpus’. Não se cogita de suspensão condicional do processo, quando, à vista da atipicidade da conduta, a denúncia já devia ter sido rejeitada.

(HC 88.393/RJ, Rel. Min. CEZAR PELUSO – grifei)

RECURSO ORDINÁRIO EMHABEAS CORPUS’. PENAL MILITAR. PROCESSUAL PENAL MILITAR. FURTO. INEXISTÊNCIA DE LESÃO A BEM JURIDICAMENTE PROTEGIDO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO PENAL MILITAR.

1. Os bens subtraídos pelo Paciente não resultaram em dano ou perigo concreto relevante, de modo a lesionar ou colocar em perigo o bem jurídico reclamado pelo princípio da ofensividade. Tal fato não tem importância relevante na seara penal, pois, apesar de haver lesão a bem juridicamente tutelado pela norma penal, incide, na espécie, o princípio da insignificância, que reduz o âmbito de proibição aparente da tipicidade legal e, por conseqüência, torna atípico o fato denunciado.

É manifesta a ausência de justa causa para a propositura da ação penal contra o ora Recorrente. Não há se subestimar a natureza subsidiária, fragmentária do Direito Penal, que só deve ser acionado quando os outros ramos do direito não sejam suficientes para a proteção dos bens jurídicos envolvidos.

2. Recurso provido.

(RHC 89.624/RS, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA – grifei)

As considerações ora expostas levam-me a reconhecer que os fundamentos em que se apóia a presente impetração põem em evidência questão impregnada do maior relevo jurídico, consistente na constatação, na espécie, da evidente ausência de justa causa, eis que as circunstâncias em torno do evento delituoso – “res furtivano valor de R$ 20,00, equivalente, na época do fato, a 7,69% do salário mínimo então vigente e correspondente, hoje, a 5,26% do atual salário mínimo – autorizam a aplicação, ao caso, do princípio da insignificância.

Sendo assim, considerando as razões expostas, e tendo em vista que concorre, igualmente, na espécie, situação configuradora do “periculum in mora”, defiro, até final julgamento da presente ação de “habeas corpus”, o pedido de medida liminar ora formulado, para suspender, cautelarmente, a eficácia do v. acórdão emanado do E. Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 904.876/RS, determinando, em conseqüência, a sustação do andamento do procedimento penal instaurado, contra o ora paciente, nos autos do Processo-crime nº 1002754711 (3ª Vara Criminal da comarca de Caxias do Sul/RS).

Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da presente decisão ao órgão ora apontado como coator (REsp 904.876/RS) e ao MM. Juiz de Direito da 3ª Vara Criminal da comarca de Caxias do Sul/RS (Processo-crime nº 1002754711).

2. Achando-se adequadamente instruída a presente impetração, ouça-se a douta Procuradoria-Geral da República.

Publique-se.

Brasília, 13 de setembro de 2007.

Ministro CELSO DE MELLO

Relator

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