Assembléia revisora

Revisões constitucionais não podem vir de cima para baixo

Autor

  • Marcus Firmino Santiago

    é pós-doutor em Direito Estado e Sociedade (UnB) doutor em Direito do Estado (UGF) mestre em Direito Público (Unesa) professor de Direito Constitucional Direitos Humanos e Teoria do Estado e advogado.

9 de setembro de 2007, 0h00

A recente proposta de revisão geral da atual Constituição, surgida numa tentativa do Poder Executivo de resgatar a Proposta de Emenda Constitucional 57 (que estabelece a possibilidade de transformar o Congresso Nacional em uma Assembléia Revisora, com amplos poderes para alterar a Constituição Federal), tem gerado controvérsias no meio jurídico, mas também em diversos outros segmentos, já que toca em um aspecto delicado que, embora estudado pela teoria constitucional, em muito ultrapassa seus limites: a legitimidade do poder de revisão da Constituição.

O poder constituinte, força criadora capaz de dar vida a uma nova ordem jurídica, política e social, foi teorizado pela primeira vez por Emmanuel Sieyès, autor do período revolucionário francês, e, desde então, é compreendido como uma manifestação da vontade soberana da nação. Este autor tinha muito clara a necessidade de conferir legitimidade às pessoas que deveriam deliberar sobre a elaboração de um documento fundamental, no qual fossem inscritos os direitos básicos da sociedade e delimitado o poder do Estado.

Sieyès viveu intensamente o momento pré-revolucionário, durante o qual era nítida a falta de representatividade popular nos parcos espaços de participação existentes. Os Estados Gerais, convocados às vésperas do eclodir sedicioso, da forma como eram constituídos, para nada mais serviam que chancelar os interesses da aristocracia e do clero, os estamentos dominantes do antigo regime.

Quando ingressa nos Estados Gerais, como representante do Terceiro Estado, Sieyès elabora seu famoso texto Qu’est-ce que le tiers état (aqui traduzido para A Constituinte Burguesa)[1], documento no qual apresenta as idéias que pretende defender no exercício de sua tarefa. Lá está nitidamente delineada sua preocupação com a já referida falta de representatividade dos Estados Gerais e a necessidade de seus membros – ou quaisquer outras pessoas que pretendam falar em nome da nação – serem legitimamente alçados a tal condição, de sorte que se vejam habilitados a discutir e transpor para um documento formal, de forma efetiva, os interesses e vontades da sociedade.

Quando uma nova Constituição é elaborada, o que se espera é ver nela refletidos traços comuns dos anseios e necessidades que a sociedade apresente naquele momento histórico. A Constituição, sob certo prisma, é como uma fotografia de uma dada realidade e isto inspira alguns cuidados, afinal, as escolhas realizadas em um instante influenciarão gerações futuras, que não tomaram parte do processo constituinte, mas a ele se verão sujeitadas.

A elaboração de uma nova Constituição representa um momento de ruptura com a ordem de valores pretérita.[2] Destaque-se que tal cisão não se limita à esfera jurídica, podendo se espalhar igualmente pelas ordens política e social, o que, por sinal, normalmente acontece. Criar uma nova Constituição, portanto, não é tarefa simples, que possa ser realizada sem grandes preocupações com as conseqüências inevitáveis para o futuro. O mesmo se diga quanto a amplas revisões do texto constitucional, como a que se orquestra em terra brasilis.

Rupturas constitucionais somente deveriam ter espaço quando houvesse uma clara necessidade de superar o velho para poder construir o novo. Talvez esta noção não subsista de forma suficientemente nítida neste país, submetido a tantas variações em sua ordem jurídica e política em tão curtos espaços de tempo (o que, verdade seja dita, não é privilégio nacional nem se pode enxergar como uma síndrome que afete apenas países pobres). Em verdade, não é de hoje que impera a cultura do desapego à Constituição, não raro vista como um empecilho à consecução de ideais políticos momentâneos, com as conseqüentes alterações em seus textos que tradicionalmente se acumulam ao longo da vida útil de cada Carta.

Que fique claro não se estar defendendo a imutabilidade do texto constitucional. Afinal, como dito, as Constituições são uma espécie de fotografia de um momento histórico vivenciado. Assim sendo, nem sempre a imagem legada para as gerações seguintes espelha de maneira precisa seus interesses presentes. Daí a necessidade de a própria Constituição abrir espaço para que seja alterada e adaptada às novas realidades vivenciadas ao longo dos tempos, sempre, contudo, cuidando para que um núcleo essencial reste intocado (as cláusulas pétreas da Constituição Federal). Este núcleo representa valores básicos, reputados fundamentais para a própria sobrevivência da sociedade, como, por exemplo, democracia, direitos fundamentais de liberdade e igualdade ou direito à sobrevivência digna (há que se cuidar, contudo, para que este núcleo não seja excessivamente inchado, a ponto de se reputar intocável todo o texto constitucional, criando-se o que o Ministro Sepúlveda Pertence ironicamente denomina uma constituição mineral, onde todas as cláusulas são pétreas).

Os processos de reforma e revisão constitucionais são imprescindíveis para a sobrevivência das Constituições, que precisam ser minimamente flexíveis, como defende Gustavo Zagrebelsky[3], sob pena de acabarem ruindo sempre que deixem de atender perfeitamente aos interesses sociais (lembrando que, usualmente, afirma-se que reforma diz respeito a alterações pontuais do texto constitucional, sendo limitada quanto à matéria e sujeita a processo legislativo diferenciado, enquanto revisão abre espaço para mudanças mais profundas, inclusive em elementos essenciais, enfrentando, em regra, menores restrições quanto aos assuntos que podem ser enfrentados).

Exemplo marcante é oferecido por Portugal que, logo após a Revolução dos Cravos, erigiu uma nova ordem constitucional na qual foi plasmado o ideal de que o Estado português fosse conduzido rumo ao socialismo, entendido, em meados da década de 1970, como a melhor alternativa para o futuro daquele povo. Anos depois, na revisão ocorrida em 1982, vivendo o país uma outra realidade, na qual o processo de integração econômica no seio da União Européia caminhava a passos largos, abandonou-se aquele anseio por uma nação socialista em prol da busca pela máxima inserção na vida comunitária européia. Esta profunda mudança de rumos, mesmo que tenha sido por alguns criticada, refletiu o sentimento dominante no povo português, de sorte que não restaram grandes dúvidas acerca de sua legitimidade.

Onde reside o fundamento de legitimidade da assembléia revisora proposta recentemente no Brasil parece, portanto, ser a grande questão a se enfrentar. Processos de revisão constitucional só encontram legitimidade quando refletem a vontade de ampla maioria da sociedade. Revisões profundas, como a proposta, da mesma forma que a instauração de uma nova ordem constitucional, representam uma ruptura com o sistema vigente, donde surge a necessidade de estarem amparadas em evidentes manifestações sociais, seja pelos meios formais (plebiscito ou referendo), seja pela via revolucionária.

De onde veio a proposta aqui comentada? Que representatividade possuem os notáveis que a elaboraram? Como foram escolhidos os temas que se pretende rever? Alguém se lembrou de questionar, antes de mais nada, se a sociedade brasileira quer ver sua Constituição tão profundamente modificada?

A Constituição Federal promulgada em 1988, em que pese os problemas vivenciados quando de sua deliberação e algumas contradições que acabou tendo de acobertar, representa um momento de restauração da ordem democrática e ruptura com o regime autoritário que tantos males legou a esta nação. É prolixa, de fato, mas em sua grandiloqüência consegue abarcar interesses de praticamente todos os segmentos populacionais, especialmente os mais necessitados que vão, pouco a pouco, descobrindo isto (veja-se, por exemplo, as crescentes demandas, junto ao Poder Judiciário, reclamando o cumprimento de prestações estatais básicas, como acesso à saúde, educação ou moradia). Nesses quase vinte anos de vigência, vem se firmando como um instrumento de garantia de direitos e respaldo a reivindicações, ganhando, com isto, força e efetividade. Chega a ser notável sua resistência às críticas, contestações e tentativas repetidas de colocar por terra todas as conquistas graças a ela alcançadas.

Revisões constitucionais não são um mal, ao contrário; por vezes, são o melhor remédio para corrigir rumos e apontar uma nação para o futuro. Submetida previamente a amplo debate, do qual se colha a firme convicção de que a vontade de larga maioria do povo brasileiro se coaduna com suas propostas, a assembléia revisora pretendida alcançará a imprescindível legitimidade para alterar a Constituição Federal. De outra forma, imposta de cima para baixo como parece ser a intenção, será mais um golpe contra as instituições democráticas que, a duras penas, se vêm tentando firmar no Brasil.


[1] Sieyès, Emmanuel Joseph. A Constituinte Burguesa. Trad. Norma Azevedo. 4. ed., Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001.

[2] A realidade brasileira explicita esta noção. A sucessão de constituições pátrias claramente assinala momentos de ruptura institucional e política. Vejamos, pois: a Carta de 1824 constitui o Brasil como Estado independente; a Constituição de 1891 marca a passagem do Império para a República; 1934 consolida a transição da República Velha para uma nova realidade política; 1937 representa a vitória do autoritarismo sobre a democracia; 1946 entra em cena para assinalar o caminho oposto, de retorno à vida democrática; o que a Constituição de 1967 mais uma vez sepulta, consolidando o regime ditatorial; finalmente, em 1988 a restauração da democracia justifica o nascimento de uma nova ordem constitucional, mantendo-se o Estado brasileiro, desde então, em franco processo de consolidação de suas organizações políticas, não se notando sinais de ruptura institucional.

[3] Zagrebelsky, Gustavo. Historia y Constitución. Trad. Miguel Carbonell. Madrid: Trotta, 2005.

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    é advogado, doutorando em Direito do Estado pela Universidade Gama Filho; mestre em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá; especialista em Direito Processual Civil e professor da Faculdade de Direito da UnB.

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