Resistência crônica

Judiciário brasileiro ainda reluta a avanços tecnológicos

Autor

8 de setembro de 2007, 13h03

Em 1929, a Câmara Criminal do Tribunal da Relação de Minas Gerais anulou uma sentença judicial porque não tinha sido escrita pelo juiz de próprio punho. A decisão havia sido datilografada! O tribunal considerou, naquela oportunidade, que o uso da máquina de escrever era incompatível com um dos valores basilares do processo penal, o do sigilo das decisões antes da publicação.

No fim da década de 1980, várias sentenças foram anuladas porque os juízes haviam usado o microcomputador. Os tribunais receavam que o novo equipamento, na medida em que permitia a reprodução de sentenças “em série”, pudesse prejudicar a devida atenção do magistrado para as particularidades de cada caso.

Outro dia, um colega advogado contou que, ainda estagiário, teve dificuldade ao protocolar uma petição num Fórum do interior de São Paulo porque a peça tinha sido impressa em impressora a laser, despertando a desconfiança do escrivão, que só conhecia, até então, a impressão matricial. Aconteceu uns 12 anos atrás.

Esses relatos não provocam, hoje, senão estranheza. Ninguém mais acha que a máquina de escrever, o microcomputador ou a impressora a jato de tinta possam lesionar direitos ou comprometer, de algum modo, a validade de atos ou decisões judiciais. Não houve prejuízos nestes casos. O magistrado mineiro, em 1929, copiou de próprio punho a sentença datilografada, os juízes pioneiros no emprego do microcomputador mandaram trazer de volta ao seu gabinete a máquina de escrever elétrica e o meu colega, após o empenho característico dos bons profissionais, conseguiu protocolar a petição impressa a laser.

Ultimamente, algumas decisões têm considerado inválidos os interrogatórios feitos por videoconferência. Entendem que princípios constitucionais que garantem o devido processo legal e o direito à ampla defesa seriam desrespeitados com o uso desse instrumento. Uma vez mais, avanços tecnológicos demoram a ser plenamente incorporados pelo Poder Judiciário, em função de uma resistência crônica e anacrônica que, embora esteja longe de ser unânime, é difícil de entender.

Claro, daqui a alguns anos, a condenação da videoconferência será lembrada como mais uma curiosidade, juntamente com a história da máquina de escrever. Advogados mais velhos, entre as reminiscências relatadas ao fim do expediente, contarão aos estagiários que, no passado, já se tinha repudiado o seu uso nos interrogatórios. Infelizmente, contudo, essas decisões, ao contrário das outras que inevitavelmente evocam, têm conseqüências muito mais graves para a sociedade.

Quem está sendo processado penalmente deve ser ouvido pelo juiz acerca dos fatos que configurariam o crime pelo qual responde. Esta fase do processo, o interrogatório, é previsto na lei com o objetivo de assegurar ao acusado o exercício do mais amplo direito de defesa. Quando o réu está preso e o interrogatório é presencial, ele precisa ser escoltado até a sala de audiências. Um forte e custoso aparato policial é, então, montado para acompanhar o deslocamento do preso. O risco de fuga ou resgate é grande e para enfrentá-lo se gasta quantia considerável de recursos públicos.

O Estado não só gasta muito para atenuar o risco de fugas e resgates dos réus, como cria novos riscos com o deslocamento da escolta. Não raro elas tumultuam o trânsito e sempre põem inúmeros cidadãos sob a mira de armas que os policiais podem ser obrigados a usar a qualquer momento. Dentro do Fórum, é necessário organizar também uma estrutura de segurança, que compreende não apenas a cela onde os presos ficam aguardando a vez de serem chamados, como também a de deslocamento pelos corredores do prédio. Enquanto o preso presta seu interrogatório, policiais armados o vigiam dentro da sala de audiências.

O uso da videoconferência para a realização do interrogatório neutraliza esses riscos. O réu não sai do presídio onde se encontra. As audiências são mais céleres, porque seu início não depende da vinda do preso desde a cela do Fórum até a sala do juiz. Todos – juiz, promotor e advogado – podem desempenhar melhor suas funções, num ambiente seguro.

Além disso, e talvez mais importante, os recursos humanos e materiais da Segurança Pública podem ser mais bem utilizados em sua principal finalidade, que é a prevenção e repressão aos crimes. A videoconferência possibilita que os policiais deixem de pajear réus presos para cuidarem de prender os criminosos soltos. Não há, por outro lado, prejuízo a nenhum direito individual dos réus. O magistrado não tem, no interrogatório presencial, mais informações subjetivas sobre eles ou sobre os fatos que irá julgar do que no feito por videoconferência.

Os argumentos de otimização dos limitados recursos da Segurança Pública e a neutralização de riscos desnecessários parecem não sensibilizar os integrantes do Poder Judiciário que condenam o interrogatório por videoconferência. Mas é o caso de discutir se tais repercussões podem mesmo ser abstraídas nas decisões judiciais. A complexidade da organização social contemporânea não permite mais que os magistrados deixem de considerar o quanto seus pronunciamentos podem impactar as contas públicas. Não são mais meros aplicadores de normas gerais a casos concretos, mas verdadeiros partícipes da administração do Estado.

No futuro, até mesmo as sessões do Supremo Tribunal Federal serão realizadas com o uso deste instrumento, com o advogado participando e sustentando do seu próprio escritório e ministros podendo votar a partir de gabinetes instalados em suas cidades de origem. Mas, até que o uso da videoconferência nos atos judiciais não desperte mais nenhuma estranheza, a incerteza quanto à pertinência dos interrogatórios por videoconferência vai dragar recursos valiosos e escassos que poderiam ser empregados de modo muito mais eficiente na Segurança Pública.

*Artigo publicado neste sábado (8/9) no jornal O Estado de S. Paulo.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!