Reforma na jurisprudência

STJ interpretou mal nova regra sobre cumprimento de sentença

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6 de setembro de 2007, 17h08

A profusão de novas leis processuais que, alterando o CPC, visam a minimizar os danos decorrentes da morosidade da prestação jurisdicional, tem acarretado uma multiplicidade de questionamentos acerca da intenção do legislador e da conseqüente aplicação dos textos legais modificados. Toda inovação, num primeiro momento, deve ser analisada com serenidade, nos quadrantes do sistema processual vigente e à luz das garantias do devido processo legal.

No que toca ao polêmico caput do importante artigo 475-J, introduzido pela Lei 11.232/2005, considerando-se a sua imprecisa redação, foram formulados pelo menos três entendimentos doutrinários, atinentes ao dies a quo para a incidência da multa de 10% sobre o montante do débito inadimplido, a saber: a) a partir do trânsito em julgado; b) a partir da intimação, pela imprensa, do “cumpra-se o acórdão”; e c) a partir da intimação do devedor, na pessoa de seu advogado, para a fluência do prazo de 15 dias.

Despiciendo é salientar que a primeira destas três proposições denota facilmente que os seus fatores não têm experiência alguma no campo da advocacia. Discussão deixaria de existir se o texto da lei fosse claro, dispondo acerca do início do prazo.

Como a incidência da lei nova resume-se a pura transição temporal, logo os tribunais pátrios viram-se instados a enfrentar tal questão. Com efeito, diante dos aludidos posicionamentos, mereceu elogio, no meio jurídico paulista, a prudência com que se houve a 28ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP, no julgamento do Agravo de Instrumento 1.081.610-00/1, relatado pelo desembargador Neves Amorim. Em acórdão de 20 laudas, o tema foi examinado à exaustão, sob os três diferentes enfoques, com primorosa fundamentação, chegando-se a resultado unânime no sentido de que, por inafastável imperativo de segurança jurídica, a multa de 10% é exigível somente depois do transcurso de 15 dias, após a intimação do devedor na pessoa de seu advogado.

Extrai-se do julgado o seguinte escólio: “Queremos chegar à conclusão de que as reformas perpetradas no CPC não podem visar apenas à celeridade e agilização, mas devem aliá-las à suma segurança jurídica, sem a qual o processo tornar-se-á um instrumento totalmente despido de um mínimo de regras e em desacordo com os preceitos constitucionais a ele ligados… vejo que diante de tantas possibilidades, há necessidade de se regrar de forma segura o início do cumprimento da sentença, com prazo certo para começo e término e incidência da multa…”.

Exortava Calamandrei que o juiz sábio é aquele cuja convicção antevê a repercussão jurídica e sociológica de sua decisão.

Registro ainda que também tem sido acolhida, em sede pretoriana, outra orientação, qual seja a de que, passados 15 dias do trânsito em julgado, descumprida a obrigação constante do título judicial, incide a mencionada multa (CF., v. g., AgrInstr. 7.123.724-2 – 11ª CDPriv. TJ-SP).

É evidente que a divergência de entendimento da jurisprudência, mesmo que indesejada, não é incomum no âmbito do Poder Judiciário de nosso país, sobretudo pelo elevado número de tribunais.

Cabe, pois, precipuamente, às cortes superiores a função nomofilácica, isto é, de zelar pela interpretação e aplicação do direito de forma tanto quanto possível uniforme. A jurisprudência consolidada garante a certeza e a previsibilidade do direito, e, portanto, evita posteriores oscilações e discussões no que se refere à interpretação da lei.

Os cidadãos baseiam as suas opções não apenas nos textos legais vigentes, mas, também, na tendência dos precedentes dos tribunais, que proporcionam àqueles, na medida do possível, o conhecimento de seus respectivos direitos. O prestígio do STJ, haurido durante todos estes anos, credencia os seus julgados a constituírem verdadeiros paradigmas aos demais órgãos do Poder Judiciário dos Estados da federação.

Em meados do corrente mês de agosto, a 3ª Turma do STJ, no julgamento do Recurso Especial 954.859-RS, teve a esperada oportunidade de interpretar a quaestio iuris que ora interessa. O ministro Humberto Gomes de Barros, que exerceu a advocacia durante muitos anos, foi o relator do acórdão. Depois de ressaltar que o tema desponta “novo e interessantíssimo”, assevera que:

“Certamente, a necessidade de dar resposta rápida aos interesses do credor, não se sobrepõe ao imperativo de garantir ao devedor o devido processo legal” Em seguida, o voto condutor enfatiza que não há previsão normativa para a pretendida intimação pessoal. E, por paradoxal que possa parecer, afirma, com todas as letras, como se constasse de algum dispositivo legal, que “o termo inicial dos 15 dias deve ser o trânsito em julgado da sentença. Passado o prazo da lei, independente de nova intimação do advogado ou da parte para cumprir a obrigação, incide a multa de 10% sobre o valor da condenação”.

Mas não é só. O acórdão outrossim contém uma incrível ilação, ao explicitar que: “ o advogado não é, obviamente, um estranho a quem o constituiu. Cabe a ele comunicar seu cliente de que houve a condenação. Em verdade, o bom patrono deve adiantar-se à intimação formal, prevenindo seu constituinte para que se prepare e fique em condições de cumprir a condenação. Se o causídico, por desleixo omite-se em informar seu constituinte e o expõe à multa, ele deve responder por tal prejuízo…” (sic).

Nem era preciso dizer que o advogado tem o dever profissional de informar e até de alertar o seu constituinte do andamento do processo e da incidência das eventuais sanções previstas na lei processual. Todavia, o que enseja enorme perplexidade é a imputação ao advogado de uma nova responsabilidade, que é a de formalizar a comunicação ao cliente devedor, sob pena de amanhã ver-se na situação de ter de arcar com o ressarcimento da multa. Pela conhecida propagação dos precedentes do STJ, não duvido que, lamentavelmente, juízes de 1º grau determinem ao advogado do devedor a comprovação da aludida comunicação e, não existindo esta, lhe imponham diretamente condenação ao respectivo reembolso.

E isso tudo — e aqui o acórdão não explica e nem conseguiria explicar — sem contar as dificuldades, em muitas demandas, de ser detectado o exato momento do trânsito em julgado. Observe-se que a ementa do julgado é peremptória: “Transitada em julgado a sentença condenatória, não é necessário que a parte vencida, pessoalmente ou por seu advogado, seja intimada para cumpri-la. Cabe ao vencido cumprir espontaneamente a obrigação, em 15 dias, sob pena de ver sua dívida automaticamente acrescida de 10%”.

Mas, afinal, quando é que se tem certeza de que determinado ato decisório transitou em julgado? Para os integrantes da 3ª Turma do STJ a resposta é singela! É de fato cediço que nas demandas, nas quais o quantum da condenação corresponde ao pedido formulado pelo autor, o trânsito em julgado é aferido sem maiores dificuldades.

Todavia, quem advoga sabe que em todas as hipóteses de sucumbência recíproca, ainda que mínima, somente por meio de exercício de adivinhação é que se torna possível certificar-se do trânsito em julgado. Explico-me: se, por exemplo, contra uma sentença, que acolheu parcialmente o pedido condenatório deduzido pelo autor, não for interposto recurso de apelação por nenhum dos dois litigantes, o réu-devedor, quando se der conta de que não houve impugnação pelo demandante, já deixou decorrer o prazo de 15 dias “a contar do trânsito em julgado”.

Igualmente, se um tribunal estadual reduzir de R$ 50 mil para R$ 20 mil a condenação, a título de dano moral, antes imposta pela sentença, o condenado não poderá presumir (ou adivinhar), de antemão, que o autor se resignou com o julgamento colegiado. Quando ele, devedor, descobrir que não houve, por exemplo, interposição de recurso especial, o lapso de 15 dias já transcorreu. Nem se afirme que o condenado que não recorreu deve cumprir espontaneamente o julgado, até porque, a teor do disposto no art. 500 do CPC, ostenta ele interesse em interpor recurso adesivo.

Verifica-se, pois, que, sem traçar qualquer distinção entre as diversas situações que se apresentam na praxe forense, agrava-se, em muito, a posição profissional do advogado do devedor, visto que ele passará a ser responsabilizado, tout court, pela incidência da multa, ainda que impossível a aferição do trânsito em julgado da decisão de natureza condenatória.

Convenhamos, a infeliz novidade que irrompe do referido pronunciamento judicial insere, mais uma vez, a profissão de advogado entre aquelas de “altíssimo risco”. Enfocando, em outra oportunidade, os obstáculos processuais criados, à margem da lei, pelo STJ, reconhece Clito Fornaciari Júnior que, apesar de a consciência do advogado estar tranqüila, a surpresa que emerge de algumas decisões pode atingir qualquer profissional e, muitas vezes, a sua imagem perante o cliente sai injustamente arranhada” (É hora de lealdade para com o advogado, Tribuna do Direito, 42, 1996, p. 18). Ademais, como já tive oportunidade de ressaltar, tal circunstância evidencia que o Brasil talvez seja o único país no mundo em que, a despeito de a lei processual ter eficácia para o futuro (tempus regit actum), a jurisprudência “retroage”, abrangendo, com inequívoca deslealdade, atos processuais já consumados.

É exatamente dentro desse contexto que Vito Marina Caferra, em obra que se tornou famosa na Itália (Il magistrado senza qualità, 2ª ed., Roma, Laterza, 1996, p. 127), chama a atenção para duas espécies bem definidas de juízes que, na atividade judicante, destacam-se, de um lado, pelo conformismo, pelo descaso, pelo temor da hierarquia; e, de outro, pela atuação independente, pelo cuidado com a repercussão de seus próprios atos decisórios e pelo respeito aos protagonistas do processo. A propósito, foi Piero Calamandrei quem escreveu páginas memoráveis sobre a “cômoda indiferença do burocrata”, que leva o juiz ao hábito crescente de optar por solução mais confortável em detrimento daquela muitas vezes mais justa.

Não tenho dúvida em afirmar que o posicionamento externado no aludido julgamento do Recurso Especial n. 954.859-RS consubstancia-se em descabida emboscada para o advogado.

Na verdade, a única e derradeira esperança que nos resta é a de que o STJ, desvelando a sabedoria e humildade, predicados aliás já demonstrados em inúmeras ocasiões anteriores, reveja a, permissa venia, equivocada interpretação conferida ao cabeço do indigitado art. 475-J, que, com certeza, só pode ser atribuída à inexorável pletora do serviço judiciário.

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