Garantias individuais

Limites constitucionais são tênues na aplicação de sanções

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5 de setembro de 2007, 0h00

É bem sabido que a missão fundamental de uma constituição é proteger os direitos individuais, limitando o poder do Estado. Por isso, o art. 5° da Constituição de 1988 define diversos direitos da pessoa contra a opressão estatal. Os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e a outros são considerados essenciais para a realização plena do potencial humano.

Não por coincidência, o art. 5° refere-se a matérias penais em diversos de seus dispositivos. De todas as atividades estatais, o sistema penal é a que tem mais potencial para afetar direitos individuais de diversos matizes, como liberdade (pena de reclusão ou detenção), vida (pena de morte em caso de guerra declarada) e patrimônio (penas de multa de perda de bens). As condições a que são submetidos os detentos nas prisões bem demonstram o constante aviltamento da dignidade humana.

Assim, o art. 5° da Constituição prevê o princípio da legalidade das penas (XXXIX); da retroatividade da lei penal mais benéfica ao réu (XL); da intranscendência da pena (XLI); da individualização das penas (XLI); etc.

Porém, o Estado interfere na vida social de outras maneiras, sancionando condutas consideradas indesejáveis nos termos do Direito Administrativo. Por exemplo, um restaurante que funcione fora dos padrões regulamentares pode ser interditado, ou um servidor público pode ser demitido, caso cometa uma infração administrativa de certa gravidade.

Sanção e pena são termos sinônimos: ambas expressam conseqüências desagradáveis de uma conduta que desrespeitou o preceito legal. Trata-se de uma forma de desestimular comportamentos considerados nocivos pela sociedade.

Não há diferença substancial entre as sanções administrativas e as criminais: ambas são “castigos” impostos a pessoas que cometeram determinadas faltas. Aliás, algumas sanções, como multa e suspensão de direitos, são encontradas no Direito Administrativo e no Direito Penal.

Também não se pode afirmar que haja uma diferença “quantitativa” entre essas sanções, pois, boa parte das vezes, as penas administrativas são mais graves que as criminais. É só comparar a pena de demissão aplicada administrativamente e a pena de limitação de final de semana, aplicada criminalmente.

Diz-se com freqüência que a sanção criminal típica – a pena privativa de liberdade – é a mais rígida de nosso sistema, pois restringe drasticamente a liberdade de locomoção. Porém, também é sabido que existem outros direitos constitucionalmente protegidos, como honra, propriedade, vida e dignidade. Em uma sociedade pluralista, que aceita a diversidade de pontos de vista e de valorações, é impossível considerar-se a existência de uma hierarquia rígida de valores. Para algumas pessoas, é preferível perder a vida do que ter sua liberdade de crença limitada: exemplo contundente é o caso das testemunhas de Jeová, que se recusam sistematicamente a receber transfusão de sangue, mesmo que isso lhes custe a vida. Muitas pessoas prefeririam passar algum tempo na prisão a perder seu cargo público. Da mesma forma, um advogado militante, com certeza, preferirá prestar serviços comunitários a ter seu registro na Ordem dos Advogados do Brasil cassado.

Portanto, as diferenças entre as sanções penais e as administrativas não devem ser buscadas em características essenciais, mas acidentais: as primeiras assumem a forma predominante de pena privativa de liberdade e são aplicadas pelo Poder Judiciário; enquanto que as últimas, normalmente, têm caráter pecuniário, sendo aplicadas pelo Poder Executivo.

Essa similitude essencial exige que as penas criminais e as administrativas sejam tratadas de maneira semelhante, sob pena de afronta ao princípio constitucional da isonomia. Aliás, as semelhanças são tão evidentes que parte da doutrina já se refere a um ramo do ordenamento jurídico chamado de “Direito Sancionador”, que traria regras gerais para as diversas espécies de sanções. (Situação bastante semelhante já ocorre na Teoria Geral do Processo, que reúne as normas fundamentais do processo civil e do processo penal.).

Por isso, não há sentido algum em interpretar-se de modo restritivo o vocábulo “pena”, que aparece diversas vezes no art. 5° da Constituição, para considerá-lo apenas como sanção criminal. Até porque as normas constitucionais devem ser sempre interpretadas extensivamente (princípio da máxima efetividade), ou seja, dentre os vários significados de um termo, o intérprete deve preferir aquele que tenha o sentido mais amplo. A própria Constituição exige essa interpretação extensiva ao dispor que os direitos e as garantias nela expressos “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados”.

O Direito Administrativo Sancionador, portanto, deve utilizar a vasta gama de conhecimentos jurídicos já produzidos pelo Direito Penal, pois são substancialmente iguais e derivam da mesma fonte constitucional.

Há uma situação específica no art. 5°, XLVII, que veda determinadas penas: a proibição das penas de caráter perpétuo. Normalmente identificadas com a prisão perpétua, essas sanções são criticadas por sua desproporcionalidade e pela ausência de crença no poder de recuperação do ser humano.

Porém, como visto, não há como restringir essa proibição às penas privativas de liberdade: quaisquer penas de duração perpétua devem ser consideradas inconstitucionais, inclusive aquelas cominadas pelo Direito Administrativo.

Duas penas administrativas de caráter perpétuo podem ser mencionadas na legislação: a inabilitação permanente dos diretores de instituições financeiras que cometerem infrações contra a economia nacional (Lei 4.595/64) e a pena de demissão do servidor público em hipóteses que vedem seu retorno ao serviço público (Lei 8.112/90). No tocante à primeira situação, já existem julgados dos tribunais superiores definindo a ausência de recepção, pela Constituição de 1988, da pena de inabilitação permanente:

“EMENTA: – DIREITO CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. PENA DE INABILITAÇÃO PERMANENTE PARA O EXERCÍCIO DE CARGOS DE ADMINISTRAÇÃO OU GERÊNCIA DE INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. INADMISSIBILIDADE: ART. 5 , XLVI, “e”, XLVII, “b”, E § 2 , DA C.F. REPRESENTAÇÃO DA UNIÃO, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO: LEGITIMIDADE PARA INTERPOSIÇÃO DO R.E. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. (…) 2. No mérito, é de se manter o aresto, no ponto em que afastou o caráter permanente da pena de inabilitação imposta aos impetrantes, ora recorridos, em face do que dispõem o art. 5 , XLVI, “e”, XLVII, “b”, e § 2 da C.F. 3. Não é caso, porém, de se anular a imposição de qualquer sanção, como resulta dos termos do pedido inicial e do próprio julgado que assim o deferiu. 4. Na verdade, o Mandado de Segurança é de ser deferido, apenas para se afastar o caráter permanente da pena de inabilitação, devendo, então, o Conselho Monetário Nacional prosseguir no julgamento do pedido de revisão, convertendo-a em inabilitação temporária ou noutra, menos grave, que lhe parecer adequada. 5. Nesses termos, o R.E. é conhecido, em parte, e, nessa parte, provido.” (Supremo Tribunal Federal – RE 154134/SP, julgado em 15/12/1998)

“CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. DIRETOR DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. PENA DE INABILITAÇÃO PERMANENTE. IMPOSSIBILIDADE. ART. 5., XLVII, PAR. 2., E XLVI, LETRA E, DA CF. DEFERIMENTO.

I. OS DIREITOS E GARANTIAS EXPRESSAMENTE PREVISTOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EXCLUEM OUTROS TANTOS DECORRENTES DO REGIME E DOS PRINCIPIOS NELA ADOTADOS (ART. 5., XLVII, PAR. 2.).

II. A VEDAÇÃO AS PENAS DE CARATER PERPÉTUO NÃO PODE SER INTERPRETADA RESTRITIVAMENTE, ESTENDENDO-SE AS PENALIDADES DE SUSPENSÃO E INTERDIÇÃO DE DIREITOS CAPITULADOS NO INCISO LXVI, LETRA E, DO MESMO ARTIGO.

III. SEGURANÇA CONHECIDA.” (Superior Tribunal de Justiça –1119/DF, julgado em18/12/1991)

A questão da demissão que impossibilita para sempre a volta do demitido ao serviço público ainda não foi analisada pelos tribunais superiores, mas, mutatis mutandis, a ela deve ser dada a mesma solução, ou seja: como qualquer pena que tenha pretensões de eternidade, deve ser considerada inconstitucional.

Portanto, as fronteiras entre o Direito Administrativo e o Direito Penal são bastante tênues quando se referem à aplicação de sanções. Aliás, seus verdadeiros limites não são impostos por convenções doutrinárias, mas pelo intransigente respeito aos direitos e às garantias individuais previstos na Constituição.

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